Edição nº 596

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 12 de maio de 2014 a 18 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 596

Bom, mas pode melhorar

Tese analisa programa que prevê inserção de produtores rurais no mercado da merenda escolar

A lei de 2009 que obriga as prefeituras brasileiras a utilizar 30% dos repasses da verba federal destinada à merenda escolar nas compras de produtos da agricultura familiar criou um mercado que vem ajudando na organização dos pequenos agricultores e na conquista de mais espaço na oferta de alimentos, mas esses produtores ainda precisam de políticas públicas auxiliares e da boa vontade das prefeituras para tirar proveito da oportunidade, diz tese de doutorado defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp por Armando Fornazier.

“O programa está funcionando bem nas cidades pequenas”, disse o pesquisador ao Jornal da Unicamp. Sua tese avaliou os efeitos da lei sobre a agricultura familiar de 20 municípios, sendo dez do Estado de São Paulo e dez, do Espírito Santo, todos eles inseridos no programa federal Territórios da Cidadania, que busca levar desenvolvimento econômico a regiões pobres do Brasil.

Fornazier explica ainda que, embora os recursos gerados pela alimentação escolar nesses mercados sejam poucos – “há cidades em que esse gasto público de 30% da verba não gera mais que R$ 20 mil no ano para o produtor”, disse ele –, a organização dos agricultores em associações e cooperativas, para o atendimento da exigência legal, acaba permitindo que disputem acesso a outros mercados, mais rentáveis.

“Mesmo que o mercado institucional seja pequeno, é preciso levar em consideração que ele pode ser um mercado inicial, que gera uma oportunidade de diversificação”, disse o pesquisador. “Você não vai trabalhar a vida inteira para a merenda escolar, mas esse pode ser um dos mercados atendidos”.

Em sua tese, Fornazier cita dados que mostram que algumas cooperativas de agricultores familiares de cidades do Território da Cidadania do Sudoeste Paulista já conseguiram firmar contratos com a prefeitura de Campinas (SP) num montante de recursos que “representa praticamente a demanda de todas as prefeituras do Território”.

Para ilustrar, a Cooperativa Agropecuária Familiar de Nova Campina (Coagrocamp), do município paulista de Nova Campina (SP), conseguiu um contrato de mais de R$ 1 milhão para abastecer o sistema de alimentação escolar de Campinas.

 

Cidades grandes

A inserção da agricultura familiar na alimentação escolar das grandes cidades ainda é um desafio, tanto para as metrópoles quanto para os produtores, disse o pesquisador. “Das 20 cidades estudadas, todas estão comprando produto local. O objetivo inicial da política foi atingido”, disse ele. “Mas há cidades grandes que quase não têm agricultura familiar”, lembrou. Para cumprir a lei, esses municípios são obrigados a buscar cooperativas e organizações localizadas fora de seus territórios – às vezes até, em outros Estados. Para abastecer essas grandes cidades, no entanto, as organizações de agricultores familiares enfrentam problemas de logística e de manuseio dos produtos.

“A prefeitura de São Paulo, por exemplo, divide a cidade em 12 áreas, como se fossem regionais de educação, mas cada regional conta com 170 escolas. Se o pequeno agricultor quiser comercializar, vai ter de fazer ponto a ponto, entregar em cada escola. Esse é o grande entrave de entrar nas grandes cidades”.

Além disso, há a questão do processamento dos produtos: “A prefeitura de São Paulo não vai comprar abóbora in natura, não tem funcionários para descascar, picar a abóbora. Já tem de vir tudo picado, num saquinho”. Embora algumas cooperativas tenham desenvolvido os meios para realizar algumas etapas de processamento, agregando valor aos produtos e atendendo a mercados mais exigentes, a dificuldade ainda é real. E existe também a questão da certificação sanitária, outro entrave.

“Você só pode comprar um produto se tiver um processo em que alguém diz que aquilo não vai fazer mal para as pessoas, seja uma inspeção federal, como o SIF, ou uma inspeção estadual, ou uma inspeção municipal, se a venda é só dentro do município. Muitas dessas associações, cooperativas, não têm acesso a isso”, disse ele. “A maioria vem conseguindo comercializar frutas e legumes, isto é, coisas que não precisam de inspeção: uma banana não precisa ser inspecionada, mas um doce de banana, sim. Então, o agricultor familiar muitas vezes não consegue agregar valor ao produto”.

“Não se pode querer que o produtor familiar faça o que uma empresa de alimentação escolar faz: entregar ponto a ponto, dentro de um padrão estrito de qualidade, com prazo apertado. Isso é uma dificuldade nessas cidades maiores”, explicou. As prefeituras de grandes cidades que decidirem apoiar a agricultura familiar local, ou de regiões próximas, precisam fazer concessões e adaptações. 

“Quanto à logística, a maioria dos gêneros é composta por alimentos frescos, entregues na segunda ou terça-feira para ser consumidos durante a semana. Imagine fazer isso em mais de uma centena de escolas. O pequeno agricultor não tem condições de manter veículos e pessoal para isso. Então, ou precisa terceirizar uma etapa, ou a prefeitura se adaptar: talvez fazer um escalonamento de acordo com o cardápio, aumentando número de dias de entrega. Porque se as prefeituras continuarem a exigir os padrões das atuais empresas terceirizadas, não vai dar certo”.

Em alguns locais, dificuldades assim vêm sendo contornadas, disse Fornazier, com o apoio das prefeituras e com iniciativas das próprias cooperativas, que buscam auxílio em órgãos como o BNDES e o Sebrae.

“Muitas prefeituras podem pensar simplesmente em cumprir a lei, ou seja, eu vou comprar da agricultura familiar, mas já procuro agricultores mais organizados, mesmo que sejam de outro Estado”, exemplificou. “Mas há prefeituras que ajudam a organizar os agricultores locais, que cedem funcionário para elaborar o projeto de associação, para ajudar na gestão”, disse.

 

Diálogo

A maioria dos casos de sucesso nas 20 cidades estudadas, segundo o pesquisador, contou com envolvimento direto e apoio do poder público local, além de diálogo constante entre a prefeitura e os agricultores.

“Os municípios de sucesso, mesmo, são aqueles em que a prefeitura viu que aquilo era importante e deu incentivo, incentivo técnico, ajuda para montar a infraestrutura. Nas duas cooperativas de Itararé, a prefeitura cedeu espaço, cedeu funcionário. Em Taquarivaí (SP), tem um técnico da prefeitura que ajuda mais na parte contábil”, descreveu o pesquisador. “Esse município de Taquarivaí é incrível: o Brasil tem 15% da população rural, mas em Taquarivaí, 45% da população é rural. A prefeitura viu que tinha de ter alguma coisa para esses agricultores terem renda. A prefeitura encampou, e agora está conseguindo atender lugares como Campinas. Então, acho que meio que é um modelo de sucesso é a prefeitura ver o valor disso”.

“O principal fator de sucesso é a articulação entre produção e consumo, dos agricultores conversarem bem com a nutricionista encarregada da alimentação escolar, a secretaria de Educação dos municípios procurar a secretaria de Agricultura: porque dentro da prefeitura, às vezes, não se conversam”, disse ele. “Tem municípios que às vezes falam, essa é uma lei para a Educação. Então, para muitas prefeituras isso não importa se está inserindo o agricultor local, o que importa é cumprir a letra da lei: então é mais fácil comprar tudo de outra região, que às vezes é muito mais fácil do que induzir a economia local”.

“Os municípios onde houve menos conflitos foram onde a nutricionista responsável pela alimentação escolar perguntou aos produtores: o que vocês têm a oferecer? Em que época do ano?”, exemplificou. “Quando se fala em aproximação entre produção e consumo, há essa aproximação também de conversa, de acordos”.

 

Políticas públicas

O futuro das associações e cooperativas criadas para atender à lei da alimentação escolar dependerá da capacidade dessas organizações de ir além da demanda original dos municípios onde surgiram, acredita Fornazier. Mas, para isso, vão precisar do apoio de novas políticas públicas.

“São necessárias políticas complementares de auxilio à inspeção, de assistência técnica e de extensão rural”, disse ele. “A inserção de novos agricultores depende das políticas complementares. Que são assistência técnica e extensão rural. O governo federal parece que já percebeu isso, porque no ano passado foi criada uma Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, que é uma coisa com que o governo Collor tinha acabado”. A lei que estabelece a agência, Anater, foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em dezembro de 2013.

“Quando se criam políticas públicas, criam-se outros problemas. É preciso fazer políticas auxiliares”, ponderou o autor. “Nesse caso da merenda escolar é um pouco isso: consegue-se inserir determinados grupos, só que para ser efetivo, você precisa de uma série de outras políticas. A lógica da política pública é essa, complementaridade. Não é achar que uma lei ou decreto vai resolver o problema sozinho. Para avançar é preciso políticas complementares, maior dialogo entre as partes. E apoio local”.

 

Publicação

Tese: “Inserção de produtores rurais familiares de regiões com baixa dinâmica econômica para o mercado da alimentação escolar”
Autor: Armando Fornazier
Orientador: Walter Belik
Unidade: Instituto de Economia (IE)