Edição nº 658

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de junho de 2016 a 12 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 658

Jogos e brincadeiras subvertem dogmas das escolas

Estudo feito no Prodecad mostra a importância do tempo de recreio

As escolas têm diminuído visivelmente o tempo de recreio das crianças e os adultos têm dirigido até mesmo o seu horário livre. Estudo de mestrado realizado no Programa de Integração e Desenvolvimento da Criança e do Adolescente (Prodecad) da Unicamp mostrou que para 70% das crianças o melhor lugar para brincar e o lugar em que mais brincam em seu horário livre é o Prodecad, que integra a Divisão de Educação Infantil e Complementar (Dedic). “A Unicamp vem na contramão do processo, dando maior liberdade às crianças e mostrando sua função social”, realçou Débora Jaqueline Farias Fabiani, professora de educação física da Dedic e autora da pesquisa.

O horário livre da Divisão de Educação Infantil e Complementar produz um ambiente propício ao jogo. É desafiador, provoca desequilíbrio e conflitos, mas gera oportunidades para novos aprendizados. Foi o que concluiu Débora, que desenvolveu seu estudo no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação Física (FEF) em conjunto com a Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). “O destaque do trabalho foi ouvir as crianças e tê-las considerado sujeitos histórico-culturais de direito que podem e devem falar de suas manifestações”, ressaltou a autora. “As pesquisas em geral só as observam, fazem inferências, mas não as escutam.”

Esse estudo foi feito no Prodecad nos meses de abril e maio de 2015, durante oito observações nos horários livres. Foram cerca de 50 minutos em cada observação. A autora entrevistou 15 crianças e três educadores. Catorze pais responderam a um questionário com uma questão aberta perguntando sobre a rotina das crianças durante a semana e os finais de semana.

As crianças tinham idade entre seis e dez anos, a maioria delas eram mulheres (53%), frequentavam o sistema formal quatro horas na Unicamp e, no contraturno, eram acolhidas no Prodecad, onde permaneciam duas horas. Eram filhas de funcionários e estudantes da instituição. Algumas já estavam ambientadas a essa rotina, uma vez que estavam nesse sistema desde bebês.

“Dentro das duas horas que permanecem no Prodecad (educação não formal), elas também têm o horário do almoço e da escovação. Então o tempo de brincar se reduz a 45 minutos. Mesmo assim, responderam que lá é o melhor lugar para brincar e isso é muito importante para elas e para a instituição, que oferece esse diferencial”, assinalou Débora.

A pesquisadora defende que é fundamental que as crianças tenham autonomia, mesmo com restrições para escolher as brincadeiras, seus parceiros, tendo o educador apenas como um suporte dessas relações com o mundo material, simbólico. “O tempo livre é necessário”, sustentou.

Brincadeiras
O jogo é uma atividade complexa que permite às crianças se apropriar da cultura e ressignificá-la. “Na perspectiva estudada, observamos crianças no horário livre e buscamos descobrir o conceito que elas tinham de jogo, do que brincavam, quais os lugares que mais brincavam, quais brincadeiras faziam, com quem faziam e, se aprendiam a brincar, o que aprendiam. Usamos o método de entrevista-conversa”, contou a mestranda.

A criança era entrevistada individualmente. A abordagem começava com a pergunta sobre o que ela estava brincando. A entrevista, que durava de cinco a 12 minutos, seguia um roteiro preestabelecido, porém flexível. A criança respondia às questões e podia continuar a conversa, que era gravada com tablet. As próprias entrevistadas podiam gravar suas vozes.

As crianças com seis a dez anos em geral falaram que brincar era uma forma de expressão e de comunicação com o mundo. Estava atrelada à diversão em relação ao outro. Brincar para elas era um encontro, era relacional. Enfatizaram que o melhor lugar para brincar de todos de sua vida era o Prodecad, por causa do parque, da areia, da possibilidade de brincar de verdade, de correr, de se divertir e também pela liberdade de jogar futebol.

As que tinham entre seis e oito anos brincavam mais no parque e de jogos de “faz de conta”. Recriavam personagens e às vezes transgrediam regras sociais. A maioria dos meninos escolhiam o futebol.

Já as crianças de nove a dez anos preferiam mais atividades esportivas e jogos de tabuleiro. “É interessante que, por faixa etária, elas acabavam se agrupando. Mas isso não impedia que se juntassem, brincassem no mesmo espaço e em conjunto”, relatou Débora.

Os educadores também responderam a entrevistas semiestruturadas. Sua formação era Pedagogia. Para eles, jogo era uma expressão e uma forma de comunicação com o mundo. Essas respostas se assemelharam às das crianças. Eles disseram ainda que, no jogo, as crianças produzem as culturas da infância. Salientaram que o seu papel nesse espaço livre é o de mediador, de incentivador e de suporte à criança. 

Pedagogia
De acordo com Alcides José Scaglia, docente da FCA e orientador da dissertação, o esporte é antes de tudo um jogo. Mas nesse estudo um dos problemas identificados atualmente foi a falta de espaços para que as crianças brinquem espontaneamente.

“Também notamos essa febre de dirigir as crianças nas festas de aniversário (que contam com monitores), nos hotéis (pela equipe de recreacionistas) e nos espaços dedicados a elas. Os pais matriculam os filhos em escolas de futebol, natação, sempre guiados pelo adulto”, lamentou o professor.

A sociedade impede que a criança tenha sua espontaneidade. E um dos aspectos mais relevantes do jogo é a possibilidade de a criança encontrar nele um ambiente ideal para satisfazer seus desejos.

Foi ainda feito um inquérito com os pais e verificou-se que haveria outros espaços nos quais as crianças poderiam brincar. Todavia, elegeram o Prodecad como o melhor espaço exatamente pela não intervenção”, salientou Alcides Scaglia. “Lúdico é liberdade de expressão. No momento em que brincam livremente, elas vivem o lúdico.”

O orientador comentou que essa pesquisa se distingue das demais pelo fato de ter sido feita em ambiente não formal. Fora do país, a França é um dos paradigmas do brincar mais espontâneo e Gilles Brougère é uma das maiores expressões em brinquedos e jogos da atualidade. No Brasil, a Unicamp é a referência, embasada nas experiências de professores como João Batista Freire (aposentado da FEF) e Nelson Carvalho Marcelino.

Alcides Scaglia destacou que o jogo é curioso por ser “subversivo”. A liberdade que provém dele permite que as crianças ressignifiquem constantemente a cultura lúdica. Ao viver esse ambiente do jogo, elas podem construir o que teóricos chamam de perspectiva de co-construção. A criança não é alguém que absorve a cultura, entrando nela de cabeça, sem filtro, sem crivo.

Quando as crianças são muito dirigidas no brincar, talvez esteja sendo formada uma geração que perde a chance de desenvolver seu papel social de protagonista do seu próprio jogo e que acaba jogando o jogo do adulto, tornando-se coadjuvante. “Quando é protagonista, desenvolve seu espírito crítico, sua criatividade, a possibilidade de ser alguém no mundo, que se move e que tem desejo de ser alguém que ela é no jogo”, disse o docente.

Qual é o prazer do jogo? Ele responde que é o prazer da criança viver algo irreal e expressar com segurança seus desejos que no mundo real são impedidos. “Quando aprende no jogo, esse exercício é transferido para sua vida. E é nesse sentido que a criança é subversiva. Ela não aceita mais imposições”, garantiu Alcides Scaglia. 

Desenvolvimento
Como educadora, Débora observa sempre o espírito crítico das crianças e defende que a liberdade para o jogo influi em todos os aspectos da vida. “Mas não é só a criança que desenvolve o jogo, entretanto acaba manifestando mais esse lado, até pelas possibilidades que o mundo adulto restringe”, expôs. “O adulto deveria jogar mais.”

Alguns defendem que o jogo é um treino para a vida. “Só que isso pode gerar um problema, pois temos uma tendência a olhar para a criança e ver o adulto que será. Pensamos no Vir-a-Ser. Ela já é. Essa é a chave da investigação”, revelou o orientador.

Ao estudar o horário livre, descobriu-se que não se deve olhar para os jogos que elas estão fazendo numa perspectiva funcional. “Não estamos preocupados se esse jogo serve para aprender matemática. É consequência, não fim. O fim do jogo livre é ele mesmo. É autotélico. Essa é a essência do jogo. Ele não serve para nada, mesmo que uma pessoa de fora esteja investigando e percebendo que ali estão ocorrendo aprendizados”, assinalou o docente.

Débora acrescentou que é até perigoso pensar no jogo de maneira funcional. Muitas vezes, quando a educação leva o jogo para dentro da escola, ela só olha isso e destrói o seu prazer. Contudo, é possível ver inclusive aprendizagens nele, o que muitas vezes não acontece em termos de motivação quando o jogo é regrado pelo educador sem considerar os seres do jogo, no caso as crianças, e dirigido de forma excessiva.

“Essa é a virtude de investigar o horário livre em um ambiente não formal. O ‘ser do jogo’ é tomado pelo ‘senhor do jogo’. Quando uma criança participa de um jogo dirigido pelo professor, nem sempre é tomada por ele. A forma como é conduzido acaba com sua essência: que é o fato de ser imprevisível”, explanou a autora.

Vocês aprendem no jogo? O que aprendem? As crianças demonstraram aprender as competências necessárias para se manter no jogo. “Falaram que aprendem um drible, a jogar”, afirmou a mestranda. “Já, para o educador, a criança aprende a conviver no jogo. Esse educador passa então a encontrar aprendizagem em tudo e a fazer inferências. Não que isso não ocorra, porém este não é o fim do jogo.”

O adulto, ressaltou ela, possui um olhar pedagogizado do jogo. Por isso começa a encontrar aprendizagens, até para se justificar. Por que o jogo está aqui? Porque ele serve para isso, para aquilo.

O adulto encontrou competências para a vida e a criança para se manter no jogo pelo próprio jogo. “Ouvir a criança faz com que se compreenda o jogo de verdade porque ela é o ser do jogo”, salientou Alcides Scaglia, que é corresponsável pelas pesquisas no Lepe (Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte). Essas pesquisas são realizadas em duas linhas: a pedagogia do esporte, que estuda as questões do jogo na perspectiva metodológica (de ensino do futebol, do voleibol, do judô, etc.); e a linha da pedagogia do jogo, na qual se insere a pesquisa da Débora.

Publicação

Dissertação: “O jogo no horário livre: a educação física na educação não formal”
Autora: Débora Jaqueline Farias Fabiani
Orientador: Alcides José Scaglia
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF) e Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA)