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Violência, segurança e paz

Em tese premiada, pesquisadora estuda discursos sobre a atuação da polícia no Rio às vésperas de grandes eventos

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Nos anos 2010, em um esforço para melhorar a imagem do Brasil no cenário internacional, o governo do estado do Rio de Janeiro lançou um conjunto de medidas para o combate do narcotráfico nas favelas da capital. Um exemplo foi a criação das Unidades de Polícia Pacificadora, as chamadas UPPs. A esse conjunto de ações, a pesquisadora Liliane Souza dos Anjos atribui a designação de “promessas de pacificação”. Esse compromisso proposto pelo governo naturalizou estereótipos relacionados à favela e ajudou a justificar a presença da polícia nessas comunidades, assim como operações policiais violentas. Essa é uma das conclusões do estudo conduzido por ela em seu doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), finalizado em 2021, sob a orientação de Suzy Maria Lagazzi.

A pesquisa foi um dos trabalhos vencedores da 2ª edição do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direito Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog, iniciativa direcionada à valorização de pesquisas que contribuam para a promoção da dignidade da vida e de todas as formas de existência.

Intitulada “O funcionamento discursivo da promessa de pacificação”, a pesquisa de dos Anjos investigou uma série de discursos e ações voltados para a construção de um “ideal de segurança” no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, nos anos anteriores a dois grandes eventos esportivos internacionais que seriam realizados no país: a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. 

O “fim da violência no Rio de Janeiro”
O interesse por essa problemática surgiu em 2010, ano em que Liliane assistiu a uma cena emblemática. No dia 25 de novembro, uma megaoperação policial na Vila Cruzeiro, uma das comunidades que formam o Complexo da Penha, provocou uma fuga em massa de traficantes, que se deslocaram em direção ao Complexo do Alemão, outro conjunto de favelas na Zona Norte do Rio. Enquanto os homens se deslocavam sob o ataque da polícia, as cenas eram transmitidas ao vivo em uma grande cobertura da mídia, alcançando circulação internacional. O espetáculo midiático declarava, de forma simplista, o “fim da violência no Rio de Janeiro”. “A pacificação se colocou como o fim de uma era”, relembra a pesquisadora.

Foto que mostra carros de polícia estacionados em uma rua. Há policiais em pé ao lado dos carros. Ao fundo há um muro e uma casa com paredes sem reboco.
Nos discursos do governo do Estado do Rio de Janeiro os termos paz e segurança se confundem, justificando ações de violência (Foto: Tomaz Silva, Agência Brasil)

Em sua pesquisa, dos Anjos buscou compreender os efeitos de sentido de termos como “paz”, “ocupação”, “pacificação” e “invasão”, que circulavam em discursos proferidos pelo estado em sua “promessa de pacificação”, um compromisso que envolvia disputas e gerava expectativas.

Dois documentos foram objeto de análise da pesquisadora: o relatório da ONG Anistia Internacional do Brasil, “A violência não faz parte desse jogo”, publicado em 2016, e a Diretriz Ministerial nº 15 de 2010, intitulada de “Regras de engajamento para a Força de Pacificação”. O primeiro anuncia preocupações com as violações dos direitos humanos, já o segundo institui uma série de ações de pacificação e apresenta conceitos fundamentais para seu planejamento e execução.

Segundo a pesquisadora, “a promessa de segurança bem-sucedida é lida e circula como promessa de pacificação”, isto é, paz e segurança são indistintos. “Por circular socialmente como promessa de pacificação, a violência legitimada do Estado parece obter mais aceitação da população, a ponto de ser reiterada não como violência do Estado, mas como um ‘mal necessário’ para se alcançar a segurança”, afirmou dos Anjos em sua tese. “Esquece-se cinicamente de que a segurança promovida pelo Estado é garantida exclusivamente pela violência, reafirmando-se a necropolítica em curso nesse país, negando-se, invariavelmente, a possibilidade de outros percursos de significação para a favela”, escreveu.

As ações nas favelas eram movidas pela necessidade de segurança e, em contraposição, atribuíam a essas comunidades diversos sentidos ligados à violência. A naturalização desses sentidos justificava a presença policial nas favelas, levando à caracterização de operações violentas como um “mal necessário” para a manutenção da segurança que fora prometida. Conforme explica dos Anjos, a associação entre paz e segurança desmobiliza outros trajetos significantes como, por exemplo, que paz seja sinônimo de um social com melhores condições de existência, com acesso à saúde, igualdade de oportunidades e educação de qualidade. “Não seriam tais ausências marcas de violência do Estado?”, questiona.

Esta reportagem foi elaborada por alunos do curso de Estudos Literários, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), sob a supervisão da professora Daniela Birman.

Imagem de capa JU-online
Foto que mostra um soldado em primeiro plano, ele usa capacete, óculos e está segurando um rifle, à esquerda há um tanque e ao fundo um casa de dois andares com tijolos aparentes.

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