Edição nº 627

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 08 de junho de 2015 a 14 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 627

Pecuária e mineração põem
campos rupestres sob ameaça

Formações vegetais abrigam cerca de um terço da biodiversidade do país

Existe no Brasil uma formação vegetal extremamente rica do ponto de vista biológico, enquanto fornecedora de serviços ecossistêmicos relacionados principalmente com a questão da água, mas que se encontra seriamente ameaçada por atividades econômicas como a pecuária e a mineração. Trata-se dos campos rupestres, que ocorrem em porções altas de serras de Minas Gerais, Bahia e Goiás – e que apesar de ocuparem menos de 1% do território nacional (0,8%, na verdade), abrigam cerca de 1/3 da nossa biodiversidade vegetal, ou seja, 11 mil espécies de um total de 33 mil, segundo listagem recente.

“Nos campos rupestres, as plantas podem crescer sobre rochas ou na areia e desenvolveram estratégias especializadas para sobreviver apesar da escassez de nutrientes e de água”, afirma o professor Rafael Silva de Oliveira, do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia (IB). “No entanto, essas formações estão muito ameaçadas por causa da ideia de que apenas as florestas têm importância biológica; menosprezamos as formações abertas, campestres, permitindo o pisoteio pelo gado e a mineração, quando a diversidade pode ser muito maior do que em formações florestais.”

Vista parcial da Serra do Cipó com uma ‘Vellozia sp.’, em primeiro plano, e espécies pesquisadas pelo grupo do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas (abaixo)

Rafael Oliveira coordena o Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas, onde seus alunos investigam os mecanismos de aquisição de nutrientes e de água pelas plantas dos campos rupestres, e como alterações na disponibilidade destes recursos afetam o desenvolvimento delas. “Uma grande questão científica da nossa área é entender os mecanismos que geraram e que mantêm essa altíssima biodiversidade. Seguimos a hipótese de que a partição do uso de recursos é um dos fatores que explicam a coexistência de tantas espécies. Existe uma enorme variação de micro-habitats e é a diversidade de estratégias de absorção de recursos que procuramos documentar.”

O professor atenta, então, para o paradoxo: como os campos rupestres sustentam tamanha diversidade de espécies, se lá estão reunidas todas as condições não propícias para o desenvolvimento de um vegetal? “O que tem motivado nosso grupo de pesquisa é a descoberta de diversos mecanismos interessantes de aquisição de nutrientes e água. Em relação a nutrientes, verificamos que a carnivoria é uma estratégica curiosa e bastante prevalente neste ambiente. Recentemente, descrevemos um mecanismo novo de carnivoria, numa família em que ela nunca tinha sido descrita, as plantagináceas. A espécie descrita apresenta folhas diminutas enterradas na areia branca, com as quais consegue atrair, prender e digerir nematóides (vermes que vivem no solo).”Além destas peculiaridades biológicas, o professor do IB aponta três aspectos abióticos importantes nos campos rupestres. “Um deles é que esta vegetação ocorre numa região geologicamente bastante antiga, com muitos afloramentos de rochas e areia branca, sendo que o tipo de rocha predominante, o quartzito, é paupérrimo em nutrientes, sobretudo em fósforo. Outro aspecto é a pouca disponibilidade de água, que se esvai facilmente nos solos rochosos e arenosos, registrando-se ainda um período de seca rigorosa. Além disso, as plantas estão sujeitas a elevados níveis de radiação por ocorrerem sobre montanhas abertas e, consequentemente, ao risco de incêndios.”

Os pesquisadores do laboratório também constataram, conforme Rafael Oliveira, mecanismos em que as plantas secretam substâncias (exsudatos e carboxilatos) capazes de liberar o fósforo presente no solo. “Outro diferencial é que grande parte das espécies apresenta baixíssima ou nenhuma associação com micorrizas – fungos que se associam às plantas e aumentam o volume de solo explorado pelas hifas (cuja forma é de raízes muito finas que se espalham). É mais comum encontrarmos as especializações radiculares com outras associações para liberação de ácido orgânico.”

A pesquisadora Anna Abrahão escolheu como objeto de estudo de mestrado uma espécie de cactos que possui uma estrutura radicular interessante e é abundante em campos rupestres da Cadeia do Espinhaço (MG), tendo o nome científico de Discocactus placentiformis. “Esta espécie possui raízes bem compridas e chegamos a cavar mais de um metro delas na areia, quando em outros cactos não passam de dez ou quinze centímetros. É uma estrutura de pelos radiculares alongados e densos (tricomas), nos quais os grãos de areia grudam, permitindo a troca de nutrientes e uma maior retenção de água.”

Para observar como funcionam estas raízes, Anna Abrahão conta que foi realizado um experimento em hidroponia, visto que no solo esta observação não seria possível. “Na hidroponia podemos tirar a planta da solução e fazer medições nas raízes a qualquer momento. Controlamos a concentração de fósforo e verificamos que as raízes liberam mais carboxilatos em baixas concentrações de fósforo: o solo captura esses ácidos orgânicos e em troca libera o nutriente. É uma estratégia importante principalmente neste solo pobre, onde a taxa de retenção do fósforo é bem elevada; em outro experimento, adicionando o nutriente ao solo, verificamos que mais de 96% do composto ficam retidos.”

Da esq. para a dir., o professor Rafael Oliveira, coordenador das pesquisas, Anna Abrahão, Patrícia de Britto Costa, Grazielle Sales Teodoro e Mauro Brum Monteiro Junior: investigando os mecanismos de aquisição de nutrientes e de água pelas plantas dos campos rupestresPLANTAS RESSURGENTES 

Grazielle Sales Teodoro é autora de tese de doutorado em que avaliou mecanismos de resistência à seca apresentados por espécies dos campos rupestres, incluindo um grupo muito peculiar, as chamadas plantas ressurgentes. “Para isso, procuramos simular uma condição mais seca que a normal, na qual estabelecemos parcelas no campo rupestre para excluir a água da chuva e monitorando seis espécies por quase dois anos. Na região temos tanto plantas arbustivas como herbáceas e vimos que, no geral, todas se mostraram bem resistentes à seca: não observamos mortalidade de indivíduos.”

Segundo a doutora em biologia vegetal, as plantas utilizam grande diversidade de estratégias para lidar com as condições de seca. “Dentre as espécies arbustivas, algumas têm um sistema vascular bastante resistente a cavitação e embolismo (formação de bolhas nos condutos do xilema, inviabilizando o fluxo de água), enquanto outras parecem mais susceptíveis à cavitação. Mesmo estas, entretanto, possuem uma grande reserva de carboidratos não estruturais nas raízes que podem compensar o sistema hidráulico mais frágil.”

Grazielle Teodoro explica que uma família predominante nos campos rupestres é a Velloziaceae, conhecida popularmente como “canelas-de-ema” – e nesta família destacam-se as “plantas de ressurreição” ou “ressurgentes”, assim chamadas por causa da sua habilidade em tolerar a dessecação nos tecidos vegetativos. “São plantas fantásticas, que conseguem equilibrar o potencial hídrico interno com o do ar completamente seco. No período de seca, elas ficam com a aparência de mortas, desmontando todo o seu aparato fotossintético; mas, quando aumenta a disponibilidade hídrica tanto no solo como no ar, aquelas mesmas folhas secas e dessecadas remontam toda a maquinaria fotossintética, reorganizam as organelas nas células e retomam o metabolismo normal.”

FOLHAGEM PRESERVADA

Mauro Brum Monteiro Junior, também pesquisador do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas, afirma que 98% das espécies de campos rupestres são perenes, ou seja, não perdem as folhas durante a estação seca. “Se na caatinga, onde o solo é rico, as plantas perdem as folhas para evitar perda de água, no cerrado, mais especificamente no campo rupestre, esta perda é mais restrita principalmente pela questão dos nutrientes. Foi exatamente este o foco do meu trabalho: uma vez que essas plantas são perenes, quais seriam os mecanismos relacionados à aquisição e uso dos recursos hídricos?”

O pesquisador estudou basicamente a partição de recursos por meio da diferenciação radicular, usando a abordagem de isótopos estáveis, a fim de verificar qual a contribuição de água para as plantas em cada perfil de solo. “Ficou claro que existem plantas de raízes extremamente superficiais, que não conseguem usar a água de solo mais profundo na estação seca; outras possuem raízes dimórficas (que crescem lateral e horizontalmente à superfície do solo, bem como pivotantes, que crescem para o solo profundo). Na época da chuva, essas espécies capturam água do solo superficial e, na seca, do solo profundo.”

Para Mauro Brum, é importante destacar que os campos rupestres estão normalmente em topos de montanhas que possuem várias nascentes de rios importantes, como na serra da Canastra, onde nasce o São Francisco. “Essas plantas têm um papel fundamental na preservação da hidrologia, ao diminuir o escoamento e aumentar a infiltração da água da chuva, que de certo modo acaba no olho d’água e dá origem aos grandes rios.”

O professor Rafael Oliveira acrescenta que toda a região de campos rupestres – que se estende pelos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás – é caracterizada como sendo de berços de água, abrigando grandes reservatórios. “É uma vegetação que hoje está muito ameaçada principalmente por mineradoras, que já têm projetos em toda a Cadeia do Espinhaço e até mesmo no Parque Nacional da Serra da Canastra.”