Edição nº 655

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de maio de 2016 a 15 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 655

Nem limpa, nem cirúrgica

Tese aponta que uso de drones pelos EUA contribuiu para
banalizar a violência em guerras nas quais o país está envolvido

Ao contrário do que apregoa o discurso das autoridades políticas e militares dos Estados Unidos, o uso de Veículos Aéreos Não Tripulados (VANTs), os conhecidos drones, não contribuiu para o surgimento de guerras rápidas, limpas e cirúrgicas, mas sim para a banalização da violência e barbarização dos conflitos nos quais o país está envolvido. A conclusão é da tese de doutorado de Alcides Eduardo dos Reis Peron, defendida no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, sob a orientação do professor Rafael de Brito Dias. De acordo com o autor da pesquisa, o emprego dessa tecnologia também favoreceu o estabelecimento de um estado permanente de guerra, sem que este seja plenamente percebido pela opinião pública norte-americana.

No estudo, Peron, que é graduado em relações internacionais, compreende o drone como um dispositivo que cristaliza os interesses políticos de uma época, notadamente no que se refere às decisões no âmbito da segurança nacional dos Estados Unidos. “Eu utilizei nas minhas análises o suporte teórico proporcionado pela área que investiga temas relacionados à ciência, tecnologia e sociedade. Nesse contexto, eu defendo a ideia de que os drones são o vetor de um discurso sobre a guerra, que tem evidentemente um forte componente ideológico”, explica.

Segundo esse pressuposto, os VANTs servem ao propósito das autoridades de promover um distanciamento dos norte-americanos dos horrores da guerra. Ao enviar máquinas e não tropas aos campos de batalha, o governo fomenta um sentimento “sanitizado” da sociedade em relação aos conflitos. “Ao incorporarem o discurso de uma guerra precisa, limpa e sem efeitos colaterais para os que não são os alvos diretos das operações, os norte-americanos assumem a falsa sensação de que não estão em guerra”, reforça Peron.

Esse comportamento fica mais claro quando se analisa os resultados de uma pesquisa de opinião realizada pela empresa Gallup. De acordo com o levantamento, 65% dos norte-americanos aprovam o uso de drones no combate ao terrorismo. Entre os entrevistados, foi constatado que 48% acompanham com interesse as notícias sobre os conflitos nos quais o país está envolvido. Destes, 74% concordam com o emprego dos VANTs contra norte-americanos em outros países ou contra terroristas em outros países.

Por meio dos veículos não tripulados, observa o professor Dias, os Estados Unidos encontraram uma maneira de realizar intervenções militares em estados soberanos que não estão em guerra. “Em outras palavras, o país utiliza uma solução tecnológica para burlar limites políticos e jurídicos”. Devido aos avanços registrados nos últimos anos, prossegue o docente, os drones ganharam autonomia suficiente para serem operados a partir do próprio território norte-americano. Com isso, também os militares se distanciam do confronto, o que contribui para que passem a enxergar a guerra com naturalidade.

Peron explica que tanto os pilotos dos drones quanto os operadores dos sensores vivem num estado permanente de guerra e paz. Ao encerrarem o turno de trabalho, eles voltam normalmente para casa e para suas famílias. O pesquisador cumpriu parte do doutorado na Inglaterra, onde foi investigar qual era o sentimento desses militares em relação ao trabalho que executam. Ele se baseou em uma pesquisa desenvolvida pelo médico Wayne Chapelle, que entrevistou 1.600 operadores de drones.

Segundo o estudo, somente 20% deles apresentavam algum tipo de estresse, sendo a maioria dos quadros associada a questões operacionais e não diretamente envolvida com as ações de guerra. Dito de modo simplificado, esses profissionais são tão estressados quanto um professor, um jornalista ou advogado, ainda que o ofício deles seja, em muitas ocasiões, ceifar a vida de seres humanos, vários deles sem qualquer vínculo direto com o terrorismo. “Existem mecanismos que permitem às pessoas se desligarem emocionalmente de uma situação, o que abre a possibilidade para cometerem um ato ilegal ou eticamente condenável”, esclarece Peron.

No caso dos pilotos de drones e operadores de sensores, esse mecanismo é potencializado pelo já referido distanciamento do campo de batalha. “Durante as operações, eles não sentem cheiro, não ouvem som e não enxergam cores. Esses combatentes sabem que estão matando pessoas, mas a morte se torna abstrata para eles. Ela é apenas a morte”, pontua o autor da tese. O professor Dias destaca dois pontos que considera importantes sobre a pesquisa. O primeiro deles é o fato de Peron ter promovido o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento, como engenharia, economia, geopolítica etc, de modo a buscar explicações para as questões abordadas.

O segundo refere-se ao esforço do estudo para fazer emergir as pessoas que estão do outro lado da guerra, e que normalmente permanecem invisíveis aos olhos da comunidade internacional. O docente lembra que onde vivem os terroristas, vivem também civis sem qualquer tipo de engajamento com o terrorismo ou movimentos antiamericanos. “Os taques com drones alteram o modo de vida dessa população. As crianças do Paquistão, por exemplo, evitam sair às ruas em dias claros porque é justamente nessa circunstância que as operações ocorrem com maior frequência”, relata Dias.

Os resultados dos ataques com veículos não tripulados nada têm de cirúrgicos e limpos, insistem os pesquisadores. Dados obtidos por Peron a partir do cruzamento de informações de três conceituadas plataformas dos Estados Unidos revelam que apenas no Paquistão, no período de 2004 a 2014, aproximadamente 3.500 pessoas foram mortas em ações com drones. Destes, 190 (5,4%) eram crianças. “De todas as vítimas, somente 52 (1,5%) tinham a entidade conhecida pelas autoridades norte-americanas”, elenca Peron.

Os relatos dos combatentes acerca de ações de guerra são impressionantes, como observa o professor Dias. “Há um depoimento no qual o operador olha e afirma que acha que o alvo foi um cachorro. Outro, porém, diz que a vítima foi uma criança. Tudo com grande naturalidade. Vale destacar que a sala de comando dos drones se assemelha muito ao cockpit de determinados videogames. Ocorre que os jogos de guerra, nesse caso, geram vítimas reais”, adverte o docente.

Origem

Os drones foram desenvolvidos para serem utilizados como dispositivos de vigilância. Pelo menos este era o objetivo inicial do engenheiro aeronáutico Abe Karem, conhecido como “pai do drone”. Nascido em Bagdá, ele migrou primeiramente para Israel, onde trabalhou para o exército local, e depois para os Estados Unidos. A ideia original era enviar os veículos para fazer o reconhecimento do terreno e a identificação dos inimigos, através de câmeras e sensores. O drone ofereceria, por assim dizer, suporte para uma posterior operação de ataque.

O equipamento também foi utilizado pelo exército israelense como uma espécie de isca. O VANT era lançado com o propósito de ser localizado e atacado pelos inimigos. Com isso, Israel identificava as linhas inimigas e as bombardeava. Já as autoridades militares dos Estados Unidos perceberam a oportunidade de transformar o drone em uma arma letal, promovendo o acoplamento de mísseis e metralhadoras. “Aliás, essa junção é que permitiu ao país passar ao largo das questões legais que impediriam o uso desse tipo de artefato bélico. Como drone e armamentos já tinham aprovação separadamente, os norte-americanos promoveram a união deles, driblando assim a necessidade de submeter a admissão da tecnologia ao ordenamento jurídico internacional”, detalha Peron.

Conforme o autor da tese, as questões abordadas em seu trabalho têm sido debatidas e denunciadas por organizações não governamentais tanto nos Estados Unidos quanto em outros países. “Ocorre, porém, que esse movimento ainda não chamou a atenção do grande público, principalmente porque o lobby contrário é muito forte. Vale lembrar que algumas empresas de alta tecnologia envolvidas na produção de drones estão entre os principais financiadores das campanhas eleitorais americanas, principalmente do Partido Democrata, em cujas administrações o uso dos VANTs cresceu exponencialmente”, registra Peron, que contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência do Ministério da Educação.

Publicação

Tese: American way of war: O reordenamento sociotécnico dos conflitos contemporâneos e o uso de drones”
Autor: Alcides Eduardo dos Reis Peron
Orientador: Rafael de Brito Dias
Unidade: Instituto de Geociências (IG)
Financiamento: Capes