CNPq - Ciência Ameaçada

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‘O CNPq foi o ponto de partida para o desenvolvimento da ciência no Brasil’

Rui Albuquerque trabalhou por 37 anos no órgão que julga ter sido fundamental também para a criação do complexo do CNPEM

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Instalações internas do Sirius, novo acelerador de elétrons brasileiro de 4ª geração
Instalações internas do Sirius, novo acelerador de elétrons brasileiro de 4ª geração

“O CNPq foi o ponto de partida para o desenvolvimento da ciência no Brasil, há mais de 60 anos, e para este complexo que temos hoje”, afirma o professor Rui Albuquerque, que continua dando aulas na graduação do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp enquanto assessora a Diretoria Geral do CNPEM – Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais. O CNPEM, complexo a que ele se refere, abriga em 53 hectares do Polo II de Alta Tecnologia de Campinas (próximo à Unicamp) um conjunto de quatro centros de pesquisa de referência mundial: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), o Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR) e o Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), estando em fase final de construção o Sirius, novo acelerador de elétrons brasileiro de 4ª geração.

Rui Albuquerque é o último de três convidados a fazer uma análise da importância do CNPq para o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia e da grave crise que o ameaça atualmente – anteriormente publicamos as opiniões de Lea Maria Strini Velho e André Tosi Furtado. Albuquerque opina com base na experiência de quem atuou no CNPq por 37 anos, com breves interregnos desde que foi contratado em janeiro de 1978 (dois anos antes de a sede ser transferida do Rio de Janeiro para Brasília) até se aposentar formalmente do órgão há três anos. “Foi o CNPq que viabilizou a implantação do Síncrotron, criando um grupo para construir um anel acelerador de elétrons em dezembro de 1984. A primeira medida foi mudar o nome do projeto, que se chamava Laboratório Nacional de Radiação Síncrotron – ‘radiação’ daria muito o que falar, e luz, afinal, é uma forma de radiação”, diz bem humorado o docente da Unicamp, que era então superintendente de Planejamento do órgão.

Como inventariante do LNLS, que foi criado como um Instituto do CNPq, Rui Albuquerque tratou do primeiro contrato no Brasil de transição de um órgão público (o próprio Síncrotron) para a administração de uma organização social (OS), a ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron). Uma OS deve exercer atividades de interesse do Estado, no caso, a serviço da comunidade de pesquisadores acadêmicos e industriais. “O CNPQ fez um contrato com a Funcamp [Fundação de Desenvolvimento da Unicamp], que contratou funcionários, técnicos, engenheiros e alguns pesquisadores – sob a coordenação do gestor do projeto Cylon Gonçalves da Silva – e depois passou a gestão do Laboratório à ABTLuS. Como criamos vários laboratórios nacionais, a organização deixou de ser apenas de luz sincrotron e passou a chamar-se CNPEM. É somente um pouco da história do complexo, para cuja criação o CNPq foi fundamental.”

Albuquerque recorda que nos 10 anos em que trabalhou seguidamente na sede em Brasília, de 1980 a 1990, o CNPq funcionava como uma secretaria executiva do Sistema Nacional de C&T, ajudando a formular políticas públicas na área. “O Conselho do CNPq – que era um órgão da Presidência da República - tinha representantes de todos os ministérios. Contava com coordenações técnicas e também com cerca de 40 comitês assessores, cada um com quatro ou cinco cientistas, para cuidar não apenas da caracterização dos grupos merecedores de bolsas e auxílios em infraestrutura, como para realizar avaliações de como a ciência poderia se integrar aos problemas nacionais e à dinâmica produtiva.”

Diante desta capilaridade dos comitês assessores, observa o professor, havia uma tendência natural de destinação de recursos para suas próprias áreas, mas esta competência era utilizada também para problemas estratégicos. “Quando se consegue formular perguntas amplas, como por exemplo, sobre o que fazer com a Amazônia, pesquisadores da área de física perguntavam-se como resolver problemas de energia na região; paravam de pensar em áreas temáticas e se organizavam para pensar os problemas brasileiros. Era importante que houvesse essa capilaridade, que trazia um conhecimento da dinâmica e de possíveis aplicações da ciência brasileira muito maior do que possuíam os técnicos do CNPq somente, ou do recém-criado Ministério de Ciência e Tecnologia.”

Para explicar o prestígio alcançado pelo CNPq, Rui Albuquerque remonta a 1974, quando o órgão transformou-se em Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNDCT) e passou a secretariar o Sistema Nacional de C&T. Ele foi reorganizado com apoio do Ministério do Planejamento, tendo em Delfim Netto um ministro especialmente preocupado com a área. “O governo militar criou o Conselho e, devido à força da marca, manteve a sigla CNPq, que também se tornou fundação para garantir maior flexibilidade. Foram implantadas secretarias de ciência e tecnologia em cada um dos ministérios e todos os ministros se reuniam no Conselho do CNPq. Elaborou-se uma política de C&T e um sistema diferenciado de bolsas e de auxílios à pesquisa em relação ao da Capes. Tudo isso com grandes recursos da Finep, que era inicialmente um fundo do BNDES e depois transformou-se em organização independente. Houve uma agregação de interesses em torno de uma virada no sistema e em ligar a C&T ao desenvolvimento.”

Rui Albuquerque, professor da Unicamp e assessor da Diretoria Geral do CNPEM
Rui Albuquerque, professor da Unicamp e assessor da Diretoria Geral do CNPEM

Ponto de inflexão

Segundo o professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp, esta competência de conhecer a evolução das áreas de conhecimento, usando-as para elaborar políticas de apoio à transformação da base produtiva e social brasileira, foi perdida a partir de 1990. “Houve um ponto de inflexão, em que se resolveu transformar o CNPq de órgão de fomento à C&T e de reflexão e formulação de diretrizes para política científica, em uma caixa de pagamento de bolsas e auxílios. O ministério passaria a fazer esta reflexão sobre o Brasil, quando sabemos que o cargo de ministro é de caráter político e sujeito a mudanças constantes – perde-se a memória. E o CNPq nunca mais recuperou essa função de perceber como está o ordenamento científico e como aplicá-lo à realidade brasileira.”

Albuquerque lembra que o MCT trocou muito de ministros, cada um deles trazendo seus assessores, aos quais era necessário reensinar como tratar os problemas de ciência e tecnologia. “O ministério já não sabia fazer uso nem do CNPq, seu braço de reflexão sobre ciência, nem da Finep, braço de reflexão sobre inovação. Na gestão de Sérgio Rezende (2005-2010), o MCT começou a chamar para si a questão do fomento, aplicando diretamente o dinheiro em projetos que considerava estratégicos. Quando o ministério puxa para si mais da metade dos recursos de fomento, sem dar atribuições claras para as principais agências e sem utilizá-las como implementadoras da política de C&T, desestrutura-se o sistema. Por exemplo, nos últimos oito anos, tivemos nove ministros, o que é completamente irracional do ponto de vista de formulação de uma política de longo prazo – como deve ser na área de C&T, onde não há respostas rápidas.”

A situação do CNPq não melhorou ao longo da primeira década do ano 2000, em que pese o aumento substancial no fomento à pesquisa, na opinião do docente da Unicamp, que aponta uma utilização ruim e incompleta dos recursos quando se deu a este órgão a responsabilidade de implantar o programa Ciência sem Fronteiras (CsF). “Não foi exatamente o PT, mas o programa desarrumou completamente os comitês assessores e desapareceram os critérios de mérito e de articulação com problemas da realidade brasileira: capacitar pessoas no exterior para que áreas, para resolver que problemas? Nenhuma dessas análises foi feita, o objetivo era apenas pôr gente no exterior. De certa forma, essa estratégia foi uma pá de cal no CNPq como órgão de reflexão sobre política científica.”

No governo atual

Avaliando os primeiros oito meses do novo governo, Rui Albuquerque vê como questão central a falta de clareza sobre o papel do Estado e uma tendência a transformá-lo em Estado mínimo, reduzindo sua função de coordenação e o seu orçamento. “Em 46 anos trabalhando no setor público, nunca vi uma área de planejamento dizer, como agora, que precisamos planejar o papel do Estado com orçamentos decrescentes. O discurso que ouvimos em Brasília é de que o orçamento do ano que vem será 10% menor do que deste ano; mesmo que a economia cresça, a ordem é planejar esse decréscimo nos planos plurianuais. Não há uma perspectiva de organização e de investimento em C&T para coisas novas, em inovação, e sim para decrescer o orçamento público nacional, o que é uma abordagem bastante estranha.”

O docente do IG entende que tal diretriz do governo reduz a sua capacidade de influenciar em ações que coordenem o desenvolvimento do país, transferindo este papel para as empresas privadas. “Na área de ciência e tecnologia, a situação fica péssima: ‘se precisam de recursos novos, não procurem recursos no Estado’. Novas ações passariam a ser viabilizadas pelas empresas, que obviamente não visam o interesse público e sim as diretrizes de sua área de atuação. Quando o Estado não tem clareza para o que serve a C&T, não dá importância à formação de recursos humanos competentes para construir o futuro e recorre ao capital privado para superar esse decréscimo do orçamento, certamente está deixando que grandes corporações definam a sua estratégia, abdicando do exercício de sua soberania.”

“Pensando de bate-pronto”, Rui Albuquerque considera que uma saída possível seria recuperar a capacidade de coordenação do MCT na formulação de políticas e de articulação junto aos demais ministérios, inclusive ao de Economia. “Devemos ver essa supercrise como um momento para repensar o sistema, que nos últimos anos encontra-se totalmente desorganizado. Aproveitar as experiências do passado e construir o futuro, não somente com cientistas, mas também com representantes do setor produtivo e do poder executivo que indiquem como a área de C&T pode contribuir em cada ministério, criando assim estruturas consensuais que apoiem uma pesquisa de caráter supragovernamental, não de um governo, mas voltada para o país.”

Cortes de bolsas

Para o futuro imediato, e diante do profundo corte nas bolsas anunciado pelo governo, o professor da Unicamp acha importante esclarecer a diferença entre o papel do CNPq e o papel da Capes. “Quando se diz que o CNPq dá bolsas de mestrado e de doutorado, e a Capes também; que o CNPq tem bolsas que fortalecem os programas de pós-graduação, e a Capes também, fica evidente para quem não conhece bem o sistema que é possível juntar as duas agências, pois ‘fazem a mesma coisa’. O essencial, nessa crise de bolsas, é mostrar que a Capes é um órgão do MEC, que vai fortalecer o sistema de ensino superior, e que o CNPq é um órgão do MCT, que vai organizar investimentos em torno de programas estratégicos.”

Albuquerque acrescenta que no caso do CNPq, especificamente, deve-se reorganizar os comitês assessores para que as bolsas não sejam apenas para programas de pós-graduação. “Por exemplo: para um programa de desenvolvimento da Amazônia, a área de ciências humanas é essencial, não adianta distribuir bolsas apenas a biólogos, que vão focar o aspecto técnico imediato; para o desenvolvimento de fármacos a partir de plantas, devemos envolver as áreas de biologia, saúde, infraestrutura, transporte, concedendo pacotes de bolsas de mestrado, doutorado, pós-doutorado – soube do presidente do CNPq que o órgão tem hoje 17 tipos de bolsas diferentes. Com isso, a Capes financiaria o sistema de ensino superior e o CNPq se aproximaria do financiamento de soluções de problemas de longo prazo.”

Pela expectativa de Rui Albuquerque, o Sistema Nacional de C&T terá menos recursos do Estado nos próximos anos, o que reforça a necessidade de mudança de modelo. “Devemos aproveitar a experiência de todos esses anos para repensar a função do CNPq e também a forma de o Estado viabilizar recursos para a área. O mote nesses 30 anos tem sido sempre de fortalecer a infraestrutura e expandir a área científica. É um mote que não possui mais sustentação dentro do modelo de financiamento público. Pedir mais recursos para simplesmente não cortar bolsas e auxílios à pesquisa é uma palavra de ordem que terá cada vez menos eco. Precisamos chegar a uma lógica que demonstre que as atividades de ciência e tecnologia causam impactos positivos para o desenvolvimento econômico e social, simultaneamente à ampliação do conhecimento”.

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: imagem panorâmica de área interna do acelerador de partículas Sirius, captada em trecho de curva para a direita. O local é bem iluminado, com várias luzes no teto. À esquerda da imagem, há estruturas tubulares de ferro, unidas como se formassem um extenso trilho circular. Os trilhos estão afixados em altas colunas de concreto, com cerca de quinze metros. O piso do local e bastante regular e liso, e está todo livre. À direita, em formato circular, grade e parede de concreto. Imagem 1 de 1.

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