Edição nº 650

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 21 de março de 2016 a 03 de abril de 2016 – ANO 2016 – Nº 650

Para além da técnica

Pesquisa cria conceito de “afetibilidade” para destacar
importância da interação entre o ser humano e o computador

No momento de desenvolver um aplicativo, o designer deve levar em conta pressupostos técnicos, como funcionalidade e usabilidade, mas também questões bem menos objetivas, como o afeto. A ideia é defendida na tese de doutorado da cientista da computação Elaine Cristina Saito Hayashi, apresentada ao Instituto de Computação (IC) da Unicamp, sob a orientação da professora Maria Cecília Calani Baranauskas. No trabalho, a autora criou o conceito de “afetibilidade”, que destaca a importância dos aspectos afetivos envolvidos na interação entre o ser humano e o computador. A pesquisadora também formulou seis princípios para auxiliar os profissionais da área a contemplarem o tema no momento de desenvolverem seus sistemas.

De acordo com Elaine, o tema afetividade não é inteiramente novo no campo da computação, mas tem sido tratado de forma subjacente até aqui. “O assunto é trabalhado na universidade na disciplina de IHC [Interação Humano-Computador], mas analisado de forma muito objetiva pela indústria. A maneira usual de se aferir o padrão afetivo das pessoas, nesse caso, é colocar um aparelho para medir os batimentos cardíacos delas enquanto utilizam um sistema. Depois, os números são interpretados. O que estamos propondo é colocar um pouco de subjetividade em toda essa objetividade”, afirma.

O conceito afetibilidade foi criado, conforme a cientista da computação, para chamar a atenção dos designers para o fato de que funcionalidade e usabilidade não são capazes de suprir as necessidades dos usuários nos dias atuais. “As pessoas também querem se divertir e relaxar, entre outras coisas”, observa.  Nesse sentido, a autora da tese propôs, juntamente com sua orientadora, seis princípios para auxiliar os profissionais a considerarem a afetividade em suas criações. Estes foram validados durante trabalho de campo realizado em uma escola municipal de educação fundamental, localizada na periferia de Campinas. Participaram cerca de 500 pessoas, entre alunos, professores e funcionários.

O primeiro princípio estabelecido pela tese está relacionado à “Livre interpretação e comunicação do afeto”. Elaine lembra que o assunto é tratado em detalhes na obra do psicólogo francês Henri Wallon. Segundo ele, as trocas de emoção e as experiências de comunicação contribuem para o desenvolvimento das crianças. “Foi fácil constatar isso na escola, por meio do comportamento dos alunos. Um exemplo da aplicação desse princípio é o uso de stickers [ilustrações ou animações] em um aplicativo. É uma forma de o usuário expressar seu afeto, para que outra pessoa o interprete”.

O segundo princípio está vinculado à “Cultura local e aos valores sociais”. O tema é trabalhado na obra do pensador e educador suíço Jean Piaget, que defende que os valores atribuídos às pessoas e objetos é que dão origem à formação do sentimento. “Na escola, nós percebemos que os alunos se orgulhavam, por exemplo, de cursar o oitavo ano. Era algo importante para eles”, relata a autora da tese. Este princípio pode ser aplicado, de acordo com a pesquisadora, como faz o Google, que adapta a forma e as cores do seu logotipo de acordo com a cultura e os costumes dos diferentes países. “Estamos propondo exatamente isso, que os designers expressem algo que tenha valor para cada local”.

O “sentimento de identificação e apropriação com ajustes personalizados” constitui o terceiro princípio sugerido por Elaine. O fundamento da proposta vem das reflexões do educador brasileiro Paulo Freire, segundo o qual o processo de alfabetização de adultos deve ser ajustado à realidade desse público. “Na escola, nós observamos os professores adaptando as lições às situações cotidianas dos alunos. Um exemplo foi a discussão, em sala de aula, sobre as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, tema que foi abordado de forma transversal em diferentes disciplinas”. Um exemplo de aplicação deste princípio, destaca a cientista da computação, é promover a adaptação das interfaces de um aplicativo, para permitir o registro de imagens que façam referência à realidade dos usuários.

O quarto princípio apresentado pela pesquisadora é denominado de “Conexão e colaboração para a construção colaborativa”. A propositura foi baseada nos estudos de Lev Semenovich Vygotsky, teórico russo da educação. Ele defendia a ideia de que as crianças apresentam a capacidade de aprender sozinhas até determinado ponto. Depois, têm a necessidade do auxílio de outra criança ou de um adulto. “Identificamos esse aspecto na escola, durante o uso dos laptops distribuídos para os alunos no contexto do ‘Projeto XO na escola e fora dela’, financiado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Como nem todos os professores sabiam usar a tecnologia, os alunos é que os ensinavam”, conta.

Graças a essa experiência, Elaine criou, em conjunto com representantes da escola, a figura do aluno-monitor, que auxiliava os professores nas atividades com o computador. “O resultado foi excelente. O interessante é que as crianças tidas como bagunceiras e inquietas foram justamente a que se deram melhor na função”. Um exemplo de como o princípio pode ser usado, considera a autora da pesquisa, vem do aplicativo Waze, que estabelece um ambiente de colaboração entre os motoristas-usuários.

“Saber o que está acontecendo em seu entorno social” é o quinto princípio formulado por Elaine. Segundo Wallon, as trocas afetivas dependem inteiramente da presença concreta do outro. “Na escola, é fácil observar que a presença de uma criança pode inibir ou estimular a ação da outra. A criança tem um tipo de comportamento quando está sozinha e outro quando está em grupo. No âmbito da computação, esse exemplo pode ser encontrado no aplicativo Whatsapp. Com a ferramenta, o usuário sabe se a pessoa recebeu e leu sua mensagem. Ou seja, ele está ciente da presença da outra pessoa, ainda que de forma virtual”.

O sexto e último princípio foi batizado de “Criar um ambiente através do uso de mídias e modo de interação”. Wallon, mais uma vez, falava sobre o poder contagiante das emoções. “É muito difícil você ficar carrancudo ao entrar numa sala em que todos estão rindo”, compara a cientista da computação. De acordo com ela, os designers podem empregar recursos como a música, fotografias e animações para valorizar a afetividade em seus aplicativos. “O desafio está em criar uma atmosfera que atenda às expectativas do usuário”, pontua Elaine.

A autora da tese de doutorado destaca que a validação dessas propostas foi feita por meio da realização de uma série de atividades junto à escola municipal de ensino fundamental. Ela desenvolveu na unidade de ensino, com a colaboração de alunos, professores e funcionários, um joguinho que simulou a conhecida brincadeira do “Amigo Secreto”. Inicialmente, a experiência foi feita em papel e depois transportada para o universo eletrônico, com o suporte de um telefone celular e cartões do tipo RFID [Identificação por Rádio Frequência, na tradução livre para o português], os mesmos utilizados em crachás funcionais.

No lugar de presentes, os estudantes foram estimulados a oferecer elogios aos colegas. As mensagens eram gravadas e depois ouvidas por meio do celular. “Todos adoraram a experiência”, assegura a pesquisadora. Além disso, alunos de graduação do IC também foram envolvidos em atividades de avaliação dos princípios propostos. Numa delas, os estudantes redesenharam aplicações educacionais encontradas na internet. Estas foram apresentadas, junto com as versões originais, às crianças, para que elas as avaliassem.

“Nós não dissemos quais eram as aplicações originais e nem as redesenhadas. De modo geral, as redesenhadas, que seguiram os princípios da afetibilidade, foram mais bem avaliadas pelo grupo”, relata Elaine, que contou com bolsas concedidas pelo CNPq e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A pesquisa de campo deu origem a um vídeo, que pode ser assistido no Youtube, através deste link: https://www.youtube.com/watch?v=3-G8aT51Wnk.

De acordo com a pesquisadora, o conceito de afetibilidade já tem sido utilizado por outros pesquisadores para avaliar os seus trabalhos. Elaine adianta que cogita dar seguimento ao estudo do tema no pós-doutorado, desta vez tendo como público os idosos. “Nós temos uma nova geração de idosos, diferente da anterior, que está familiarizada com a tecnologia. A ideia é propor princípios que orientem os designers a valorizar a questão do afeto no momento de desenvolverem sistemas voltados para esse segmento específico”, finaliza.

Publicação

Tese: “Qualidade afetiva em sistemas computacionais: design de interação para e com crianças em contexto de aprendizado”
Autora: Elaine Cristina Saito Hayashi
Orientadora: Maria Cecília Calani Baranauskas
Unidade: Instituto de Computação (IC)