Edição nº 654

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 02 de maio de 2016 a 08 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 654

Os riscos do ‘útero obeso’

Estudos constatam que filhos de mães obesas têm maior
predisposição a doenças decorrentes de alterações metabólicas

Filhos de mães obesas têm maior predisposição para o desenvolvimento de patologias decorrentes de alterações metabólicas, como a própria obesidade e o diabetes. A constatação vem de pesquisas realizadas no Laboratório de Distúrbios do Metabolismo (LabDiMe), instalado na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, com campus na cidade de Limeira (SP). Segundo os estudos, feitos em modelo animal, as proles geradas por fêmeas submetidas a dietas ricas em gordura tendem a apresentar distúrbios metabólicos que estão envolvidos no surgimento dessas e de outras doenças.

A transmissão dessas características das mães para os filhos está relacionada com o que os especialistas denominam de programação metabólica. Esse mecanismo, por sua vez, sofre influência da regulação epigenética, que é diferente da alteração genética. Enquanto na primeira ocorrem mudanças químicas no DNA, entre elas a metilação, na segunda acontecem modificações nas bases do código genético. “A programação metabólica pode ter origem na exposição a algum agente do ambiente ou em alguma condição existente no período de gestação, que é o tema das nossas pesquisas”, explica o professor Márcio Alberto Torsoni, que coordena o LabDiMe ao lado das professoras Adriana Souza Torsoni e Marciane Milanski.

De acordo com o docente, as primeiras evidências de que as condições de gestação das mulheres podem interferir na fisiologia dos filhos vêm de um estudo realizado com holandeses cujas mães engravidaram durante a Segunda Guerra. Em dado período, uma região da Holanda foi cercada pelas forças alemãs, o que impediu que recebessem provisões, situação agravada pelo inverno rigoroso. Naquelas circunstâncias, muitas grávidas foram submetidas a quadros de grave desnutrição. “O que os pesquisadores notaram foi que os filhos dessas mulheres desenvolveram na fase adulta vários tipos de patologias, o que não aconteceu com os filhos de mulheres que não passaram pelo mesmo problema”, relata Márcio Torsoni.

A falta de nutrientes ao longo da gestação, prossegue o docente da FCA, programou os organismos dos filhos para suportarem a mesma condição. “Entretanto, quando submetidos à situação normal, esses organismos não responderam bem. No caso dos holandeses, o que o estudo constatou foram problemas cardíacos, alteração no nível do colesterol e dos triglicerídeos, diabetes e obesidade”, enumera. Assim como a desnutrição pode acionar o mecanismo de programação metabólica, a hipernutrição pode fazer o mesmo, conforme Márcio Torsoni.

No LabDiMe, os pesquisadores fizeram essa constatação ao submeter fêmeas de camundongos a uma dieta rica em gordura nos períodos de gestação e lactação. Ao analisarem as condições fisiológicas dos filhos dessas mães, já em idade adulta, os cientistas identificaram que eles apresentavam diversas alterações metabólicas. “Em comparação com os filhos de mães magras, os filhos de mães obesas apresentavam, por exemplo, maior ganho de peso, maior deposição de gordura no fígado e desenvolvimento de resistência à insulina. Isso comprova que as condições impostas no período de gestação e lactação podem impactar de modo importante o desenvolvimento das proles”, pontua Márcio Torsoni. O estudo gerou artigo que foi publicado em 2012.

Em outra abordagem, comandada por Adriana Torsoni, a equipe do laboratório analisou os aspectos metabólicos relacionados especificamente ao fígado dos animais. De acordo com a docente, um dos fatores que promovem mudanças epigenéticas é a alteração de uma pequena molécula chamada MicroRNA, que controla os níveis de RNAs mensageiros que participam da síntese de proteínas importantes para o metabolismo de gorduras. “Nós constatamos que dois MicroRNAs estavam alterados nos camundongos gerados por mães obesas. Por causa das alterações, eles passaram a promover menor oxidação e maior síntese da gordura, o que fez com que esta aumentasse a sua concentração no fígado”, detalha. Artigo referente ao estudo foi publicado em 2014.

Mais recentemente, os integrantes do LabDiMe realizaram nova investigação e identificaram que a prole de mães obesas apresenta alteração no mecanismo responsável por ajustar o avanço da resposta inflamatória, denominado reflexo anti-inflamatório colinérgico. Márcio Torsoni explica que o processo de desenvolvimento da obesidade está associado à inflamação de baixo grau, mas que pode afetar o sistema nervoso central, fígado etc. Esse fator contribui, por exemplo, para o surgimento do diabetes. “Nós verificamos que os animais dessa prole estavam desenvolvendo obesidade e resistência à insulina. Paralelamente, constatamos que o freio que controla a inflamação não estava funcionando direito em seus organismos”, revela. Os resultados deste estudo foram publicados recentemente.

O docente da FCA observa que, embora o processo inflamatório seja importante para a defesa do organismo contra patógenos, é necessário que ele seja interrompido em determino instante, para evitar danos maiores ao próprio organismo. “Nós vimos que o reflexo anti-inflamatório é deficitário nos filhos de mães obesas. Ou seja, eles também foram programados para apresentar defeito nesse freio. Existem estudos que demonstram que, quando exposta a um agente infeccioso, a prole de mãe obesa morre mais rapidamente que a prole de mãe magra”, pontua Márcio Torsoni. A pesquisa rendeu artigo publicado no começo deste ano.

Por fim, o LabDiMe também analisou dois mecanismos relacionados com a resistência à insulina e a progressão da inflamação, chamados de estresse de retículo endoplasmático e autofagia. O professor Márcio Torsoni esclarece que essa forma de estresse está mais ativa na prole de mãe obesa que na prole de mãe magra, enquanto a autofagia, um processo de degradação lisossomal, essencial para a homeostase celular, apresenta-se comprometido na prole de mães obesas. “Nós identificamos que, logo após desmamarem, os filhos de mães obesas apresentavam maior ativação de proteínas envolvidas no mecanismo de estresse de retículo, tanto no hipotálamo quanto no fígado, favorecendo o desenvolvimento de resistência a insulina”. Além disso, Marcio Torsoni aponta que os estudos coordenados pela professora Marciane Milanski mostraram um prejuízo na autofagia no fígado e hipotálamo da prole recém–nascida e recém-desmamada. “Isso é um indicativo de que esses indivíduos podem desenvolver patologias associadas à obesidade na idade adulta”, infere.

Um ponto importante relativo a essas pesquisas, enfatiza o docente da FCA, é a geração de uma massa de dados que contribua para a formulação de abordagens preventivas contra o desenvolvimento de patologias vinculadas à programação celular. “Essa prevenção pode ser feita, por exemplo, junto à mãe, oferecendo a ela nutrientes que ajudem a evitar esses problemas. Estamos começando um estudo nesse sentido aqui no laboratório. Estamos suplementando as fêmeas com um tipo de ácido graxo que tem efeito anti-inflamatório. Como o componente inflamatório está presente em vários dos danos causados pela programação celular, vamos tentar fazer a prevenção através dessa via”, diz.

Outra opção seria tentar reduzir os danos já causados à prole, também oferecendo suplementos nutricionais a ela. “Precisamos avançar em relação a essas duas frentes, principalmente porque a epidemia de obesidade está aumentando em todo o mundo. Estudos norte-americanos apontam que a obesidade está crescendo significativamente entre as mulheres em fase de reprodução. Nessa situação, a criança costuma deixar um útero obeso para viver numa casa obesa. Isso cria um caminho de difícil volta”, alerta Márcio Torsoni.

Uma característica importante do trabalho realizado pelo LabDiMe, assinala a professora Adriana Torsoni, é o caráter multidisciplinar que orienta os estudos. Ela e Márcio Torsoni são biólogos. Marciane Milanski, que agora cumpre período de estudos no Canadá, é nutricionista. “No nosso grupo, temos cerca de 30 estudantes, a maioria vinda das áreas da Ciência do Esporte e Nutrição. Entretanto, para dar conta das perguntas que tentamos responder, sempre recorremos à cooperação de outras áreas do conhecimento, como a Medicina, a Química etc”. 

Um dos grupos com os quais o laboratório mantém estreita colaboração é coordenado pelo professor Licio Velloso, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, que investiga mecanismos moleculares e celulares que participam da gênese da obesidade e do diabetes e coordena o Obesity and Comorbidities Research Center (OCRC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) mantidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Conforme Adriana Torsoni, o LabDiMe conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fapesp e Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão (Faepex), programa mantido pela Unicamp.