Edição nº 639

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 28 de setembro de 2015 a 04 de outubro de 2015 – ANO 2015 – Nº 639


Falar e cantar são duas coisas diferentes, pero no mucho. Aqui está Noel Rosa, em Conversa do botequim, samba de 1935, com o parceiro Vadico: Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelada.../. O compositor explora a coloquialidade, característica importante do samba que surgia na época. Da mesma forma João Gilberto, anos depois, vai fazer de seu “canto falado” uma marca da bossa nova. A chave para o entendimento de uma possível relação entre Noel e João, entre o samba de bossa e a bossa nova e, finalmente, entre a música e a fala, pode estar na parte da gramática que estuda a pronúncia das palavras e frases, a chamada prosódia.

Pensar sobre a prosódia e os elementos que aproximam o canto popular brasileiro da fala foi o trabalho da pesquisadora e cantora Gabriela Ricci, que defendeu sua dissertação no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “Ficamos, eu e minha orientadora, no meio termo entre a Música e a Linguística, utilizando aporte teórico dos dois campos de estudo”, esclarece. Para alguém com graduação em Música e experiência em canto popular, aventurar-se pelo campo da linguística foi um desafio e tanto. Gabriela, com o apoio de sua orientadora Eleonora Cavalcante Albano, levou um ano para definir um método de análise das músicas escolhidas. 

Por fim decidiram considerar no estudo a letra das canções, a melodia da voz e a rítmica do acompanhamento instrumental, tanto nas partituras quanto em gravações. Com base na fonologia prosódica e na hierarquia melódica, Gabriela observou a maneira como as frases são construídas comparando a estrutura de pausas estabelecida pelos intérpretes com alguns tipos de segmentação prosódica, ou seja, com os locais nos quais as pausas seriam colocadas num texto falado. 

Também verificou a acumulação de acentos musicais nas partituras e sua relação com o acento lexical das letras de canções, bem como as mudanças feitas pelos intérpretes na acentuação sugerida pela partitura. Foram estudadas a maior incidência de acentos musicais em sílabas tônicas do que em átonas, aproximando a interpretação das letras das canções à fala; a acentuação musical da melodia reforçada pelo acompanhamento instrumental; e a relação acento musical – acento linguístico, similar nos dois estilos musicais.

O papel do acompanhamento musical e sua relação com a melodia também foi avaliado, como uma maneira de cruzar as informações entre letra e melodia. “Considerei alinhamentos da interpretação os locais nos quais havia o ataque (tempo que um som demora a atingir o seu volume máximo) do acompanhamento, coincidindo com o ataque da melodia e o ataque da letra”. Gabriela separou os tempos fortes da música e os identificou nos alinhamentos. “O tempo forte é uma característica rítmica muito importante nos dois estilos isso poderia também mostrar alguma coisa”. A hipótese da pesquisa era de que samba e bossa nova são construídos com base na prosódia do português brasileiro. 

RESULTADOS

De acordo com Gabriela, a grande característica que faz com que as músicas se pareçam bastante com a fala é o acúmulo de todos os acentos estudados. “Percebemos que os acentos, principalmente os de duração, tendem a coincidir muito com os que você usaria na fala, eles coincidem com as sílabas tônicas”. Os locais onde a música parece acentuada, prossegue a autora, são aqueles nos quais há maior acúmulo de acento, coincidindo quase sempre com os acentos lexicais da fala.

A metodologia utilizada pela autora da dissertação mostrou ainda que as segmentações prosódicas feitas nas análises das canções coincidiram mais nas peças de João Gilberto, na bossa nova, que nos sambas de Noel Rosa. “Uma leitura possível que a gente fez disso é que a preocupação com a fala do texto deve ser maior na bossa nova, apesar de o samba também soar bastante falado. O samba parece dar um pouco mais de importância para a rítmica”, avalia.

De Noel Rosa a autora da dissertação selecionou os sambas: Com que roupa, que foi seu primeiro grande sucesso, de 1929, Conversa de Botequim, de 1935, reconhecida como uma das canções que melhor utilizam a prosódia na construção da melodia e da letra, e São coisas nossas, gravada em 1932, e lembrada por utilizar pela primeira vez na canção popular brasileira a palavra “bossa”, em seu refrão.

As músicas escolhidas de João Gilberto são todas do “Chega de Saudade”, primeiro disco do intérprete e compositor, de 1959. A música Chega de Saudade, composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, marca o início da bossa nova e traz os elementos que caracterizam o estilo. Bim Bom, também de 1959, explora as inovações trazidas por João Gilberto no que diz respeito à articulação entre canto e acompanhamento. Além disso, foi escolhida por sintetizar o livro homônimo que foi utilizado na pesquisa. A terceira escolhida foi Desafinado, a primeira canção da música popular brasileira a mostrar ao público uma melodia dissonante “que, como sugere o título, chega a soar desafinada aos ouvidos despreparados”, situa a autora da dissertação. Ademais a letra fala da construção da música da bossa nova.

A conclusão da pesquisa foi a de que os dois estilos de fato concordam muito com a fala.  No quesito acentuação, ou seja, acumulação de tom, duração e tempo forte, os dados mostraram um padrão bastante consistente. “Todas as gravações apresentaram grande número de incidência do acúmulo de acentos musicais em sílabas tônicas, enquanto a maioria das sílabas átonas não recebeu nenhum tipo de acentuação musical”, relata. Para Gabriela, essa relação das sílabas tônicas e átonas com os acentos musicais foi um dos elementos que proporcionou a manutenção da prosódia do português brasileiro nas canções.

A pesquisadora e cantora Gabriela Ricci, autora da dissertação: aportes teóricos da Música e da Linguística“Nas canções representantes da bossa nova, as pausas coincidem com as frases entoacionais mais vezes do que no samba. A explicação pode estar no fato de que Noel Rosa utiliza um número bem maior de pausas do que João Gilberto, o que pode indicar que na bossa nova a preocupação com o texto era uma constante, enquanto a estrutura rítmica, principal responsável pela caracterização dos estilos, seria colocada em primeiro lugar no samba”, acrescenta a pesquisadora.

Gabriela acredita que isso se deve à ideia de que a bossa nova não se caracteriza por um novo estilo de música, mas, sim, uma nova maneira de tocar samba. “O samba, em seu surgimento, tinha a necessidade de se afirmar como estilo utilizando, para tanto, a sua estrutura rítmica autêntica. A bossa nova, por sua vez, já vinha de uma estrutura rítmica bem estabelecida (a do samba) e pode, por isso, tratar com mais atenção a questão do texto cantado”. 

Outra consideração destacada por Gabriela foi a relação das interpretações com o acompanhamento musical. “O acompanhamento instrumental dá suporte para o que está acontecendo na voz. Os acentos do acompanhamento ajudam na acentuação da fala da letra, ou seja, o acompanhamento é um suporte para que essa interpretação soe mais falada”. Em relação à prosódia a autora salienta que “diversos autores têm especulado sobre a aproximação de Noel Rosa e João Gilberto sem, no entanto, contribuir com análises detalhadas. Apesar da carência de estudos, tem-se a impressão de que, tendo conhecimento da prosódia da língua materna, ambos se inspiravam nela, consciente ou inconscientemente, para a construção das canções”.

 

Publicação

Dissertação: “Samba e bossa nova: um estudo de aspectos da relação texto-música”

Autora: Gabriela Ricci

Orientadora: Eleonora Cavalcante Albano

Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)