Edição nº 655

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de maio de 2016 a 15 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 655

Dissecando e traduzindo ‘A tia fingida’


Uma tradução inédita de La tía fingida – texto praticamente desconhecido no Brasil – e um estudo sobre a polêmica de que seu autor seria ou não seria Miguel de Cervantes, alçado a maior escritor da Espanha e um dos maiores do mundo com Dom Quixote de La Mancha, compõem a dissertação de mestrado de Rafael Augusto Boni Bisoffi, orientada pelo professor Alexandre Soares Carneiro e apresentada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). O texto foi descoberto no final do século 18, dentro de um manuscrito que não identifica autores, mas que traz dois outros escritos sabidamente de Cervantes por fazerem parte da coletânea Novelas exemplares, que ele publicou em vida – são originalmente 12 novelas e A tia fingida poderia ser a 13ª.

Rafael Bisoffi explica que “novela”, na Espanha da época, designava tipos de texto narrativo ficcional que iam do que chamamos hoje de conto até o romance. “É um termo difícil de traduzir e melhor explicado pela etimologia: novela vem do novo, de uma narrativa em prosa não prevista dentro dos gêneros clássicos como o drama, a epopeia e a lírica. Ela surge na Itália por volta do século 14, início do humanismo, com Giovanni Boccaccio, autor de Decameron – justamente uma coleção de cem novelas. O contexto que estudei é do Século de Ouro espanhol, o período de Cervantes, que no prólogo de Novelas exemplares afirma ter sido o primeiro a ‘novelar’ de fato no país – outros haviam feito, mas em cópias ou traduções. Até hoje os espanhóis referem-se ao romance como novela, inclusive a D. Quixote.”

Segundo o autor da dissertação, o manuscrito de Francisco Porras de la Cámara, cuja data provável de feitura é 1604, foi encontrado em 1788 por Dom Isidoro de Bosarte, erudito e diplomata espanhol. Traz uma miscelânea de textos, incluindo duas “novelas exemplares”: El celoso extremeño e Rinconete y Cortadillo. “A questão é que o manuscrito foi dedicado ao divertimento de um arcebispo [Niño de Guevara] falecido em 1609 (data limite, portanto, para a manufatura da miscelânea), enquanto a publicação de Novelas exemplares se deu em 1613. A diferença de quatro anos significa que os dois textos reconhecidamente de Cervantes não foram copiados do livro e sim de outros manuscritos (originais do escritor ou deles copiados) – esse tipo de circulação de textos era bastante comum.”

Bisoffi esclarece que não teve a pretensão de dirimir a dúvida sobre a autoria de A tia fingida, ainda mais diante de todo o esforço despendido pelos cervantistas desde sua descoberta, sem sucesso. “Meu trabalho tem caráter duplo. Quis trazer um texto desconhecido no Brasil, em tradução anotada: há muitas notas de rodapé para explicar passagens de um espanhol do século 17, difícil até para o falante nativo. Em outra parte da dissertação trato da polêmica envolvendo Cervantes e também de aspectos da Universidade de Salamanca (contexto onde transcorre a novela) e da questão de autoria e circulação de manuscritos. Parece que só tivemos livros depois da invenção da imprensa, mas a circulação de textos copiados a mão perdurou por bom tempo.”

O enredo

A tia fingida, na opinião do seu tradutor, parece inspirada em Giovanni Boccaccio, no sentido de contar histórias mundanas. Salamanca era então o grande centro universitário da Espanha e um dos maiores da Europa, atraindo estudantes de todas as regiões de um país heterogêneo até hoje, haja visto o espírito separatista na Catalunha e no País Basco. A história começa com dois estudantes fanfarrões da Mancha (mesma região de D. Quixote) caminhando por um bairro suspeito da cidade, até atentarem para uma gelosia (tipo de janela engradada) que impedia a visão do interior. Ficam sabendo pelo vizinho, um artesão, que ali vivem duas mulheres, uma senhora de ar nobre e uma jovem extremamente bela, o que só faz aguçar a curiosidade deles.

Já suspeitando de que se trata de prostitutas atraídas pela fama do bairro, os estudantes inspecionam a casa, verificam que está trancada e aguardam, até a chegada de um estranho cortejo: um escudeiro, duas damas de honra, a venerável senhora e a jovem que aparenta 19 anos, realmente belíssima e algo extravagante com seus saltos altos – todos entram rapidamente e se trancam. Obcecados pela beleza da jovem, os fanfarrões reúnem na mesma noite uma trupe de músicos manchegos para uma estrondosa serenata à janela da misteriosa casa. Quem aparece é uma das damas de honra, tentando afastar a trupe com um discurso afetado, em favor da honra de suas senhoras.

A interferência da polícia faz o grupo se dissipar, mas os dois jovens manchegos procuram a ajuda de um amigo rico e aventureiro, que se interessa em conhecer as mulheres e envia um pajem à “tia fingida”. Interessada no estudante rico, a tia responde através da mesma dama da janela, que embora tente convencê-lo da pureza de suas amas, acaba subornada para revelar que a velha vetusta já tinha “vendido” a jovem cortesã como virgem por três vezes; e aceita introduzir o rapaz secretamente na casa, escondendo-o atrás da cama da donzela para que dela se desfrutasse mais tarde da noite.

Esperança é o nome da moça, que já ciente do complô e ansiosa para ir ao quarto, vê-se obrigada a ouvir um longo sermão em que a tia fingida, com uma sinceridade chocante, ensina-lhe pormenores do ofício, especialmente sobre como lidar com os homens conforme a província de onde vieram. O jovem atrás da cama ouvia tudo, até se trair por um espirro. A velha senhora arma uma cena, tentando retomar sua aparente nobreza, enquanto a dama tenta convencê-la a aceitar o novo cliente. É nesse momento que irrompem os policiais, que desconfiados das moradoras da casa já estavam à espreita para o flagrante.

As duas mulheres saem presas e lá fora, em meio à comoção popular pela ação da polícia, estão os dois estudantes manchegos, que se aproveitam da confusão para juntar sua trupe e resgatar Esperança, abrigando-a na pensão onde moravam. Ambos flertam com a jovem e chegam a brigar por ela, que acaba aceitando o pedido de casamento de um deles, sendo levada para outras terras e deixando a condição de prostituta. Fica-se sabendo neste final que Esperança foi sequestrada na infância, assim como outras meninas, pela vetusta senhora – daí o título A tia fingida, que acaba punida e humilhada em praça pública como bruxa.

Desconforto

De acordo com Rafael Bisoffi, o trecho do sermão de La tía é muito similar ao encontrado em outra obra, do italiano Pietro Aretino, contendo um diálogo de prostitutas sobre como agradar homens de diferentes regiões, o que levou um cervantista a afirmar que se trata de uma cópia. “É um argumento que refuto em minha dissertação, mostrando que não se fez uma tradução direta. Mas, como há muitas semelhanças, o texto italiano pode ter sido uma referência para o autor de A tia fingida, lembrando que Cervantes diz ter sido o primeiro a escrever novelas originais. Acho possível que seja mesmo dele.”

O pesquisador acrescenta que Cervantes cita Pietro Aretino em Novelas exemplares, ainda que depreciativamente, porque o italiano lidava com a questão erótica e não servia de referência para um escritor daquele século. “As Novelas exemplares possuem justamente um caráter exemplar, de moralidade, e entre elas não caberia A tia fingida com seu tom imoral. Uma das novelas tem enredo parecido, Ciganinha, sobre uma menina sequestrada por ciganos, mas que se mantém pura ao longo da história e, no final, descobre-se que é de família nobre. Não é o que acontece com Esperança, que consegue se casar mesmo sendo prostituta, quando seu destino para a época seria morrer por não ter casado virgem. Cervantes pode ter achado a piada interessante, recontando-a de outra forma e decidido não publicá-la. Mas certamente não é uma 13ª novela exemplar.”

Curiosamente, conforme Bisoffi, A tia fingida não recebeu tanta atenção do descobridor do manuscrito, Isidoro de Bosarte, cujo foco estava nas duas novelas exemplares que utilizou para publicar um estudo crítico; depois, quase que em nota de rodapé de jornal, informou que havia encontrado um terceiro texto. “Esta informação começou a circular, iniciando-se esta grande discussão sobre quem seria o autor. A hipótese mais provável é de que De la Cámara tenha copiado as duas novelas de outra pessoa que as copiou dos manuscritos de Cervantes, já que era comum fazer circular textos que considerassem interessantes, sem se importar com a autoria.”

Uma complicação apontada pelo autor da dissertação é que não restou um manuscrito sequer de Cervantes (os críticos têm acesso apenas a edições da época), ao passo que os copistas, não raramente, faziam modificações no gesto de copiar. “Para atiçar a fogueira, no próprio prólogo de Novelas exemplares, Cervantes admite que existem textos seus circulando anonimamente. Por outro lado, o fato de La Tía estar próxima às duas novelas exemplares dentro do manuscrito, não implica que tenha sido copiada de uma mesma pessoa – isso foi motivo de muita discussão no século 19, quando o texto começou a circular em volume e em jornais, com alguns críticos publicando-o literalmente como a 13ª novela exemplar. Há muito debate e nenhuma conclusão.”

Rafael Bisoffi informa que, de modo geral, os argumentos giravam em torno do estilo ou se o conteúdo de A tia fingida estaria de acordo com o das novelas. “A crítica contrária à autoria de Cervantes acusa que não se trata de um texto de qualidade e, sendo um manuscrito, não revisado para publicação, realmente apresenta problemas. Discuto bastante a questão da autoria na dissertação e vejo que tanto interesse se deve à importância simbólica de Cervantes, o grande autor da Espanha, grande a ponto de emprestar seu nome ao instituto responsável por difundir a cultura espanhola. Por exemplo, quando se fala da obra completa de Cervantes, como tratar um texto como A tia fingida, deve ser incluído ou não? É uma dúvida que causa enorme desconforto dentro da crítica cervantista.”

Publicação

Dissertação: “Tradução e estudo de ‘La Tía fingida’”
Autor: Rafael Augusto Bonin Bisoffi
Orientador: Alexandre Soares Carneiro
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)