A sinfonia polirrítmica da inquietação

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A busca incessante por novos caminhos musicais está na gênese da obra do compositor Egberto Gismonti. Nesta primeira parte da entrevista concedida ao Portal da Unicamp, ele revela detalhes de seus anos de formação, fala sobre suas maiores influências e explica as razões de encontrar na inquietação sua maior fonte de inspiração.    

 

Foto: Scarpa
O compositor e multi-instrumentista Egberto Gismonti 


Como o sr. recebe a homenagem da organização do V Festival de Música Contemporânea Brasileira?

Egberto GismontiFelizmente, temos mais esta homenagem.  Talvez seja pelo conjunto da minha obra – 70 discos, 35 balés, 35 filmes, 32 peças teatrais, etc –, ou pelos 70 anos que completei em dezembro passado. Na realidade, está acontecendo, de um ano para cá, uma quantidade completamente inesperada de demonstrações de reconhecimento ao Brasil, por meio da minha música.

Isto vem ocorrendo de várias maneiras. Seja por meio de três universidades que me concederam o título de doutor honoris causa, no Brasil, no Canadá e na Dinamarca – ou através de músicos americanos, italianos, franceses e brasileiros que estão entrando em estúdio para gravar minha obra completa, o que significa uma coisa meio fora de padrão. Não é muito normal o fato de músicos reconhecidos dedicarem-se à obra de alguém que está vivo.

Esta homenagem significa uma alegria para um brasileiro que gosta do Brasil e sabe que o país é muito pouco atento aos brasileiros. Significa também que nem tudo está perdido no país. Não estou me referindo a minha pessoa. Falo de um brasileiro que produz coisas brasileiras. 

Trata-se, então, de um agrado muito grande, ainda mais sabendo que vem de Campinas, um centro cultural com o qual tenho muita afinidade desde os anos 70 e 80, quando Benito Juarez era o regente da Orquestra Sinfônica de Campinas. Passei muitas vezes por Campinas e pela Unicamp não somente para tocar, mas também para fazer gravações para cinema e balé, sempre com o apoio de Benito e dos músicos. Fizemos muitos projetos juntos.

Também em Campinas, uma grande escultora japonesa chamada Akiko Fujita, fez um belíssimo projeto, na Unicamp, chamado Casa das Andorinhas – aliás, projeto este que, por razões possivelmente políticas, foi retirado do campus. Era uma casa feita de barro. Akiko, que já tem mais de 90 anos, sempre é convidada por países para ir a uma determinada cidade, passar um ou dois meses no local para descobrir a razão e o porquê de ceder uma obra à cidade.

Depois de passar uma temporada nos arredores de Campinas, ela concluiu que o melhor a fazer era uma grande escultura, a Casa de Andorinhas, que representasse o entra e sai de estudantes, assim como as andorinhas fazem os seus ninhos. Eu tive a possibilidade de passar um tempo em Campinas com ela e de musicar a escultura. Faço essas referências para dizer que sempre tive muitas experiências em Campinas, todas elas muito boas.
 

Foto: Reprodução
Benito Juarez, com quem Egberto Gismonti desenvolveu projetos, rege concerto da Sinfônica de Campinas na década de 1980


As experimentações estão em toda a sua obra. Como o sr. vê as pesquisas acerca do seu trabalho, entre as quais teses e dissertações?

Egberto Gismonti – Como, na realidade, essa produção começou há cerca de 15 anos e intensificou-se nos últimos 7, 8 anos, eu posso garantir que tomei conhecimento – e estou falando de Brasil, Alemanha e França – de 29 pesquisas, entre teses e dissertações, sobre a minha obra, sendo que cada uma aborda aspectos diferentes. Isso é muito bacana porque é assim que eu procuro pensar a música.


E como o sr. pensa a música?

Egberto Gismonti – Da mesma forma que costumo pensar a vida. Não é poesia o que estou dizendo, é a realidade. Cada dia tem de ser diferente, porque cada dia é diferente. Aprendi que tenho o direito à contradição há muito anos. Vou trocar o verbo experimentar por achar. Quero dizer que estou procurando achar soluções para problemas que considero insolúveis. Por essa razão, eu vou trocando de ponto de vista – para não usar a palavra americana approach – que eu gosto também, mas vamos ficar no nosso portuguesinho...

Aliás, uma das melhores definições de amigos de que mais gosto para falar das coisas que faço – ou as variações que a minha vida tem tido, com o passar dos anos –, foi dada pelo meu grande amigo Ferreira Gullar [1930-2016]. Numa conversa informal, numa roda, na qual cada um de nós expunha uma ideia sobre a criatividade ou contradições do outro, ele disse: “O Egberto tem mais formigas na cadeira do que os outros, porque ele nasceu numa cidade interiorana muito pequena e não tinha muito o que fazer. Então, ele olhava para o céu e dizia ‘seria aquilo ali, seria não sei o quê’... E como ele não sabia o que era, saía para procurar; ele só queria conhecer coisas. Ele é um sujeito que tem uma inquietação muita grande, procurando respostas diferentes até para as coisas que ele já acha que sabe”.

Eu achei isso muito engraçado. Não sei quanto tem de verdade, mas de amizade tem um monte, e podendo ter amizades de pessoas como Ferreira Gullar... Ele matou a charada numa frase maravilhosa. Gullar era muita competente, ali transbordavam ideias boas.


O sr. participou de projetos muitos projetos na literatura. Como teve início essa sua relação com escritores?

Egberto Gismonti – Sempre estive envolvido, mas houve uma época em que eu tive a chance de entrar mais profundamente no universo da literatura brasileira. Fui convidado a musicar antologias poéticas e tudo isso saiu em disco duplo pela Som Livre.

Na época, final dos anos 70, começo dos 80, não passava de uma gravadora que lançava trilha de novelas. Uma grande amiga, Marília Pedroso, conseguiu convencer os diretores da Som Livre de que seria uma ideia maravilhosa, para a companhia, fazer essas antologias poéticas. Não posso garantir que foi uma ideia ótima para a gravadora, mas foi ótimo ter registrado seis pessoas, entre os quais Jorge Amado [1912-2001], João Cabral de Melo Neto [1920-1999] e o próprio Gullar, a quem conheci nessa oportunidade e de quem acabei sendo um grande amigo. Foi ótimo termos a possibilidade de ouvir os autores lendo ou comentando a própria obra. É uma coisa muito única. A vida tem sido muito benevolente comigo no quesito literatura.

 

Reprodução | Foto: Instituto Moreira Salles (IMS)
O poeta João Cabral de Melo Neto | Foto: Instituto Moreira Salles (IMS)


De que maneira?

Egberto GismontiTive a possibilidade, por exemplo, de escrever, a pedido do próprio, uma abertura, em texto, para um dos últimos livros do nosso querido Manoel de Barros [1916-2014]. Alguns amigos me perguntaram – entre eles um dos mais recentes imortais, Geraldo Carneiro – por que razão eu havia sido chamado por Manoel de Barros. Quando ele me perguntou, o silêncio se impôs, até porque eu também não sabia razão. Até que ele, Geraldinho [Geraldo Carneiro], disse: “Ele poderia ter chamado qualquer pessoa”. Eu respondi: “É esta a razão!”. Matamos a charada e rimos muito.

Eu contei para o Manoel de Barros, que morreu de rir e disse: “Exatamente! Não tem que ter razão nenhuma. É você que eu quero porque posso chamar qualquer pessoa, pronto”.

Aliás, o Gullar foi o primeiro dos convidados cuja obra eu musiquei. E no primeiro encontro que tivemos, na casa de Marilda Pedroso, para as tratativas da parceria, eu disse a Gullar que estava com muita vontade de musicar a antologia dele, mas que não sabia como isso podia ser feito. Ele me olhou com aquela cara de moleque, com aquele olhar meio faceiro, e me disse em tom de brincadeira: “Egberto, nunca ninguém sabe fazer antologia poética musicada. Então, vamos combinar o seguinte: eu já tenho a minha poesia, você já tem a sua música. A gente junta as duas. Se der certo, dissemos que a gente pensou assim; se der errado, a gente fala que não fomos os idealizadores”. Isto é uma maravilha! Abriu caminho para que gravasse com os demais. Inclusive com o João Cabral, que era osso duro...

Foto: Reprodução
O poeta Manoel de Barros


Diz a lenda que ele era de pouca conversa, monossilábico...     

Egberto GismontiSim, monossilábico, e eu tive muita sorte. Marilda, que fazia tudo para me prover de informações sobre os autores – porque não bastava ler e conhecê-los, já que passávamos horas juntos –, me disse: “Prepara-se porque o João Cabral não gosta de música, ele já declarou isso inúmeras vezes”. Eu respondi: “Mas que beleza esse convite, isso é coisa de amigo da onça...”. Ela me disse então que a única coisa que ele aceitava e admitia como música era a obra de Anton Webern [1883–1945].

Eu perguntei se ela estava brincando comigo, para dizer em seguida que, nos anos 70, quando havia morado na França, eu tivera, por sorte, a oportunidade de estudar um ano e meio com um senhor chamado Jean Barraqué [1928-1973]. Ela perguntou o que tinha a ver uma coisa com outra, e eu expliquei que o amigo fiel, que estava ao lado de Webern em seu leito de morte, chamava-se Jean Barraqué, com quem estudei música dodecafônica a ponto de fazer a tradução para o português do livro de [René ] Leibovitz [1913-1972], chamado Introdução à música de todos os sonhos, que acabou não sendo editado.

Eu não apenas conhecia a obra de Webern, como havia feito peças dedicadas a ele, de quem gosto demais por sua síntese etc. E, em razão disso, quando encontrei-me com João Cabral, liguei o meu departamento “carmense” [referência a Carmo (RJ), cidade natal do compositor]. Quando você é do interior, aprende-se que a coisa mais importante é que a conversa não pare. Pensei comigo: vou conduzi-lo até Webern, nem que eu tenha que morrer nessa conversa. Ele me olhou com aquela cara de mal humorado e me disse, lá pelas tantas: e o senhor – ele me tratava de senhor, a despeito de eu ter meus 40 anos e ele perto de 80 – faz que tipo de música? Eu lhe disse que fazia uma série de músicas, mas que, na realidade, o filtro maior era a tentativa da síntese porque, já que eu estava num país de miscigenação, eu podia usar isso para tentar colher, a cada período da minha vida, um fruto diferente. Ele achou isso uma beleza de ideia.

Foto: Reprodução
O compositor francês Jean Barraqué, com quem Egberto Gismonti teve aulas em Paris no início da década de 1970

Até porque ele era um adepto da síntese...      

Egberto Gismonti – Sim. Em seguida, ele perguntou qual a linguagem de que falava sobre síntese. Discorri durante 15 minutos sem parar sobre a introdução do livro do Leibovitz. Como eu o havia traduzido, tinha quase decorado uma série de parágrafos interessantíssimos. Ele largou o que tinha nas mãos e ficou me olhando. Passei a levar a conversa para o ponto culminante chamado Anton Webern. Quando, ao final da conversa, eu disse o nome do compositor, ele sorriu, não sem antes dizer: “Mas o senhor é muito novo para conhecer Webern!”. Era uma baita contradição, pois eu já estava na casa dos 40... Bem, depois de uma longa conversa, ele olhou para Marilda e disse que, definitivamente, iria permitir que a antologia tivesse música. E assim eu musiquei a sua antologia.

Aliás, se um dia eu me sentir mais animado, sou capaz de escrever, com a autorização de cada família, a história de cada uma dessas antologias. Os encontros foram maravilhosos, um melhor do que o outro; melhor do que a própria música, com certeza. Foram encontros quase comparáveis à qualidade da poesia das pessoas. Foi um grande exercício de amizade. E era recíproco porque, aquele que era musicado, podia estar de cara feia etc, mas no fundo estava doido para que desse certo. Foi tudo muito bonito.


Esse acervo está disponível?

Egberto Gismonti – Acho que sim. São seis discos duplos. Além dos que eu fiz, há outros musicados por Francis Hime e Edu Lobo. Há, também dessa época, uma coleção de discos infantis de Geraldo Carneiro e outros poetas, pretensamente escritas para crianças. Pouco tinha de infantil, mas a gente dava o tom da brincadeira... Reunia, no estúdio, um monte de grandes amigos, profissionais de outros ramos. Era uma briga de foice para ver quem fazia o galo, a galinha, a cobra... Lembro bem que a gente tinha um amigo psiquiatra que, por escolha pessoal, fazia a galinha. Ríamos muito quando a história começava e alguém do estúdio dizia: “e, agora, a galinha!”.

Todo esse processo era muito suave e simpático. Todas as palavras cabiam, todas as brincadeiras faziam sentido. Sei que a minha vida voltou-se muito para isso. Essa é razão principal de eu ter gravado 70 discos, dos quais 68 ou 69 com títulos em português e todos relacionados com alguma coisa da história brasileira.


Como o senhor conciliou a tradição e o experimentalismo ao longo de quase 50 anos de carreira?

Egberto Gismonti – Há poucos dias recebi um áudio de um concerto, realizado em 1973, na sala Cecília Meireles, no Rio, com Peter Dauelsberg (cello), Odete Dias Ernest (flauta), o Kesller (viola) e eu no violão. Além de [Franz Peter]  Schubert [1797-1828] e [Heitor] Villa-Lobos [1887-1959 ], nós tocamos três peças minhas, sendo uma para violão solo, outra para violão e flauta e outra para trio (flauta, violão e cello), chamada In Memoriam Anton Webern. Esta peça foi uma das primeiras coisas dodecafônicas que eu escrevi. Estou localizando isso para mostrar que a questão da inquietação vem desde o início da minha carreira.

Eu não sabia nominá-la de outra forma que não fosse esta. Os anos se passaram e eu fui me envolvendo com outras coisas, admitindo perfeitamente a contradição. Você pode certificar-se disso por meio dos próprios discos. A cada três, quatro discos, eu pegava uma música gravada nos anteriores e fazia uma nova leitura. Muita gente achava que eu tinha feito um novo arranjo, etc, e eu já declarava que estava apenas corrigindo, porque ali havia erro demais.

Sempre fui muito pouco apegado a tudo que termina ou que se dá como formalizado. Eu me dou facilmente ao direito da contradição.

Foto: Reprodução
Anton Webern, compositor preferido de João Cabral e a quem Egberto Gismonti dedicou uma peça

O sr. saberia localizar a origem dessa inquietação?

Egberto Gismonti – Descobri pensando sobre os caminhos de meus pais, conversando com a minha família, indo ao Carmo, Friburgo, Bom Jardim, Sumidouro, Cordeiro, Além Paraíba – cidades que eu frequentava na minha infância e em parte da minha juventude.

Constatei, por exemplo, que foi decisivo o fato de ter um pai – imigrante que chegou do Líbano aos 6 anos de idade – que fazia questão absoluta que o filho estudasse piano. Quando ele saiu do Líbano, no início do século passado, Beirute era uma cidade cosmopolita, muito bonita, aquelas coisas todas.

Por outro lado, eu tinha a minha mãe que, durante um longo tempo, concordava com um piano forte, mas queria saber onde estava a serenata. Para uma boa italiana – ela também era imigrante –, a serenata revela-se por meio da guitarra, ou do violão, como a gente chama.

No dia em que eu percebi que tocava bem, ou seja, que eu podia me expressar com esses dois instrumentos – e desde cedo eu havia sido impulsionado a mexer com eles –, comecei a entender a minha inquietação, até porque são instrumentos antagônicos. Ela – a inquietação – se originou por meio dessas determinações, pedidos ou exigências que meus pais haviam feito.


E na esfera das influências musicais?

Egberto Gismonti – Se eu posso estudar violão, que nada tem a ver com piano e vice-versa, se eu posso conhecer Cartola [Angenor de Oliveira – 1908-1980], Nelson Cavaquinho [ Nelson Antônio da Silva –1911-1986), Carlos Cachaça [Carlos Moreira de Castro – 1902-1999], mas posso conhecer também Esther Scliar [1926-1978], Nadia Boulanger [1887-1979], Jean Barraqué, Marie Laforêt, tocar cancan em Paris ou escrever música dodecafônica, é porque estou vivo.

A imigração dos meus pais continua questionando a minha própria determinação de existir. Ouvi a vida inteira de meus pais que qualquer maneira de amor valeria a pena. Eles falavam não apenas sobre eles – que se conheceram por acaso numa cidade do interior que tinha dois, três mil habitantes –, como fizeram as respectivas famílias brigarem entre si porque, na cabeça dos membros da família, um machista libanês não poderia se casar com uma madona italiana.

Como uma mulher que manda em todo mundo vai se casar com um homem que manda em todo mundo? No entanto, eles dois viveram muito bem a vida inteira, tiveram três filhos –eu sou caçula – e nos ensinaram a liberdade que o imigrante deve ter.

Parece que isso não está sendo levado em conta no Brasil há muitos anos. Se pensarmos que boa parte de todos nós existe porque se juntaram alhos e bugalhos num passado de 100, 150 anos... O Brasil foi se juntando da maneira que era possível e transformou-se nisso que é: todas as caras, todas as vozes, todas as cores etc. Aliás, acho absolutamente geniais os sistemas de audição e fonético do brasileiro.

Reprodução
A compositora francesa  Nadia Boulanger, que foi professora de Egberto Gismonti em Paris

Em que sentido?

Egberto Gismonti – A grande maioria das pessoas no Brasil é capaz de falar outras palavras em outras línguas e, se for corretamente ensinado, fala sem sotaque, porque a máquina fonética ajuda e a auditiva é determinante. Tem de ouvir direito para reproduzir igual. E isso aparece na contradição que nós somos. Diante disso, eu abri na minha vida, sem que ninguém tivesse fechado antes, todas as janelas à procura de expressões que representassem a inquietação que eu sempre pressenti existir no seio da família de onde eu venho.

Eu não sou o culpado dessa alegria, dessa liberdade. Eu sou consequência dessa maravilhosa razão que emergiu da relação entre um libanês e uma mulher da Catânia, onde as mamas mandam mesmo. Era lindo! Os dois mandavam, não deixaram de mandar, mas nunca com alguém presente.


Onde o sr. localiza a brasilidade na sua obra nessa confluência de culturas?

Egberto GismontiNa realidade, eu venho percebendo, a partir da gravação de muitos discos, que depois de um tempo de vida você tem a prova dos nove em relação de como e o que você fazia. Todas as coisas que não são sólidas, mas têm consistência, como expressão oral, como música, etc, que foram gravadas, tornam-se decididamente importantes na compreensão do passado.

Tive uma sorte muito grande, desde muito cedo. O meu pai, por exemplo, apareceu com gravadores – um deles chamado Geloso, muito antigo – o cassete ainda não existia–, de duas fitas de rolos pequenas, com seis teclas, cada uma de uma cor. Desde essa época – eu tinha lá meus 9, 10 anos –, aprendemos que existia um aparelho que registrava sons. Para isso, a gente fazia experiências, brincadeiras, porque meu pai não era um bom músico. Dentre as suas funções, como bom libanês – além de coletor federal, além de não sei o quê... –, ele também vendia pianos. Ele tinha uma loja – os pianos vinham do Rio de Janeiro. Por meio do gravador, nas brincadeiras, um tocava para outro, e a gente descobria os erros. Dizíamos que gravávamos para não ter nenhuma mentira, enfim, coisas muito bacanas, tudo sempre em torno da música.

Fui percebendo, nessas brincadeiras, que meu pai expressava um pouco do que ele sabia de música, assim como os outros. Eu também me expressava, mas por alguma razão, por estarmos numa cidade pequena – aí já não era mais o Carmo, mas Nova Friburgo, que das pequenas seria até grande, mas grande com 30 mil habitantes, não 300 mil como hoje –, acabávamos ouvindo músicas de migrantes brasileiros. E, dentro desse grupo, muitos saíram de cidades menores do Sul, do Centro-Sul, do Norte e do Nordeste.

Eu me lembro que as primeiras vezes que vi alguém tocando ou cantarolando músicas que me despertaram a atenção muito especial, tratava-se de gente que tocava pife. E, por alguma razão, tocava em feiras montadas em praças públicas. Eu era muito miúdo, mas a minha curiosidade era grande. Eu nunca havia ouvido aquilo.

Depois, já com o advento da televisão, havia o Mascarenhas, que tocava acordeom, tinha orquestra e era muito famoso. E tocavam não só as valsas famosas, para as quais eles faziam arranjos, como também valsas de esquinas brasileiras para muitos acordeons, além de tocar arranjos de música popular brasileira. Eu me lembro que ouvi um grande arranjo deste grupo, dos Mascarenhas, a música Pelo telefone, do Donga [Ernesto Joaquim Maria dos Santos – 1890 -1974). Imagine você 10, 15 acordeons, isso no início da televisão. Havia um programa, se não me engano na TV Rio, que nos fazia ficar horas escutando. Eu fiquei encantando com esse negócio.

Depois, a própria televisão me trouxe uma senhora pernambucana – de quem eu tenho a discografia toda – que era a tia Amélia [Amélia Brandão Nery – 1897-1983]. Ela tocava choros e tinha uma característica que eu adorava e não sabia por quê. Ela tocava olhando para a câmera, sorrindo, conversando com os telespectadores. Transporte isso para os anos 50, 60, para poder entender aquela figura gentil, com uma cara doce... Como ela tocava sem olhar – o importante era olhar para a câmera –, ela errava muitos os baixos, errava os acordes, mas não mudava a expressão.

Eu não conhecia tecnicamente os erros, mas eu estranhava porque eram uns acordes esquisitos. Via que havia alguma coisa errada naquele conceito harmônico, melódico. E acabei admitindo, com o tempo, que aquilo fazia parte da brincadeira. Passei a brincar no piano com isso, até que fui transformando o erro em algo que me agradava, mesmo que erro fosse.

Daí entrei na polirritmia de cabeça, que foi o que caracterizou e modificou a minha forma de tocar violão, tanto que o transformei em um instrumento de dez cordas, com outra afinação, para poder tocar como pianista. E transformei o piano que eu tocava, fazendo acordes ou partituras escritas, tradicionais, ou acordes com a mão esquerda e melodias com a direita, e passei a tocar duas vozes. E as duas vozes são resultado da possibilidade da polirritmia representar o fundamento – ou os fundamentos principais – de qualquer peça musical. Quer dizer, você sempre vai procurar a questão rítmica, a questão harmônica e a questão melódica – o resto são os contrapontos, as fugas, etc.

Sei que acabei me desenvolvendo assim. E quando vim morar no Rio de Janeiro, aos 17 anos, eu já tinha um repertório feito.
 

Reprodução
Tia Amélia: pianista tocava olhando para as câmeras


Que resultou em seu primeiro disco, em 1969.

Egberto Gismonti – Sim, em 1969. No meu primeiro disco brasileiro, feito na Companhia Brasileira dos Discos (CBD), homenageio [Joseph Maurice] Ravel [1875-1937], Baden Powel [1937-200], Tom Jobim [1927-1994], o que me deixa muito feliz. Ao mesmo tempo, por conta da liberdade que veio da minha casa, há na contracapa um bilhete, a despeito dos protestos da direção da gravadora, que alegava que eu não era uma pessoa conhecida – por meio do qual agradeço Wilson das Neves [baterista, 1936-2017] e Sérgio Barrozo [contrabaixista]. Eles tornaram esse disco possível, foram eles que o realizaram.


JU – Em que medida?

Egberto Gismonti – Porque eu escrevia arranjo, mas não sabia o quanto isso ia funcionar. Eles consertaram tudo dentro do estúdio. Deram bronca em todos os músicos profissionais que lá estavam, que não tinham muita paciência com um menino [22 anos] iniciando uma carreira, que escrevia partituras mas não colocava digitação e expressão direito. Eu já havia feito curso disso, estudado orquestração – comecei muito cedo na música –, mas eu não sabia fazer uma partitura “para mandar pelo Correio”, eu tinha que ir junto (risos).

Acho bacana que no meu primeiro disco tenha um agradecimento explícito a músicos que foram responsáveis – assim escrevi – por aquela música existir. E mais uma vez, curiosamente, a música torna-se benevolente e possibilita que eu comece a ter amigos em todos os cantos, não por uma questão de diplomacia ou de qualquer outro sentido que isso possa ter, mas sim por eu ter um respeito muito grande por músico – e pela música de uma maneira geral.

Abro aqui um parênteses para dizer que, até hoje, eu continuo a receber muitos discos de pessoas que eu nunca vi na vida. E eu continuo respondendo – embora menos, de 5 a 6 discos por mês. E quando digo que respondo é porque eu emito minha opinião escrevendo sobre cada faixa. Por tudo isso, eu aprendi o quanto o músico, o criador, depende dos outros.

Reprodução
Wilson das Neves (acima), Sérgio Barrozo (entre Dom Salvador e Edson Machado no Rio 65 Trio - na foto maior) e os agradecimentos aos dois músicos de Egberto na contracapa de seu primeiro disco


Dá para exemplificar?

Egberto Gismonti – De 6, 7 anos para cá, quando teve início a desova de todas as grandes indústrias de disco – desova porque, não podendo vender o que desejam, fazem caixas com obra completa e vendem muito barato. Assim, eu comprei a obra completa de [Arturo] Toscanini [1867-1957] em três situações diferentes: como regente da RCA, nos Estados Unidos, com 92 CDs; com o Scala de Milão, com 35 discos; e como diretor da Filarmônica de Berlim, com cerca de 20 CDs.

O que eu quero dizer com isso? Aprendi que havia um momento na história da música no qual um regente, sendo italiano, ou qualquer que fosse a nacionalidade, poderia ser diretor de três centros mundiais de muita importância. A política mudou isso. A segunda coisa que aprendi – e a mais importante – é que passei a ouvir as partituras originais escritas desde Beethoven para cá. Toscanini fez isso nos Estados Unidos e na Itália no início dos anos 30, 40. De forma que eu tenho uma versão original da 9ª Sinfonia de Beethoven, contabilizando vozes e orquestra, na qual são 76 pessoas tocando e cantando. Isso me dá o padrão de quanto que a música independe do compositor.


Como mensurar essa relação de independência?

 Egberto Gismonti – Uma música que nasceu para ser essa expressão do que Beethoven pretendia, modificou-se para pior, eu acho, por exemplo, na mão de Herbert von Karajan, em cuja última versão tem 350 vozes com 112 músicos, puxando a afinação para 443, o que fez com que a indústria toda de metais pelo mundo afora tivesse que retrabalhar a possibilidade de afinação. Tudo isso por uma imposição puramente política.

A música tem lados que são muito curiosos, pouco discutidos e que, têm, a meu ver, a mesma importância da coisa musical, pura e simples. E isso tem a ver com a política. 

(Continua)

Cenas da abertura do V Festival de Música Contemporânea Brasileira - Fotos: Antonio Scarpinetti

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Audiodescrição: Imagem em perfil e de busto, homem em acentuada contraluz radial e em tom laranja, onde aparece apenas o contorno da pessoa fotografada. Imagem 1 de 1.

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