Edição nº 674

Jornal da Unicamp

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Campinas, 07 de novembro de 2016 a 20 de novembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 674

Quando quem conspira é ‘gente de cor’


Conspirações da raça de cor é um desses livros que não deixam o leitor sossegado. É livro sobre subversões, e, como tal, nos coloca no cenário das contestações da ordem colonial, escravista e racial em Santiago de Cuba, entre as décadas de 1860 e 1880. Conspirações da raça de cor é povoado pelos insurgentes de diferentes condições sociais, patentes militares e vinculações políticas que compunham a “classe” da gente de cor naquela parte oriental de Cuba. O livro conta sobre “livres de cor” já célebres na historiografia e na memória dos movimentos negros nas Américas, como Antonio Maceo, o comandante de soldados brancos e de cor no Exército Libertador cubano. Mas também há rebeldes desconhecidos, como os mulatos que, ao migrarem de São Domingos para Santiago de Cuba, se abrigam sob a nacionalidade francesa, passam a ser tratados como madame, mademoiselle e monsieur e até tentam se passar por brancos.  Difícil o leitor não se desassossegar com os infortúnios de Agustín Dá, quase um Dom Quixote a instar, mesmo que pela força, negros e mulatos cubanos contra os brancos colonizadores. O protagonismo desses sujeitos em suas aspirações, planos e ações rebeldes contra o domínio espanhol, senhorial e mesmo contra aliados brancos – sempre que eles se mostravam pouco dispostos a defender a igualdade racial – vai sendo enredado ao longo do livro com o argumento de que raça e nação foram pertencimentos entrelaçados com os mesmos fios da rebeldia reinante naquela porção de Cuba.

Maia nos apresenta a agentes políticos que, enquanto conspiravam contra a Coroa espanhola e autoridades locais atentas à movimentação da população não branca, constituíam “a raça de cor”. Compondo tal atmosfera de desassossego da ordem vigente, a autora reitera as aspirações e lutas por liberdade em Santiago de Cuba, que, no seu texto, é província periférica na economia açucareira cubana, mas território central nas tramas conspiratórias da gente de cor. Para tanto, Maia interpretou e cotejou correspondência governamental, devassas, jornais, processos-crime, legislação e relatos de viajantes. Sem dúvida, a documentação mais surpreendente é um processo de mais de 1.200 páginas, com os autos de inquérito realizado por uma Comissão Militar sobre a conspiração de La Escalera. Dentre tantos aspectos da história de Cuba, a autora aproveita essa documentação para nos contar sobre o que estaria na raiz das sublevações, a exemplo das determinações legais que buscavam coibir casamentos inter-raciais. Surge assim, a meu ver, a maior contribuição deste livro: a análise, por meio de uma cuidadosa e persistente pesquisa empírica em arquivos espanhóis e cubanos, dos modos pelos quais raça compôs a gramática dos que lutaram contra o domínio colonial e a escravidão.

Foi explorando a densidade das fontes e o diálogo, nem sempre conciliatório, com a bibliografia cubana e cubanista, que foram tomando forma no texto de Maia identidades de cor e classe tão explícitas que o leitor pode ter a sensação de que os rebeldes, em termos individuais e coletivos, estavam dispostos a radicalizar em prol dos seus desejos de liberdade racial e nacional. Entretanto, esses pertencimentos de cor, classe e nação também foram conflitantes e negociáveis nos planos dos insurgentes. As nuances desse processo são exploradas a partir do uso que a autora faz do vocabulário político da época. Nesse exercício, Maia Mata não se exime de registrar e problematizar o amplo e confuso conjunto classificatório de cor em circulação na época, evidenciando como e com quais propósitos políticos identidades raciais eram forjadas naquela circunstância histórica belicosa de construção de pertencimento nacional. Moreno, pardo, negro e, por fim, raça de cor são categorias identitárias analisadas como indícios de pertencimentos forjados e intercambiáveis nos ambientes belicosos de revoltas e guerras. Eis, portanto, outra contribuição deste livro e mais uma razão de desassossego para o leitor, que se verá mergulhado numa pluralidade de designações que, sendo de cor, também podem ser de classe e de nacionalidade. Nada a temer.

Inquietar-se com a complexidade da sociedade cubana é indispensável para o público brasileiro ainda pouco familiarizado com projetos nacionais e concepções de raça que escapem dos nossos modelos de mestiçagem. Por isso, é bem-vindo o que Maia nos conta, baseada principalmente na bibliografia cubana e cubanista, sobre e escravidão e o movimento abolicionista na parte oriental da Ilha, assim como acerca da Guerra dos Dez Anos (1868-1878) e da Guerra Pequena (1879-1880). Naquele ambiente, é possível notar algumas fronteiras porosas que vão sendo delineadas ao longo do livro. Dentre elas, as mais permeáveis são as que separam escravos dos negros livres de cor, as que demarcam as diferenças entre a gente de cor cubana dos negros vindos da Jamaica, do Haiti e da República Dominicana. Essa geografia rebelde torna o livro interessante para pensarmos em algo que é insinuado em várias páginas: certo mapa da rebeldia negra nas Américas do século XIX, evidenciado no trânsito de pessoas e ideias. Ao salpicar aqui e acolá as reverberações e conexões entre a atmosfera rebelde em Santiago de Cuba e acontecimentos no Caribe, na América do Norte e mesmo no Brasil, a autora deixa o leitor com o desejo de conhecer melhor as ligações entre as histórias nacionais na região. As relações históricas e simbólicas entre Santiago de Cuba e o Haiti são tão intrigantes quanto o clima da tumba, festa de origem francesa, que reunia escravos vindos com seus senhores da Revolução de São Domingos e santiagueiros. Por outro lado, as fronteiras entre as regiões oriental e ocidental de Cuba parecem mais firmes que a cambaleante ordem colonial na América espanhola. Em certos momentos, Santiago de Cuba, epicentro político da parte oriental, parece apartada da porção ocidental, tendo-se a impressão de que se tratava de uma ilha dentro da Ilha, sem que a autora tenha nos explicado tamanha particularidade. Desse modo, as relações políticas entre Santiago de Cuba e Havana parecem frágeis naquele contexto de emancipação nacional.

Por fim, a sugestão é que Conspirações da raça de cor seja referência para quem se interessa pelas rebeldias e expectativas de igualdade inscritas nos projetos nacionais das Américas oitocentistas. Nesse sentido, o desassossego que o livro traz é uma boa provocação para nos fazer conhecer e investigar mais detidamente quais são os sentidos políticos guardados na palavra liberdade, nos episódios conspiratórios que marcaram a história das Américas nos seus diversos processos de emancipação política. 

Wlamyra Albuquerque é professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História dessa mesma universidade.


Serviço

Título: Conspirações da raça de cor – Escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881)
Autora: Iacy Maia Mata
Editora da Unicamp
Páginas:
304
Preço: R$ 48,00
Área de interesse: História
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