A lógica de voltar para casa  

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Ao longo da série Olhares Lógicos, foi possível verificar o quanto a lógica brasileira influencia pensadores de todo o mundo. Levar o país ao protagonismo da lógica contemporânea é uma conquista de gerações de acadêmicos que têm na herança do pensamento de Newton da Costa sua grande inspiração. O que acontece, então, quando um pensador brasileiro se estabelece no exterior? Há uma responsabilidade maior em perpetuar a tradição brasileira quando se está longe de casa?

Essas são algumas das questões discutidas com Otávio Bueno, professor de filosofia da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, e um dos convidados da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC. Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), foi nos seminários promovidos pelo Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp, em especial naqueles em que Newton da Costa transmitia seus conhecimentos, em que ele teve os primeiros contatos com o universo da lógica.

Na entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, Bueno também comenta temas importantes com interfaces na lógica, como a visão que as pessoas têm da ciência, as fronteiras entre crenças e verdades e a necessidade de uma educação que estimule o espírito crítico. A entrevista contou com a colaboração de Walter Carnielli, professor da Unicamp e membro do conselho consultivo da SP LogIC, e de Felipe Bezerra, fotógrafo da Secretaria Executiva de Comunicação (SEC) da Unicamp.

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Otávio Bueno formado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), mas participou dos seminários promovidos pelo CLE da Unicamp, em especial naqueles em que Newton da Costa transmitia seus conhecimentos

Jornal da Unicamp - A série Olhares Lógicos buscou trazer para a discussão as diferentes perspectivas dos professores convidados a participarem da SP LogIC e com atuação expressiva no exterior. Você é brasileiro, estruturou sua formação no Brasil e hoje atua na Universidade de Miami, nos Estados Unidos. Gostaria de saber como foi esse percurso.

Otávio Bueno - Foi uma trajetória interessante. Fiz minha graduação na USP e tive aula com o professor Oswaldo Porchat, falecido há alguns anos, que me recomendou um evento sobre racionalidade epistêmica realizado pelo CLE aqui da Unicamp. Isso foi, provavelmente, em 1989 ou 1990. Eu vim para Campinas e encontrei pessoas que, hoje, são nomes que conheço como referência na área. Assistindo à conferência, pensei que queria fazer parte dessa comunidade. Aquele foi um momento importante para minha formação. Terminei a graduação, fiz mestrado também na USP e comecei a assistir aos seminários do professor Newton da Costa. Aí foi uma virada completa, porque ele tem um estilo muito peculiar de questionar, contestar o que está estabelecido, mas também é um grande modelo de pesquisador e de professor. Um dia ele me propôs escrevermos um trabalho juntos e foi, com ele, que aprendi o que era escrever um artigo acadêmico. Começamos uma colaboração que durou anos, depois fui cursar o doutorado no Reino Unido. Em certo sentido, minha trajetória estava marcada desde o momento em que vim assistir a minha primeira conferência na Unicamp.

JU - De certa forma, estar na SP LogIC é um retorno às suas origens?

Otávio Bueno - Exatamente. Para mim, me alegra muito estar de volta. Venho ao Brasil com frequência, mantenho colaborações com várias universidades brasileiras, ministro cursos, recebo alunos brasileiros nos Estados Unidos. Essa colaboração é importante, assim como foi para mim quando fui aluno. E, apesar de fazer parte de uma comunidade internacional, eu sou brasileiro. Para mim é importante manter o contato com a comunidade filosófica brasileira, isso de várias maneiras. Também acho que existe uma tradição lógica muito forte no Brasil, muito graças ao trabalho de Newton da Costa. A contribuição dele é um elemento de distinção no mundo, há uma escola brasileira de se pensar a lógica. Assim como, para a literatura, existe o realismo mágico, algo que faz destacar-se a produção latino-americana, existe a lógica paraconsistente brasileira. Isso tudo há décadas. E até hoje vemos as implicações disso.

JU - E como brasileiro, sabendo da importância da escola brasileira de lógica, você sente uma responsabilidade maior no sentido de perpetuar essa tradição fora do país?

Otávio Bueno - Isso é interessante, porque eu carrego o Brasil dentro de mim, não tem jeito. Eu vivo há mais tempo fora do Brasil do que aqui no país, mas meus anos de formação aqui são cruciais. Eu me identifico com o jeito de olhar para as coisas, de dar encaminhamentos para as questões, com a maneira de ficar perplexo com certas coisas. Acho que trazer isso é parte, inclusive, do que podemos trazer para um diálogo na comunidade internacional. Acho que existem coisas que nos distinguem, há uma certa combinação de fundamentos técnicos e filosóficos que são únicos na lógica brasileira.

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Professor explica fórmula em sala do Ciclo Básico, na Unicamp; "embora hoje a lógica seja, tecnicamente, uma parte da matemática, ela é peculiar"

JU - Sua formação é baseada na filosofia e a lógica é um campo em que há muitos pesquisadores vindos da matemática, da física e de outras disciplinas da área de exatas. Você percebe diferenças entre essas formações na hora de trabalhar com os conceitos da lógica?

Otávio Bueno - Sem dúvidas há diferenças. Embora hoje a lógica seja, tecnicamente, uma parte da matemática, ela é peculiar. Os próprios matemáticos raciocinam de maneira rigorosa, mas informal. Eles mesmos não usam uma lógica formal em seus raciocínios, com exceção de quem trabalha com ciência da computação. Esses precisam de uma linguagem formal para rodar os programas desenvolvidos. Os matemáticos fazem coisas precisas, mas de um jeito informal. É interessante que o que hoje nós pensamos como lógica foi a invenção de um matemático alemão, Frege [Gottlob Frege], que no fim do século XIX queria dar uma base rigorosa, formal, para a aritmética. Frege tem um livro lindo, chamado Fundamentos da Aritmética, em que ele demonstra sua perplexidade em perceber que algo tão simples como os números pode ser algo tão pouco rígido. Ele critica toda uma tradição de se pensar os números e oferece uma alternativa que baseia a aritmética na lógica. Mas, naquela época, a lógica não tinha sido desenvolvida formalmente. Ele criou um sistema formal no livro Conceitografia. Na época, os matemáticos ignoraram o texto. Quem viu a importância daquilo foi um filósofo, Bertrand Russell. Ele entrou em contato com o que Frege fazia e percebeu que o sistema era inconsistente, que gerava uma contradição. Russell desenvolveu outro sistema, completamente diferente, para tentar resolver essa questão, trazendo isso para a filosofia. Em certo sentido, a origem contemporânea da lógica vem da matemática. Claro, há a origem grega, com Aristóteles, mas a lógica matemática foi criada por um matemático. No entanto, há uma simbiose dela com a filosofia, elas atuam juntas. Hoje ainda é natural que haja essas separações, a lógica é estudada em departamentos de filosofia e de matemática. Mas a maior parte dos matemáticos, ainda hoje, têm a mesma reação que os colegas de Frege tiveram naquela época. Eles consideram que há uma rigidez exagerada. Até a hora em que eles precisam da rigidez [risos]. E, de fato, a computação não seria possível hoje sem a criação da lógica. As linguagens de software são baseadas em lógica.

JU - Seus estudos são voltados para a filosofia das ciências, na tentativa de construir uma visão empírica da ciência compatível com uma visão nominalista. Poderia explicar o que significam esses conceitos? No que consistem e como diferem entre si uma visão empírica e uma nominalista?

Otávio Bueno - Um empirista é uma pessoa que leva a sério as evidências e que também é crítico acerca das coisas que vão além dessas evidências. Os empiristas tendem a olhar com certa desconfiança para os “excessos metafísicos” que, às vezes, são produzidos. A questão para os empiristas é como dar sentido à prática científica sem ir além daquilo que é estritamente necessário do ponto de vista das evidências. Aí nós olhamos para a ciência, para a física, por exemplo. Os temas mais importantes da física, como a mecânica quântica, não têm como serem formulados sem o uso da matemática. Mas os objetos da matemática são abstratos. O número dois, um vetor no espaço físico, são conceitos abstratos, não estão no mundo concreto, e não dá para explicar um fenômeno concreto sem usar esse ferramental matemático. Precisamos, então, entender essa matemática. Um empirista vai dizer que essa matemática tem um papel que ela desempenha, mas que não é necessário que exista algo correspondente a ela entre as coisas concretas do mundo físico. É uma questão de desenvolver uma compreensão coerente da matemática, sem exigir a existência desses objetos que são abstratos, com o uso feito dela pelas diferentes áreas. Nisso entra o nominalismo, uma proposta que evita o comprometimento com essas entidades, tentando, ainda assim, dar um sentido para a prática.  A ideia do empirismo com o componente nominalista é entender a prática nos termos de como ela é feita. Há muitas formas de se fazer isso dentro da filosofia, criando outras formas para a ciência, outros percursos para poder dar conta desse problema. Acho essas abordagens artificiais, elas não levam em conta como a ciência é feita. A questão é entender como os cientistas usam a matemática para produzir física, por exemplo, sem extrapolar as evidências.

JU - Partindo dessa visão, podemos dizer que a matemática existe de forma independente do ser humano? Ou ela é uma criação humana?

Otávio Bueno - Essa é uma pergunta ótima, com uma enorme tradição filosófica. Os platonistas, por exemplo, assumem que objetos matemáticos existem de forma independente de nós e diriam que a matemática foi descoberta, que o papel dos matemáticos é descobrir quais as verdades sobre esses objetos que existiriam mesmo que nenhum ser humano jamais pensasse a respeito. Nominalistas tendem a ver isso de forma diferente. Como eles não acreditam nesses objetos, diriam que a matemática é uma invenção humana, que os matemáticos inventam conceitos, descobrem provas e obtêm resultados. O que é interessante é que, ainda que a matemática seja uma invenção, existe uma maneira de falar das descobertas, de conceber a objetividade da matemática mesmo para um nominalista. Uma vez introduzidos certos conceitos matemáticos e princípios que os relacionam e, dada uma lógica, o que se segue desses princípios não é dependente da matemática. Daí vem a objetividade da matemática, ainda que seus objetos não existam. O que é, então, curioso sobre a matemática é que ela é uma prática que não depende da existência dos objetos sobre os quais ela é feita. Mas ela é objetiva e essa objetividade é obtida, em parte, pela lógica.

JU - Partindo para um olhar geral sobre o mundo atual, a preocupação em compreender a ciência a partir das evidências pode contribuir para a forma com que as pessoas se relacionam com a ciência? Pergunto isso porque, hoje, convivemos com sinais claros da importância dela nos avanços tecnológicos, no desenvolvimento de vacinas, ao mesmo tempo em que as pessoas acreditam que a Terra é plana.

Otávio Bueno - Nós vivemos um momento muito complicado. Existe, de fato, uma vertente anticientífica muito forte no mundo, o que é surpreendente. Ela ignora exatamente o que o empirista tem como princípios, que é o apreço pelas evidências empíricas. A desconsideração sobre a importância das evidências tem um preço caríssimo. Isso ficou claro na pandemia, quando pessoas politizaram o uso de máscaras e a vacinação. O que falta é, exatamente, a capacidade de raciocinar sobre as evidências. Existe um problema educacional, de educar as pessoas a pensar de forma crítica, um problema tecnológico, em que as pessoas ficam expostas a informações não confiáveis em mídias sociais, e também um problema da própria ciência. Muitas vezes, os cientistas não são bons comunicadores da própria ciência. Isso, às vezes, nos coloca em situações complicadas. Por exemplo, se temos uma vacina com 89% de eficácia. Questionado sobre isso, um cientista pode dizer: "Sim, é uma vacina confiável, mas também há uma chance de ela não funcionar". Ao colocar dessa maneira, o público, que não tem domínio sobre os detalhes técnicos, ouve isso e pensa: "O cientista tem dúvidas". Acho que existe a questão de como comunicar os resultados da ciência. Claro, não queremos distorcer as informações, mas muitas pessoas não sabem ouvir essas informações. Dados de pesquisas são divulgados sem informações sobre como foram coletados, em que bases foram coletados. E por que elas não são dadas? Porque a maioria das pessoas não sabe da importância delas. Esse é um desafio. Cada vez mais a educação é fundamental. Trata-se de dar autonomia às pessoas. Elas devem ser capazes de avaliar as informações e de tomar suas decisões de forma independente.

JU - Diante desse cenário, e partindo do pressuposto de que a lógica olha de maneira sistemática para a forma com que as pessoas raciocinam, você acredita que ela deva ser normativa, ou seja, estabelecer regras prévias a serem seguidas, ou descritiva, criando sistematizações com base no que se observa nas pessoas?

Otávio Bueno - A lógica tem um conteúdo normativo, ela identifica padrões de inferência que são válidos. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão deve ser verdadeira. Isso mostra que não é possível extrair falsidade do que é verdadeiro, o que é muito importante. Os raciocínios indutivos não têm essa característica. Como as premissas podem ir além da conclusão, pode ocorrer de se extrair delas algo falso. Nesse sentido, a lógica tem um padrão de raciocínio, é normativa. Por outro lado, as pessoas raciocinam da forma como raciocinam, podendo cometer uma série de equívocos. Então é importante também entender como as pessoas raciocinam, inclusive para entender por que se equivocam. Existem estudos que apontam que as pessoas raciocinam usando pequenos "pacotes" pré-formatados, que são rápidos e simples, mas não muito acurados. Isso é um componente descritivo e é importante para auxiliar as pessoas a raciocinar de uma forma melhor.

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Experimento realizado em laboratório; o trabalho de investigação científica é, justamente, fazer um ajuste entre o que se acredita e aquilo que é de verdade

JU - Mas isso seria um trabalho da lógica ou da psicologia?

Otávio Bueno - Os psicólogos estudam isso, mas acho que os lógicos devem considerar esses dados como fontes de informação. Se você não sabe como as pessoas raciocinam, não é possível saber a origem de certas premissas. Nós queremos tornar as pessoas melhores, o que passa pelo raciocínio.

JU - Em sua aula magna na SP LogIC, você trabalha com as teorias da verdade, dialogando com a teoria da quase-verdade de Newton da Costa. Do ponto de vista filosófico, o que significa trabalhar com a verdade? Avaliar o mérito das questões ou a forma com que as pessoas chegaram a uma conclusão?

Otávio Bueno - Existe uma independência entre conceitos. Uma coisa é o verdadeiro e outra é o que você considera como verdadeiro. São coisas diferentes. Considerar algo verdadeiro ainda que a maioria das pessoas não tome isso como verdadeiro. Na Europa do século XIII, a maioria das pessoas achava que a Terra estava parada no centro do universo. O fato de que se acredita em algo não significa que esse fato seja verdadeiro. A verdade independe de nossas crenças. O trabalho de investigação científica é, justamente, fazer um ajuste entre o que se acredita e aquilo que é de verdade. Claro que sempre podemos ajustar nossas crenças para tentar conformar o que se tem por verdade, mas chega um momento em que isso não é mais possível. Há coisas que não se encaixam. Esse é o papel da verdade, sobretudo das verdades que temos determinadas. Existem algumas que não poderemos conhecer, como o número de grãos de areia no mundo. A respeito de outras, temos recursos para chegarmos a elas e essas precisam ser levadas a sério.

JU - Com isso, faz sentido falarmos em pós-verdade, expressão que se popularizou nos últimos anos?

Otávio Bueno - Eu acho que não. Isso é uma confusão infeliz elaborada com propósitos políticos. É uma tentativa de, mais uma vez, distanciar as pessoas dos fatos, como se eles não importassem. Se você produz literatura, tudo bem, é uma ficção. Mas o mundo não é ficcional. Com frequência as pessoas dizem: "Essa é a sua verdade. Eu tenho a minha". Em alguns casos, isso não faz diferença. É possível discordar de algumas coisas. Mas em muitas coisas isso faz diferença na vida de milhões de pessoas. Não é possível travestir a realidade, dizer que não precisamos mais da verdade. Pelo contrário, cada vez mais precisamos disponibilizar informações que sejam confiáveis e criar pessoas que sejam capazes de pensar de forma crítica.

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O professor de filosofia da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, fez graduação na USP e participou de seminários no CLE

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