Edição nº 657

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 30 de maio de 2016 a 05 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 657

Única e múltipla


Ela é a moça que se vê na foto de cabelos cheios e crespos, de macacão branco, um pouco tímida, mãos no bolso. É a moça atrás do microfone, atrás de Tom Zé.  Em 1982, aos 17 anos, Regina Machado iniciava a carreira de cantora abençoada pelo grande. Havia recebido um convite para fazer vocal para o cantor e compositor e, ao lado de Tom Zé, fez muitas coisas. Gravou canções para a coleção “Taba” da Abril Cultural, dedicada ao público infantil, se apresentou em vários shows pela capital e interior de São Paulo, além de programas de TV. Foi amadurecendo e se consolidando como cantora e produtora cultural. Aos 27 voltou para a universidade como aluna e, aos 37, tornou-se professora do curso de Música da Unicamp. Já tinha participação em trilha de filme premiada em Gramado, disco solo com arranjos de Mario Manga, uma escola de canto e mais itens em um currículo de fazer inveja. Desde então foram mais dois discos e, mais recentemente, o reencontro com Tom Zé, com quem Regina já não mantinha muito contato. Mencionou a intenção de gravar músicas dele em um encontro rápido de camarim, depois de um show do compositor. E quando cinco canções estavam prontas, ligou para Neusa, a esposa do Tom Zé que cuida da carreira do artista. Dias depois foi a vez dele enviar um email de reconhecimento pela qualidade do trabalho. O disco que reúne nove canções, recriadas com os arranjos de Dante Ozzetti, ganhou o nome da segunda: “Multiplicar-se única”. Regina Machado agora ensaia o repertório para os shows que devem ocorrer em 2016. Ela conversou com o Jornal da Unicamp após uma de suas aulas no Instituto de Artes (IA).  


Jornal da Unicamp -
Multiplicar-se Única é o seu quarto disco. Como foi a escolha das canções do Tom Zé?
Regina Machado – No ano passado, chamei o Dante Ozzetti para fazer um disco novo, e comecei a ouvir canções do Tom Zé. Inicialmente o projeto não era apenas com as canções dele. Eu pensava em colocar uma ou duas canções do Tom Zé, como Menina Jesus, que eu havia cantado com ele no meu início de carreira, e provavelmente Complexo de épico, que conheci no momento da pesquisa.  Mas quando comecei a ouvir o repertório, tinha todo aquele material na mão e pensei “isso aqui dá um disco”. Bem, nós tínhamos o disco, mas tínhamos também uma grande responsabilidade porque as performances do Tom Zé são muito marcantes, ele é um artista com uma identidade muito forte. Seria uma responsabilidade trabalhar aquelas canções, se apropriar delas e, ao mesmo tempo, não deixar que elas perdessem a sua identidade original. Nosso objetivo era que a gente pudesse ser instrumento desse projeto do compositor, que ele manifesta nas canções, mas que também minha personalidade artística estivesse ali. O desafio era equilibrar as duas coisas.

JU – Como foi a produção do disco?
Regina Machado – Nós começamos a pré-produção somente eu e o Dante, gravando só voz, às vezes voz e violão. Antes de conceber os arranjos, o Dante se baseava no que eu estava fazendo vocalmente. Ele trabalhou muito com o Guilherme Kastrup criando, inicialmente, algumas texturas e ambiências para algumas das canções.  Gravamos cinco músicas já com os arranjos e decidimos mostrar para o Tom Zé. Deixamos uma cópia para ele e, alguns dias depois, Tom Zé me mandou um email enorme falando que ele tinha achado o trabalho incrível. Ele dizia que já tinha visto muita gente se dar muito mal tentando gravar as canções dele. No início, ele achou que pudesse ser mais uma experiência desastrosa. Ele ficou surpreso, disse que descobriu coisas nas canções dele que até então não tinha se dado conta; ele redescobriu a própria obra. Aí fomos até o final.

JU – O Tom Zé chegou a sugerir alguma canção?
Regina Machado – Depois que ele ouviu as cinco primeiras [Menina Jesus, O amor é velho – menina, Multiplicar-se única, Augusta, Angélica e Consolação e Solidão], sugeriu que eu escutasse o disco Estudando a bossa e de fato encontrei a música João nos tribunais, que é incrível, uma síntese não só da importância de João Gilberto para a música popular brasileira, mas também um relato muito preciso daquele momento e do impacto que a presença dele causou na música brasileira e mundial.

JU – Você tinha essa intenção, de trazer as narrativas do Tom Zé para o seu trabalho?
Regina Machado – O Tom Zé é um cronista, um baiano radicado em São Paulo há muitos anos e que tem uma visão muito peculiar da cidade. Ele é um artista muito urbano, muito inquieto, que trabalha muito com essa ideia do caos em cena e na composição também. A maneira como ele descreve essas narrativas sempre me chamou muito a atenção desde que trabalhei com ele. Mas, naquele momento, eu estava aprendendo tudo isso. Uma coisa que eu achei muito boa foi poder olhar para esse material agora mais madura, podendo compreender aquilo ali de outro jeito. Uma coisa aos 17, outra aos 50 anos de idade. O disco tem essas canções com as quais eu tenho profunda identidade com o que está sendo dito. Eu tinha que encontrar a minha maneira de dizer e acho que foi nesse mergulho que chegamos nessas nove canções e chegamos, também, a essa ordem que, de alguma maneira, estabelece uma narrativa para o disco. Isso, inclusive, foi uma coisa que eu aprendi com o Tom Zé lá, muito cedo. Me lembro sempre dele dizer que não tinha nada mais chato do que uma música depois da outra, se você não conta uma história, se não dá um sentindo para aquilo. Então, quando eu escrevi esta ordem, foi pensando nisso também. Os meus outros discos também têm isso, eu aprendi mesmo.

JU – Não é uma música depois da outra...
Regina Machado – Você está sempre contando uma história. É claro que com a internet essa história vai ser recontada de muitas formas. As pessoas ouvem uma música depois vão ouvir outra, as pessoas criam as suas próprias histórias, mas a minha está aqui, está contada aqui no “Multiplicar-se única”.

JU – Qual é essa narrativa então?
Regina Machado – Acho que é a narrativa do artista que busca através das canções entender coisas da condição humana, falar sobre o amor, sobre as perdas, sobre o quanto a sociedade pode ser injusta, dura e, por vezes, em oposição a isso, completamente apaziguadora. Você vê isso em Lua-girassol que é quase uma canção ritual, uma canção muito circular, que faz a gente entrar em conexão com os sentimentos mais profundos e mais simples também, e de repente ver coisas como a Menina Jesus que é atualíssima e põe em discussão as diferenças sociais, a sexualidade, um aspecto desumano das cidades. Incrível como as canções se atualizam. 

JU – A sua voz é muito forte, mas ao mesmo tempo também tem uma característica mais suave, doce...Você procurou, de alguma maneira, tornar a obra do Tom Zé mais palatável?
Regina Machado – É uma coisa do meu trabalho. O Tom Zé é um artista que lida com o incômodo, com o desconforto. Ele provoca muito. No meu trabalho espero ter esse componente provocador, mas tenho também outro lado mais lírico, mais doce talvez. Acho que pude, ou pelo menos tentei temperar, colocar um pouco das duas coisas. Então tem coisas mais agressivas e mais irônicas como Complexo de épico, que é uma autoironia, uma canção que fala do lance do compositor se levar muito a sério, mas que também fala o quanto nós nos levamos muito a sério. E depois do compositor, os professores universitários.

JU – Ficou alguma coisa de fora, que você queria ter gravado, mas não deu?
Regina Machado – Dentro da seleção que eu fiz, eu separei em torno de vinte músicas, mas aí tem a sua concepção das coisas. Eu acho que um disco tem que contar uma história em pouco tempo. A canção em si conta uma história que poderia estar em um livro, poderia ser contada de uma maneira muito mais extensa. A canção tem esse poder incrível de sintetizar e colocar em três minutos uma narrativa por vezes bastante complexa. Eu acho que o disco tem um pouco esse papel de compilação. Todos os meus discos têm um pouco essa ideia de serem curtos, de provocar aquele desejo de ouvir de novo e não de saturar. Eu prefiro estimular isso.

Hoje em dia a nossa relação com o tempo é muito diferente, tudo é mais rápido, as pessoas estão mais inquietas, não conseguem ouvir por muito tempo, então existe todo um processo educativo que é de estimular a escuta, a atenção, o desacelerar, se entregar para aquele rito. Porque hoje ir a um show ou ouvir um disco é um ritual, você está parando um pedacinho dos seus afazeres para dedicar seu tempo àquela fruição, para experimentar aquilo ali, para ser tocado emocionalmente. A música pode nos levar para um lugar de reflexão, mas ainda assim, protegido da crueza da vida real.

 JU – Dentro da sua carreira como esse disco se coloca?
Regina Machado – Tem uma coerência dentro da minha história porque a música brasileira para mim é prioritária, embora tenha canções em outros discos que eu cante em alemão, em inglês e espanhol. O curso que dou na Unicamp é voltado para a voz na canção popular brasileira, então os alunos vão conhecer essa história, vão entender o que isso significa para nós, o quão este é um patrimônio preciosíssimo da nossa cultura e a gente se apropriar disto nos faz melhores cidadãos. Esse disco recupera uma parte do meu início, e oferece ao público uma outra leitura das canções de Tom Zé, que é um dos maiores compositores da nossa história.

JU – Eu percebo que você tem esse trabalho de valorização da canção... Isto é fundamental para você?
Regina Machado – Eu sou uma cantora dedicada à canção, que eu nem sei mais se é tão popular assim. Considero fundamental porque existe esta tradição, ela está viva, embora a grande indústria, os grandes meios de comunicação, a televisão especialmente, não se interessem mais por ela. Mas, o fato é que ela continua em franca produção. Nós temos novas gerações de compositores, de cantores, inclusive muita gente está se formando aqui na Unicamp, artistas que estão em cena, estão atuando e gravando com propostas muito legais, gente que está dando continuidade a esta tradição, o que significa ter um ponto de contato e apontar um caminho novo. Isso está vivo. Como patrimônio cultural ela é importante também porque o Brasil produz uma canção que talvez não encontre pares em nenhum outro lugar do mundo, visto que ela traça um elo entre a cultura popular e a chamada alta cultura. Na canção brasileira conseguimos uma síntese em termos de qualidade de letras e de melodias que é difícil encontrar, ela alcançou um nível de excelência e de diálogo com outras artes, com a literatura, com as artes plásticas. É uma história que começou lá nos anos 1920, 1930, com a geração de Noel Rosa, Ary Barroso, Wilson Batista, Lamartine Babo, passou por Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Chico Buarque, Edu Lobo, José Miguel Wisnik, Itamar Assumpção, Luiz Tatit para citar apenas alguns poucos compositores, sem falar nos intérpretes.

São muitas gerações de artistas que consolidaram uma tradição que não para de se reinventar, alimentada por nomes como Fred Martins, Kristoff Silva, Kiko Dinucci, Chico Saraiva, Fabio Barros e Romulo Fróes, por exemplo. Eu tenho um orgulho imenso de trabalhar com a música popular brasileira. Um orgulho e um prazer que se renovam não só na realização artística, mas, na possibilidade de levar esse universo para jovens estudantes que precisam conhecer, se apropriar e ter orgulho dessa história.