Edição nº 653

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 25 de abril de 2016 a 01 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 653

Do sistema feudal ao capitalismo

Governo Meiji usou princípios do conceito de família
para legitimar seu projeto de modernização do Japão

O conceito de família no Japão, que compreende elementos como obediência, honra, lealdade e responsabilidade, serviu ao propósito do Governo Imperial Meiji de legitimar a transição do sistema feudal para o capitalista no país. “A partir desses princípios, o Estado construiu um eficiente discurso de lealdade filial da população ao governo e a seu projeto de modernização”, afirma a economista Anna Ligia Pozzetti de Abreu, que defendeu recentemente no Instituto de Economia (IE) da Unicamp a dissertação de mestrado intitulada “Terra, família e agricultura: um estudo sobre a transição ao capitalismo no Japão (XVII-XIX)”. O trabalho foi orientado pela professora Milena Fernandes de Oliveira.

A pesquisa de Anna Ligia trata de um dos elementos do processo de transição do período Shogunal Tokugawa ao período Imperial Meiji: as transformações da estrutura agrária desde o século XVII ao XIX. Dentro de uma pesquisa mais ampla, a economista destacou especificamente a relação familiar japonesa denominada “sistema ie”, cuja configuração se estabelece no início do período Edo e remete à sociedade agrária.

Tal sistema, segundo Anna Ligia, incutiu na sociedade, a partir da organização da produção em pequenas unidades produtivas, as noções de solidariedade, respeito e obediência filial, que em boa medida se estendem até os dias atuais. “O Estado se apropriou desses princípios para formatar um projeto que garantisse coesão social e favorecesse a execução, a partir da transição do Governo Shogunal Tokugawa para o Governo Imperial Meiji, de políticas tidas como modernizadoras”, reforça a pesquisadora.

Com essa estratégia, prossegue Anna Ligia, o Estado conseguiu manter uma moral rígida em favor de suas ações, ao mesmo tempo em que justificou, por meio do discurso nacionalista difundido pela educação, a continuação da gravosa exploração no campo, o imperialismo e o movimento beligerante do império japonês. A autora da dissertação observa que tanto o Governo Shogunal Tokugawa quanto o Governo Imperial Meiji exerceram forte controle sobre a sociedade e a organização da produção. “Ou seja, esse modelo de produção agrária não sofreu mudanças significativas no período de Restauração, visto que o novo governo precisava manter a ordem e os costumes diante das transformações que estavam em curso”, detalha.

Ademais, assinala a economista, o Governo Meiji se articulou com os grandes proprietários de terra para garantir o financiamento de seu projeto modernizador. “Dada a situação vulnerável ao imperialismo ocidental, o financiamento externo não foi considerado uma opção e, sendo o Japão uma economia agrária, foi o campo quem financiou a industrialização e a expansão imperial do país. Ocorre que, para obter o apoio dos grandes proprietários, o governo não alterou a estrutura fundiária, profundamente marcada pela desigualdade entre grandes e pequenos produtores. Ao deixar de promover a reforma agrária, as autoridades também deixaram de interferir no quadro de grave exploração dos pequenos camponeses e arrendatários, que seguiram mantendo a mesma relação de subordinação e dependência do período Tokugawa”, pontua.

Desde o estabelecimento do período Tokugawa até o início do período Meiji, aponta a pesquisadora, mais de três mil revoltas camponesas foram registradas, evidenciando as dificuldades que os camponeses, notadamente os pequenos, enfrentaram para pagar os impostos ao governo e continuar sobrevivendo no pedaço de terra sobre o qual tinham o direito de uso e posse. O processo de desapropriação que vinha ocorrendo com mais força a partir do século XVIII foi reforçado no período Meiji. Conforme explica Anna Ligia, houve o agravamento das condições de vida dos camponeses, o que resultou em grandes ondas de expropriação.

Apesar do elevado número de revoltas no período Tokugawa, com questionamentos pacíficos e também violentos, que expressaram as dificuldades que os camponeses enfrentaram a cada momento histórico da sociedade, o controle do Estado imperial autoritário, aliado dos grandes proprietários de terras, limitou significativamente o poder das revoltas camponesas, que foram reduzidas a partir do final do século XIX, informa a pesquisadora. A reforma agrária com distribuição de terra aos camponeses só seria realizada pelo governo de ocupação norte-americano, após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial.

Explorados no campo, muitos camponeses continuaram em suas terras, mesmo após serem desapropriados, para conservarem o seu ie. Com o avanço da industrialização, ex-produtores rurais passaram a viver em situação degradante na cidade, para onde se mudaram para trabalhar como assalariados nas grandes fábricas capitalistas. Também nesse aspecto, destaca a autora da dissertação, o discurso de obediência construído pelo Governo Meiji serviu ao objetivo de manter o controle social nas fábricas, visto que os princípios do sistema ie, estruturado no campo, foi levado para a área urbana.

A noção de responsabilidade e pertencimento, por exemplo, foi muito trabalhada pelas corporações privadas. “No discurso dirigido aos empregados, a empresa era apresentada como mais importante que as próprias famílias, visto que o sustento destas dependia do bom desempenho daquelas”, relata. Esse entendimento sobre a relação familiar perdura até hoje, mas de forma bem menos abrangente que no passado, de acordo com a economista. “Antes, os japoneses ingressavam numa empresa e permaneciam nela até se aposentar. Hoje, é comum as pessoas trocarem de emprego, visto que o país sofreu influências de costumes disseminados pela globalização e também por causa da crise que assola o país há mais de 20 anos. Outro aspecto que mudou foi o preconceito ao gaijin (estrangeiro), que apesar de ainda existir, hoje é mais atenuado”, considera.

In loco

O interesse de Anna Lígia pela cultura e assuntos relacionados ao Japão vem da experiência que ela teve no país. “Morei no Japão dos 4 aos 10 anos. Fui para lá por causa do trabalho do meu pai. Quando retornei ao Brasil, continuei estudando o idioma japonês. Na graduação, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre a crise dos anos 1990 no Japão”, conta. A ideia de abordar o tema do desenvolvimento econômico do Japão começou a tomar forma quando a economista fez um intercâmbio na Universidade de Waseda, localizada em Tóquio.

Lá, a autora da dissertação fez disciplinas, como aluna regular, de história econômica e ciência política. “Voltei pensando em pesquisar algum assunto relacionado ao pós-guerra. Decidi estudar a questão da criação do modelo capitalista japonês, mas acabei me dando conta de que isso só seria possível se investigasse a origem desse processo, que data da queda do Governo Shogunal e ascensão do Governo Meiji”, pormenoriza a economista, que contou com bolsa de estudo concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Publicação

Dissertação: “Terra, família e agricultura: um estudo sobre a transição ao capitalismo no Japão (XVII-XIX)”
Autora: Anna Ligia Pozzetti de Abreu
Orientadora: Milena Fernandes de Oliveira
Unidade: Instituto de Economia (IE)