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JBF e seu ‘phármakon’ ou ‘O livro dos simulacros’ e a finitude da cultura

Roberto Goto escreve sobre "O livro dos simulacros", de Joaquim Brasil Fontes

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Citando Roland Barthes, Joaquim Brasil Fontes transcreve, n’O livro dos simulacros [2] (p. 79):

O homem soube ler antes de saber escrever [...].

Na realidade, as primeiras marcas, as primeiras inscrições que os homens viram foram os rastros dos animais sobre a neve [...].

Adiantando-se à citação, páginas atrás (77-78), um texto literário a ilustra: uma passagem de Zadig ou o Destino, de Voltaire, em que o protagonista descreve as características de um cão de propriedade da rainha da Babilônia; nunca vira o animal, mas deduz tratar-se de uma pequena fêmea de orelhas compridas que mancava de uma pata e havia dado cria recentemente. Na tradução de JBF:

Eis o que sucedeu: passeava eu no pequeno bosque quando vi na areia os traços deixados por um animal de pequeno porte. Marcas leves e longas, impressas entre as marcas das patas: vi imediatamente que se tratava de uma cadelinha cujas pequenas mamas pendiam, indicando ter ela parido há pouco tempo. Outros traços, em sentido diferente, parecendo aflorar à superfície da areia ao lado das patas, indicavam que ela tinha orelhas compridas. E, tendo notado que a areia estava sempre menos marcada num ponto, concluí tratar-se de um animal manco.

Zadig representa e exemplifica, assim, esse leitor que lê e decifra algo como uma pré-escrita, ou uma escrita que, antecedendo a escrita propriamente dita, é, acrescenta Barthes na sequência do trecho citado (p. 79), “inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada”. Ao leitor d’O livro dos simulacros, como é óbvio, ela se apresenta depois, bem depois da invenção da escrita fonética, mais precisamente no (con)texto de uma narrativa que JBF considera uma “engraçada novela filosófica, muito antiquada, é verdade, e trazendo em cada entrelinha as marcas, ora leves, ora acentuadas, das ideologias setecentistas” (p. 78). A esse comentário o leitor poderia acrescer outros, vendo, por exemplo, na escritura de Voltaire algo como um prenúncio ou protótipo da de Conan Doyle: nela já se pode identificar um tipo de lógica que constitui a pedra de toque e a marca registrada das deduções de Sherlock Holmes. Se compulsar a edição dos romances e contos do escritor iluminista traduzidos por Lívio Teixeira, o mesmo leitor deparará com outra marca, extra e intertextual: Zadig, anota o tradutor, é “adaptação de um conto árabe muito conhecido no tempo de Voltaire”, o qual “inspirou-se particularmente na versão deste conto, publicado em Le Voyage et les Aventures des trois princes de Sarendip, adaptada do italiano, em 1719, pelo Cavaleiro de Mailly.” [3]  

Se esses gestos de leitura se dão à margem do livro de JBF, é porque ele, justamente, dá margem a eles, estimulando-os por sua própria natureza, por seu próprio movimento – que calha de ser o de seus simulacros, o de seus refolhos. Trata-se do que a obra expõe como objeto didático, isto é, como algo a se ensinar e a se aprender, algo que ela se propõe a ensinar e algo sobre cujo ensino ela se deixa refletir: as múltiplas formas e possibilidades de escrita, as muitas mediações e opções do que se compreende e se passa como leitura. Mas também se trata, antes, e não menos explicitamente, de uma escrita dada a uma espécie de pré-leitura, ou a uma leitura que não se percebe nem toma consciência de si como tal: os desenhos e vinhetas de JBF, que não são, primariamente, signos a serem colhidos, mas imagens que apresentam o autor antes de o texto escrito por ele fazê-lo; JBF se faz presente nessa escrita (que, segundo sua classificação, poderia ser pictográfica, mas que não chega a ser ideogrâmica) como um esboço e um fantasma, um alfa e um ômega do processo de significação, como a cobra mordendo a própria cauda – como uma marca d’água acenando aquém e abaixo do texto, à espera de decifrações e deduções ao estilo de Zadig.   

Em comum com esses desenhos e vinhetas, as imagens que o autor reproduz, expõe e comenta, erudita e didaticamente, têm o cunho de uma escritura imagética e de uma leitura de sinais. O exemplo mais revelador (num sentido apocalíptico, inclusive) da galeria reunida no livro é a gravura A Estrige, de Charles Méryon. Citando a si mesmo (o texto “Acherontia Atropos”), JBF descreve-a nos seguintes termos:

Do alto de Notre-Dame, uma estrige ou gárgula, um vampiro, queixo apoiado na mão, lança um olhar demorado sobre Paris. Esta cidade é um texto, pensa o demônio, um livro feito de confusas vozes de pedra e do voo aflito das águias, um almanaque de palácios, monumentos e casebres. Um livro à espera de um cataclisma. “Ou de vários”, pondera um escritor que, do alto das torres, também está atento à cidade.

Walter Benjamin e o demônio leem, na superfície da pedra obstinada, o futuro sob a forma de passado absoluto. Aguardam, imóveis e pacientes, a inevitável catástrofe que varrerá tudo – eles próprios – do ser em que os seres se demoram por um instante.

Ruínas.

Queixo apoiado nas mãos, o escritor e o diabo se inclinam sobre nada, na atitude do anjo de Dürer.

Numa mesma imagem, o leitor d’O livro dos simulacros depara com um exemplar tanto daquela pré-escrita, feita de marcas e sinais, quanto de sua leitura, que a revela como uma espécie de pós-escrita, uma escrita final, de fim dos tempos: a cidade (e não só Paris, mas qualquer uma) é um texto em que se lê sua ruína, sua destruição, sua inevitável desaparição. Uma leitura melancólica, portanto, para além – ou aquém – de apocalíptica: quem a empreende é um misto de escritor, demônio e anjo, ou – digamos ao mesmo tempo analítica e sinteticamente – um escritor possuído pelo demônio da melancolia, a qual, lembra ele, Dürer figura alegoricamente como um anjo. Difícil, talvez impossível, é determinar se tal melancolia é característica congênita, traço da natureza ou do temperamento desse leitor, ou se ele a adquire no gesto mesmo da leitura, como resultado – ou por contágio – da constatação da finitude e da transitoriedade das coisas mesmas produzidas e construídas para perdurarem, na ilusão de durarem “para sempre”. Ao tomar essa constatação como seu parti pris, esse leitor lê a evidência que atravessa e supera instantaneamente a porção de tempo que separa o ser do nada: um futuro que se dá imediatamente, no presente, deixando entrever no que ainda é (no que teima em ser) o que deixará de existir.

A cidade faz parte, constitutivamente, do “ser em que os seres se demoram por um instante”: a cultura de modo geral, em seu significado mais amplo – tudo quanto os humanos produzem e constroem. O escritor, sem dúvida, é um dos seres que buscam demorar-se por algum tempo nesse ser: a escrita, seu ofício, participa do esforço humano de preservar-se, de perdurar culturalmente – como as construções de pedra, que constituem, elas próprias, uma escrita, a lembrar o que permanece e sobra. Monumentos assemelham-se aos sinais inscritos em pedras descobertas em escavações arqueológicas, que atestam a passagem, pelo tempo, das civilizações em que cumpriam justamente a função de escrita; na forma de seus restos e rastros, continuam a cumpri-la, agora sinalizando o seu desaparecimento. O monumento, escrita mais sintética e econômica, como um oximoro, atesta esse desaparecimento desde o presente, anunciando-o no esplendor mesmo com que celebra a glória da civilização em que se inscreve: é testemunho de sua grandeza, memória de seu brilho, manifestação de sua vontade de perdurar e, ao mesmo tempo, arauto da ruína – a da civilização que representa e a sua própria. Assim está escrito, desde já, na pedra que os humanos acumulam como signo de sua esperança no permanente e no imortal. O monumento é seu próprio fantasma – um simulacro.

A palavra “simulacro”, a princípio, corresponde e atende ao sentido do que é falso, da aparência que toma o lugar da essência, fazendo-se passar por ela. A esse significado o leitor é apresentado logo no primeiro capítulo do livro (p. 12-13), que oferece uma límpida tradução do trecho do Fedro em que Sócrates, como personagem de Platão, relata o mito da invenção da escrita:

[...] quando chegou o momento de encarar os caracteres da escrita, disse Thot: “Eis aqui, ó rei, um conhecimento que tornará os egípcios mais instruídos e mais capazes de recordar; memória e instrução encontraram seu remédio (phármakon)!” E o rei: “Incomparável mestre das artes, Thot, um é o homem capaz de inventar uma arte; outro, aquele que pode apreciar a utilidade dessas artes para as criaturas que dela farão uso. Na qualidade de Pai dos Caracteres da Escrita, tu ofereces aos homens, tentando ser benévolo, um veneno (phármakon). Pois o resultado desse conhecimento será, para quem o tiver adquirido, o de tornar a alma desmemoriada, pois a memória deixará de ser exercida: confiando no escrito, os homens vão rememorar as coisas ‘por fora’, graças às marcas exteriores, e não ‘por dentro’, graças a eles mesmos. Não é pois para a memória (mnémes), mas para a rememoração (hypomnésis) que encontrastes o phármakon (remédio/veneno). Trazes, pois, aos teus discípulos a aparência de um saber e não a verdade (alétheia: o des-velamento); com efeito, quando estiverem plenos, com tua ajuda, de conhecimentos, parecerão aptos a emitir julgamentos sobre mil assuntos; e, na maior parte do tempo, serão incapazes de julgar; e serão insuportáveis, pois serão simulações de sábios em lugar de sábios!

A escrita, em sua ambígua e ambivalente condição de phármakon, comporta vários simulacros, além do que ela própria representa na medida em que não constitui uma verdadeira memória: dá lugar a um simulacro de sabedoria que, por sua vez, conduz a um simulacro da verdade. Em síntese, o simulacro é basicamente um não ser que usurpa o lugar do ser: se o seu ser é falso, é porque ele não é o que aparenta ser e, em contrapartida, porque o ser que ele aparenta é o que ele não é. Quando, por associação ou contaminação de ideias, se toma a escrita como monumento, esse significado pode ser alargado da essência para a existência: nesse caso, o simulacro não é apenas o não ser que aparenta ser, mas também o que, ao mesmo tempo, deixa à mostra o não ser – ele se manifesta, fenomenicamente, como o ser que já contém o seu não ser, deixando evidente desde já que é o que deixará de ser.

A evidência do não ser no ser transporta a escrita para além da ambiguidade e da ambivalência do phármakon: enquanto simulacro de memória, a escrita é mais que um remédio venenoso, uma vez que, apresentando-se como suporte para a memória, (a)presta-se a tomar seu lugar quando, na verdade, é ela que depende da memória, não o contrário. A escrita só pode dar testemunho de uma cultura, após sua destruição e seu desaparecimento, se ainda subsistir a memória que possibilita decifrar os sinais (na qualidade, justamente, de restos e marcas da cultura desaparecida) – a mesma que resulta da memorização dos caracteres de escrita, da decoração [4] de seus significados. Uma exemplificação literária – e bastante didática – dessa relação de dependência encontra-se no capítulo de Cem anos de solidão [5] que narra as consequências da epidemia de insônia que acomete a população de Macondo:

Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. [...] Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e depois o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma mostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se de ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.

Sinais gráficos que não representam mais nada – porque não há mais memória do que significam – são como corpos descarnados apodrecendo ao léu, cadáveres da linguagem; perdida a memória, a escrita será o fantasma de si mesma. Como simulacro de memória, ou melhor, com o seu não ser, a escrita participa do não ser da cultura: desaparecendo esta, a escrita, em última instância, não lhe sobrevive para dar testemunho de sua passagem pelo tempo. E se o melancólico é o que vê em cada corpo a carniça em que se tornará e que, do ponto de vista do tempo (Cronos/Saturno) que tudo devora, já é, o escritor melancólico é o que pratica, honra e cultua a escrita sabendo que é inane qualquer tentativa de tomá-la como meio ou suporte de perdurar, que toda ideia de permanência não passa de ilusão: os seres não conseguem durar mais que um instante no ser que, carregando em si mesmo o não ser, a ele dará lugar daqui a mais um instante (ainda que ele dure alguns séculos ou milênios).

No escritor melancólico esse saber participa ao mesmo tempo do coração e do espírito, é tanto um gosto quanto uma consciência. Ele sabe a cultura como um cadáver adiado porque experimenta e conhece em si próprio sua finitude. Não crê nem investe na salvação pela arte. A obra de arte, inclusive a literária, não justifica nada, nem a si mesma: o artista, para ele – e nele –, é o leitor do nada a que toda a cultura dará lugar, nada que já a habita e a espreita. Se escrever e publicar um livro é apostar numa vida póstuma, além-túmulo, o escritor melancólico sabe que ela é bastante relativa – durará algum tempo, mas não indefinidamente, nunca para sempre. Na superfície e na própria carne da cultura, as palavras deslizam, sempre sob o risco de despencarem no nada – o nada, inclusive, de todas as leituras que, longe de tomarem a obra como um absoluto, a atiram na vala comum das mercadorias culturais, mais uma entre milhões de outras, tão contingente quanto todas as outras.  

Sem dúvida, ele escreve sobre a cultura, o que significa: a cultura é seu tema e seu objeto, ao mesmo tempo que a superfície em que deposita, inscreve, incrusta suas palavras, seus desenhos e imagens. Essa interpretação segue a pista que ele deixa a respeito de Montaigne, ao tomar como epigrama o que o ensaísta francês por excelência manda gravar nas paredes da torre em que se enfurnou. Epigrama: “‘palavra escrita sobre’ – sobre a pedra, a memória, a morte” (p. 38). Mas gravar sobre – e na – cultura não garante nenhuma vitória sobre a morte, a perdição, o nada, pois a cultura permanece só até onde alcançam a memória, o engenho humano, seu senso de preservação e conservação. Para além desse ponto, e rente às mãos humanas, no interior mesmo de seus intentos (tanto os declarados quanto os inconfessáveis), há o impulso à (auto)destruição, ao qual a cultura está longe de ser imune, sujeita então, reitere-se, à impermanência, ao perecimento. Vita brevis, ars longa – longa, mas não eterna. O epigrama não deixa, também ele, de ser um simulacro.

Mas em tudo isso não se pode – não se deve mesmo – notar algo como uma terapia cultural, da e pela cultura? Não é o caso de perceber algo como uma ironia, a separar a melancolia da escritura, o melancólico do escritor? Não caberia, no mínimo, distinguir entre o artista e o erudito? “Observem bem”, alerta o parágrafo final do texto que ocupa as orelhas do livro, assinado por uma certa Jane A. Ellison, de uma incerta Riverkootenay University, “as cores e o grilo no parapeito da gravura de Méryon são intrusões do autor”. Com efeito: ao lado da estrige/gárgula JBF desenha um grilo que, inclinado sobre a paisagem parisiense, deixa a impressão de a estar lendo também – não, quem sabe, no mesmo sentido (grilos, pelo menos, não parecem ser versados em apocalipses). Em todo o caso, trata-se de um ruído – duplamente referido, logo redundante – na imagem. O ruído ironiza a cena, e a ironia (a)tinge as três perspectivas ou camadas de leitura: a da cidade pela estrige; a da gravura pelo erudito; a do texto do erudito pelo leitor do livro. Talvez, então, o nada que o melancólico deveras sente – e do qual se ressente – seja e, ironicamente, não seja o mesmo que o (a)notado e comentado pelo erudito: como assunto e matéria seria o mesmo, mas, quanto à forma de que se reveste, não. Seriam instrutivas, a esta altura, umas palavras que Octavio Paz escreveu em seu ensaio sobre Jorge Luís Borges, O arqueiro, a flecha e o alvo [6]:   

Borges nos confió su decisión de “irse a morir en otra parte, tal vez al Japón”. No era budista pero la idea de la nada, tal como aparece en la literatura de esa religión, lo seducía. He dicho idea porque la nada no puede ser sino una sensación o una idea. Si es una sensación, carece de toda virtud curativa y apaciguadora. En cambio, la nada como idea nos calma y nos da, simultáneamente, fortaleza y serenidad.

Que se observe, assim, a apropriada medida, a justa distribuição: ao melancólico, o nada como sensação; ao erudito, o nada como ideia. Certamente, pensar o nada não é o mesmo que senti-lo. Pensá-lo supõe e implica um afastamento, indiciado pela preposição: medita-se e reflete-se sobre o nada (o que admite variações: em cima dele, como que o cavalgando; acima dele, como que o sobrevoando). Ao mesmo tempo, se a ideia de nada comporta uma virtude curativa e apaziguadora, tal virtude se deve antes ao próprio pensar, em seu outro significado: pensa-se o nada como se pensa uma ferida. Sinteticamente, fundindo as duas maneiras (o sentir e o pensar), o nada não deixaria de ser uma espécie de phármakon – sintético, ele próprio, com um certo sentido introspectivo, por assim dizer, na medida em que voltado para si mesmo. Nesse caso, o nada seria o veneno e seu próprio remédio – ou seja, o antídoto. Não seria uma questão de dose, mas de modo: veneno é o nada como sensação; remédio e antídoto, o nada como ideia.

O tratamento com esse phármakon funcionaria no contexto de uma terapia cultural, que sonda na cultura não só um texto a ser lido ou uma areia para dispor e desenhar umas palavras, mas sobretudo uma fonte de mediações: a que fornece referências, alimentando um acervo de caminhos e recursos para pensar o mal do melancólico, tão agudo quanto difuso e prolífico. Referências culturais aproximam e afastam: se possibilitam ao erudito deter-se e debruçar-se sobre o mal, o fazem ao mesmo tempo em que lhe dão a chance de distanciar-se dele, principalmente quando se revestem, elas próprias, de formas eruditas. No caso de JBF, a ironia expande o distanciamento e abre espaço para um jogo que embaralha meios e fins: a figura do grilo é de fato uma intrusão – não somente, contudo, no sentido de intrometer um comentário irônico na leitura da gravura de Méryon, mas também de o próprio autor imiscuir-se na cena, e oferecer-se, assim, como objeto de leitura e comentário.

Esse erudito não joga apenas na cultura, mas também com ela, tomando-a, portanto, tanto como tabuleiro quanto como parceira. Não se limita a expor e a comentar as referências culturais, eruditamente, mas usa-as para falar de si mesmo, indiretamente: revela-se – e confessa – por meio dos outros (os autores e obras que comenta, pelos quais se interessa), ao mesmo tempo em que se faz outro(s), disfarçando-se e ocultando-se nele(s), assumindo-o(s) igualmente (e de outro modo), também, como objeto(s) de suas observações. Ele se dá a conhecer por figuras interpostas, insinua-se por entre elas, traduzindo-as, travestindo-se nelas, usando-as como biombos e máscaras de sua persona, de sua própria máscara. Essas figuras podem ser autores e obras tanto quanto propriamente figuras, isto é, imagens, metáforas e alegorias da tradição cultural.

No final das contas, é dele que trata o livro, ou talvez o livro seja ele mesmo: avançando por entre os simulacros, que pendem como lianas pelo caminho da leitura, o que se encontra é seu autorretrato. Com um simulacro a mais: as fictícias infância e adolescência passadas em Esmirna, coroadas aos dezoito anos com uma viagem de navio dado a sonhar, não menos que a navegar. Grileiro do território de leitura que é o livro, parece dizer: “leitor, O livro dos simulacros sou eu próprio; decifra-me ou te grilo.” Não sem ambiguidade nem ironia, é claro: o grilo grila não só no sentido de transtornar, atrapalhar, incomodar, chatear, mas também no de encucar, baralhar, endoidar, baratinar. (Há todo um lado, ou melhor, todo um círculo de JBF que abarca e mistura leituras lúdicas – memoráveis, nostálgicas? – (d)e ficções populares, da HQ à literatura gótica, como as elencadas e enleadas na e pela vinheta da p. 54: Beau Geste, O Prisioneiro de Zenda, Vinte mil léguas submarinas, Flash Gordon no planeta Mongo, Os últimos dias de Pompeia, Melmoth, o homem errante, Flash Gordon e o deserto de Mongo, Os mistérios de Paris, Pimpinela Escarlate, O Monge.)     

O grilo é a figura sintética que (cor)responde ao phármakon, na qualidade ou função de, concomitantemente, seu administrador, seu vetor, seu experimentador – ou degustador. Arma as jogadas com a cultura e delas participa, como peão e curinga, ao lado das figuras que atuam como leitores críticos, não mais paródicos que ideais. Nele e por ele, tanto o erudito quanto o escritor encontram o meio irônico e a expressão melancólica de uma inane e autodesiludida esperança: a de que, nalgum dia – vislumbrado na penumbra do sonho e na neblina do tempo –, alguém captará o espírito de suas obras e as compreenderá como as compreende Jane A. Ellison, a acadêmica que, simulacro de leitora crítica (e, nessa condição, autora de um simulacro de leitura), assina as orelhas do livro e adverte sobre a presença do grilo intruso.   

JBF é a síntese e a senha da ligação entre Joaquim Brasil Fontes e esse grilo. Não é alter ego, nem simulacro. É ele mesmo: escritor, erudito, a um passo da depressão ou já com o diabo da melancolia no corpo, a atrabílis que o induz e o reduz à leitura e à visão do mundo como demoníaco, isto é, como um texto escrito pelo demônio ou, no mínimo, socialmente conformado numa sintaxe diabólica. É o que é e o que parece ser: o andar e o variar de uma erudição ciosa de si mesma, mas não presunçosa nem pernóstica; ao contrário, uma vez propondo-se a servir a um projeto de ensino, singela, cristalina e laconicamente didática. É o mover das peças no jogo da cultura, na partida de xadrez com o nada. É a assinatura do autor: o movimento da pena, o gesto de escrita que esculpe uma inscrição lapidar – não na pedra, mas no ar, na atmosfera cultural. Um sopro, portanto: que, sendo o da criação, de infusão de existência, já é o do último suspiro, antecipação e simulação do alento de despedida. Um aceno lembrado – desvelado, desesquecido – do dia em que não haverá escrita, porque não haverá memória.

JBF é o emblema da insuportável leveza de um ser: o da cultura, em que os seres se demoram por um instante (não sem um custoso sentimento de irreal) e em que mora para sempre o não ser, na forma de um deixar de ser.  

Roberto Goto é professor da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp

 


 

[1] In: CURVELLO, Aricy. Mais que os nomes do nada. São Paulo: Editora do Escritor, 1996, p. 17.

[2] Cf. FONTES, Joaquim Brasil. O livro dos simulacros. Edição emendada, reformada e corrigida, com vinhetas, desenhos e letras capitulares de JBF. São Paulo: Iluminuras, 2018.

[3] Cf. Voltaire. Zadig ou o Destino. In: _____. Romances e contos v. I. Trad. Lívio Teixeira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1959, p. 27, nota 18.

[4] Aquela que se costuma chamar, depreciativamente, de “decoreba”.

[5] Cf. Márquez, Gabriel García. Cem anos de solidão. Trad. Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 50-51. Um dos motivos desse romance – ou um dos fios de seu enredo – é a luta que a cultura, em seu esforço de persistir, trava com a natureza e o esquecimento, disputando com eles o espaço da própria casa, da intimidade familiar.

[6] Cf. Paz, Octavio. El arquero, la flecha y el blanco. Artigo publicado originalmente na revista mexicana Vuelta, v. 10, n. 117, p. 27, em 31 de agosto de 1986.

 

 

Imagem de capa JU-online
Imagem: Reprodução

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