Edição nº 656

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 16 de maio de 2016 a 29 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 656

'Nossa história é de pouco amor à democracia’


(Continuação da página 8)

Se consumado o impeachment, quais suas perspectivas para o futuro?

Leandro Karnal

Há uma tendência muito forte e natural, do interesse jornalístico, de saber dos historiadores o futuro. Infelizmente, a minha área se especializou no estudo do passado. Então, o que acontece no que a gente chama de plano cíclico da política é que o afastamento provável da atual chefe do Executivo e a ascensão, provável, do vice-presidente, aliás eleito com ela, na mesma chapa, é a separação entre presidente e vice, como aconteceu com o vice-presidente Café Filho, quando Getúlio Vargas entrou na grande crise de 1954, em função de corrupção e outras questões, ou a questão do vice-presidente Itamar Franco, quando Collor sofreu seus problemas: o vice-presidente, nessa etapa, se afasta do poder, como se não tivesse sido eleito junto com esse poder. E esse vice-presidente se torna quase um inimigo político, porque de fato ele quer poder e a presidente Dilma quer poder, lembrando que ambos foram eleitos – os 54 milhões de votos foram dados aos dois.

Então, é absolutamente previsível que um governo Temer vá representar uma certa aproximação com as bases no Congresso, que estão desgastadas, bastante desgastadas, na gestão Dilma, e ele terá um período em que haverá maior tranquilidade com o Congresso. O PT provavelmente será afastado do Poder Executivo e aguardará um aumento dos problemas para voltar, nessa alternância que vem desde o século 19 – a gente fala, nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder. 

Então, no século 19, durante o Império, quando havia “luzias” e “saquaremas”, ou seja, liberais e conservadores, um partido subia ao poder, fazendo uma crítica enorme ao outro, e ao descer do poder passava o programa da oposição para o outro. Essa era a tradição política.

Esse caráter cíclico significou que há governos mais privatizantes, com menos ênfase em programas sociais, e isso pode eventualmente favorecer o mercado, e há governos com maior ênfase na distribuição de renda, ainda que também favoreçam o mercado, lembrando que, no governo Lula, tivemos os lucros históricos mais notáveis dos bancos brasileiros.

Não estamos falando de esquerda e de direita. Não estamos falando de polarização ideológica. Porque o mercado, na verdade, está tranquilo, tanto num governo do PSDB quanto num governo do PT. Lembrando que houve uma aproximação intensa das empresas capitalistas, liberais, como as empreiteiras, do governo. Logo, não são dois projetos como eram, por exemplo, Salvador Allende e as forças militares do Chile. Não se constituem em dois projetos distintos, mas nesse caso se constituem em duas facções de poder muito parecidas.

E, depois de um tempo no poder no Terceiro Mundo, como aconteceu no governo FHC, de oito anos, como acontece no atual governo do PT, que se sucede há duas gestões de Lula e uma gestão e meia da presidente Dilma, o desgaste é muito grande. O PT volta à oposição, aguarda, o PSDB, o PMDB e as outras forças que estão subindo ao poder chegam, se desgastam daqui a pouco, e o PT provavelmente reaparece, com as bandeiras da justiça social, da distribuição de renda. Esse é um jogo de distribuição de poder.

O que é novidade é que, em alguns momentos, a população fica participante da política, fora do plano eleitoral e fora do plano partidário. Manifestações frequentes, como agora, de rua, ocupações e outras manifestações podem indicar que estamos diante de uma atomização, irradiação ou capilarização da política, algo pouco comum no Brasil. A política brasileira funcionava como Copa do Mundo, na qual quadrienalmente havia uma certa participação. Ela agora se transformou numa capilarização muito maior, o que pode ser positivo ou pode ser negativo: porque multidões na rua podem anunciar transformações estruturais, mas também podem saudar o novo führer do fascismo.

As multidões não são sinônimo de boa escolha política. O primeiro plebiscito da história, quando Pilatos pergunta ao povo se quer o ladrão ou Jesus, o povo democraticamente grita “Barrabás, Barrabás”. O grito da multidão não é sinônimo do poder do povo. E nem da justiça, e nem da ética. Porém, a política está capilarizada, e isso é muito mais importante, talvez, do que qual facção do poder esteja disputando. Não acho, insisto, que haja uma diferença brutal entre PT, PMDB e PSDB. Não está no poder, nem de longe, nenhum partido identificado com massas, com bases ou com reformas revolucionárias. São facções, geralmente conservadoras, de propostas de poder. Não estamos discutindo o poder do PSOL contra o DEM, onde talvez houvesse uma diferença ideológica. Estamos discutindo facções de poder.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite

O colegiado que a julgou era manipulado à distância pelo presidente da Câmara, reconhecidamente malfeitor, e continha grande número de indiciados pela Polícia Federal. Não há como ter expectativas de um novo governo que nasce de imposições de forças neoliberais, com nenhuma conexão com interesses nacionais.
 

Simon Schwartzman

Eu acho será uma época difícil, saindo de um período muito complicado, com o país arruinado, as instituições muito abaladas, então acho que teremos um período muito incerto pela frente. Teremos eleições daqui a dois anos, mas a questão agora é ver se o governo Temer que vai se instalar vai conseguir, minimamente, tirar o país da situação dramática de crise e administrar até as eleições.
 

Walquíria Leão Rego

Se o impeachment se consumar, será o maior, ou um dos maiores golpes já realizados contra a democracia brasileira. Volto a insistir: significa dizer aos eleitores: seu voto não vale nada! Nós, os verdadeiros detentores dos principais recursos de poder, podemos, quando nos for conveniente, destruir seu voto, vamos construir maiorias congressuais dos modos mais ilegítimos. Para tanto, nos utilizaremos dos Cunhas, de vários indiciados e tudo bem. Nossa moralidade é seletiva, como a de grande parte da classe média.  A teoria democrática sempre advertiu sobre o perigo de se fabricar maiorias ocasionais: elas podem até ser compradas, e por muito dinheiro. 

Infelizmente, nossos destino e tragédia são que a história do Brasil é uma história de pouco amor à democracia.  Não fomos capazes de desenvolver entre nós uma cultura pública democrática. Em 1954, o professor Florestan Fernandes escreveu um penetrante artigo em que diz isso: as elites brasileiras não permitem, não aceitam, que o povo tenha melhorias e que o povo participe da política. Consideram e agem o tempo todo para afirmar, de várias maneiras, que a política constitui mais um de seus privilégios.

Para reforçar esta forma de exercício do poder, esta elite sempre conseguiu um rol de jornalistas que, sem nenhum pudor, renuncia aos princípios básicos do jornalismo para se transformar em verdadeiros jagunços. Muitos deles monopolizam o direito de voz, falam, escrevem e opinam em vários órgãos de difusão, estão nas televisões, nos principais jornais, são âncoras dos principais noticiários. O caso brasileiro, neste sentido, já é matéria de seminários internacionais, passou a ser considerado um caso de estudo por especialistas internacionais das relações entre mídia e política.

Acho que o futuro será muito, mas muito ruim se se consumar o golpe. Porque, independentemente de se estar de acordo ou não com o governo, o direito de crítica e de oposição é uma coisa, mas a oposição precisa ter qualidade democrática, e esta, que está rompendo com o Estado de Direito, mostra seu desprezo pelas regras democráticas fundamentais, sobretudo pelo princípio da soberania popular. Por isto, é golpista.

Acho que o futuro será a confirmação deste desapreço, afirmando mais uma vez seu desprezo aos resultados das urnas.  Usurpa o poder sem nenhum disfarce. Impressiona qualquer um que tenha um pouco de leitura de história. Mostram, a quem quiser ver, seu descompromisso com a democracia e com a nação.   Penso que mais uma vez estão abrindo uma ferida no país que não se sabe como vai evoluir. Não dá para saber. Mas o recado foi dado: não respeitamos a isonomia das urnas, o voto popular não vale nada. Mudarão o sistema eleitoral para o modo menos participativo possível.

Sabem muito bem, como a literatura mostra abundantemente, que o verdadeiro combate à corrupção é feito com participação intensa dos cidadãos na invenção e reinvenção de instituições de controle eficazes de todos os poderes da República. Sem participação ativa da cidadania e com corporações de Estado imersas na cultura do privilégio, e que não respondem a ninguém, falar em combate à corrupção é um embuste. Um Estado Penal é o que querem.

Onde isto resolveu o antigo drama das repúblicas, que é a corrupção? Às paixões destrutivas dos homens, a única resposta reside na formação de uma rede de controles democráticos. Nenhum poder sem controle.  A propósito, qual foi o saldo, para a Itália, da operação Mãos Limpas? Foram presas certas pessoas, a classe média vibrou por certo tempo com certos juízes, que já desapareceram da cena pública, pois as operações penais, por si sós, não têm o poder de alcançar as raízes sistêmicas do problema. Destruiu-se o sistema partidário existente desde o pós-guerra, bem como o amor que os italianos dedicavam à política e a às atividades coletivas, e a corrupção prossegue, agora, sem nenhuma máscara. Instalou-se certa apatia e indiferença política na maioria da população. E a figura que emerge deste processo, com muito poder, foi nada menos que Silvio Berlusconi, que era e é a encarnação mais acabada da corrupção e do enriquecimento ilícito. Foi o Cunha dos italianos.