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Não temos os dados de que precisamos para melhor enfrentar a pandemia

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, José Manuel Aburto, da Universidade de Oxford, diz que países da América Latina não contam com indicadores precisos e apropriados para entender a pandemia

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Na véspera do anúncio pelo IBGE da suspensão do processo de seleção de pesquisadores, ameaçando a realização do Censo 2021, a aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Demografia da Unicamp abordou a importância dos dados no entendimento das desigualdades dos impactos da pandemia de Covid-19. O palestrante, Dr. José Manuel Aburto da Universidade de Oxford, concedeu entrevista ao Jornal da Unicamp sobre o tema, transcrita abaixo.

Jornal da Unicamp - Descreva a sua trajetória acadêmica. Qual a diferença entre olhar a América Latina desde aqui e da Europa?

José Manuel Aburto - Atualmente sou Newton International Fellow no Departamento de Sociologia do Centro Leverhume de Ciências Demográficas e do Nuffiled College da Universidade de Oxford. Além disso, sou professor adjunto na Universidade do Sul da Dinamarca, onde terminei meu doutorado em 2020. Durante a minha formação no doutorado também fui afiliado ao Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica, onde fui pesquisador convidado até o ano passado. Tenho experiência interdisciplinar em Demografia, Sociologia e Saúde Pública, adquirida por meio de bolsas de pesquisa e capacitação acadêmica do Centro de Demografia de Saúde e Envelhecimento da Universidade Wisconsin-Madison, da Universidade Sapienza de Roma, através da escola Europeia de Doutorado em Demografia (EDSD), além de um mestrado no Colégio do México. Parte da minha pesquisa focou no estudo dos processos de mortalidade na América latina e, particularmente, sobre o efeito da violência na saúde da população a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Esses temas de pesquisa são muito importantes na nossa região, mas também é importante considerá-los de uma perspectiva europeia, onde os níveis de violência são os mais baixos do mundo.

JU - A desigualdade nos impactos da pandemia de Covid-19 foi anunciada por muitos desde seu início no começo de 2020, mas como essas percepções se desenvolveram até agora em diferentes países?

JMA – O impacto da pandemia em função de desigualdades foi prognosticado desde o início. No entanto, a magnitude do impacto não era conhecida e estamos ainda começando a aprender sobre as consequências da pandemia quanto às desigualdades. Os grupos mais vulneráveis antes da pandemia são aqueles que contam com menos recursos para poder enfrentar os desafios que a pandemia impôs em nossas vidas, como, por exemplo, não sair de casa. A partir de uma perspectiva macro, isso se estende no âmbito de países também. Isso quer dizer que países desenvolvidos contam com muito mais recursos do que países em desenvolvimento com níveis altos de trabalho informal como é o caso do Brasil e do México. Essas diferenças muito provavelmente aumentarão as disparidades entre países, assim como entre distintos grupos populacionais dentro de cada país.

JU – Aos poucos ganhou corpo a percepção de que o enfrentamento da Covid-19 necessita de uma abordagem multi ou interdisciplinar. Quais são as contribuições da Demografia nesse contexto?

JMA -A Demografia tem apresentado contribuições muito importa. Em primeiro lugar, desde o início contribuiu com a inclusão da temática das diferenças entre estruturas populacionais para melhor compreensão dos indicadores sobre a Covid-19. Também tem contribuído com o entendimento do processo de infecções em diferentes países, ao estudar a estrutura de famílias e lares. Os três elementos chave da Demografia (mortalidade, fecundidade e migração) também se converteram em elementos muito importantes para compreender as causas e consequências da pandemia.

JU – Hoje já está claro para muitos que os dados agregados gerais não são suficientes para entender a pandemia. Quais são os dados necessários para que os impactos sejam melhor entendidos, bem como para informar as políticas de enfrentamento da pandemia? O que aprendemos até agora?

JMA – Os dados em nível individual, tanto de registros administrativos, quanto de pesquisas de público e novas fontes de dados como a partir de redes sociais, serão muito importantes para compreender as consequências da pandemia a curto e longo prazos. Até agora, poucos países contam com dados desse tipo de modo apropriado. Lamentavelmente, nos países mais afetados, como os da América Latina, a falta de dados desagregados (por idade, gênero, endereço, entre outros), precisos e apropriados tem sido uma constante desde o início da pandemia.

JU – A Covid-19 diminuiu a expectativa de vida a curto prazo em vários países em intensidades comparáveis às provocadas pela Segunda Guerra Mundial. Quais são os prováveis efeitos a longo prazo?

JMA – A pandemia, muito provavelmente, afetará a mortalidade dos países a médio e longo prazos, tanto de maneira direta, quanto indireta. Estudos recentes sugerem que indivíduos que foram infectados com o novo coronavírus podem apresentar sequelas na saúde vários meses depois de terem tido a doença. Isso sugere que haverá uma deterioração do progresso (diminuição do índice de mortalidade) que vem sendo observado nos últimos anos. Ao mesmo tempo, a pandemia também prejudicou tratamentos de outras enfermidades, como câncer e doenças cardiovasculares, devido à saturação do sistema de saúde e ao medo de ir a hospitais. Todas essas mudanças poderiam impactar nas tendências de expectativa de vida em muitos países, sobretudo naqueles mais afetados pela pandemia.

Imagem de capa JU-online
Desigualdades dos impactos da pandemia de Covid-19 | Imagem de mohamed Hassan por Pixabay

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