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Reforma tornará a Previdência ainda mais excludente, apontam economistas

Para José Celso Cardoso Júnior e Eduardo Fagnani, mudanças pretendidas farão com que um contingente maior de trabalhadores não consiga se aposentar

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A proposta de Reforma da Previdência pretendida pela equipe econômica do presidente eleito Jair Bolsonaro tornará o sistema ainda mais excludente, o que significa que um contingente maior de trabalhadores não conseguirá cumprir os requisitos mínimos para requerer a aposentadoria. Dito de outra forma, caso seja aprovada nos termos anunciados, a medida destruirá um dos mais importantes direitos sociais dos brasileiros. A opinião é compartilhada pelos economistas José Celso Cardoso Júnior, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, e Eduardo Fagnani, docente do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Estão tentando eliminar os direitos conferidos pela Constituição de 1988. A Carta é um marco do processo civilizatório brasileiro. Foi a primeira vez em 500 anos que tivemos ao mesmo tempo direitos sociais, políticos e civis. Ocorre que o documento é um ponto fora da curva do capitalismo, e o capitalismo brasileiro não tolera isso”, aponta Fagnani.

O objetivo do governo eleito, explica Cardoso Júnior, é aprofundar a reforma iniciada pelo presidente Michel Temer, no sentido de tornar mais difícil a obtenção das condições mínimas para a obtenção da aposentadoria. Segundo o economista do Ipea, na cabeça dos ideólogos dessa proposta, a Previdência é um problema de natureza exclusivamente fiscal. “A questão social sequer é cogitada. Eles não se importam com o fato de a maior parte da população brasileira em idade ativa não conseguir reunir condições, ao longo do seu ciclo de vida laboral, para pleitear a aposentadoria”, afirma.

Uma das mudanças desejadas pela equipe de Temer, e que eventualmente, pode ser adotada por Bolsonaro, é ampliar de 15 para 25 o tempo mínimo de contribuição para que o trabalhador possa se aposentar. Na opinião de Cardoso Júnior, trata-se de um prazo muito longo no contexto do mercado de trabalho do país. “A maior parte das pessoas em idade ativa no Brasil passa a vida oscilando entre empregos. Poucas conseguem ter uma trajetória linear. Algumas interrompem esse percurso para estudar, por desemprego, por mudança de país. Além disso, o nosso mercado de trabalho é precário e muito heterogêneo. São poucas as oportunidades de emprego com carteira assinada. Isso faz com que seja muito difícil para um trabalhador normal acumular, ao longo de 35 anos de trabalho, 25 anos de contribuição”, pondera.

Além de reafirmar o caráter excludente da proposta de reforma desejada pelo futuro governo, Fagnani observa que a situação será ainda mais agravada por causa da Reforma Trabalhista aprovada em 2017. “A Reforma Trabalhista ampliou a precarização e tornou mais difícil a obtenção de emprego com carteira assinada ou por períodos prolongados. Ora, essas formas precarizadas de trabalho, nas quais predominam as atividades informais – agora tidas como ‘formais’ –, trabalhos de curta duração e por hora não geram recolhimento de tributos para a Previdência. Ou seja, ao longo do tempo a contribuição para o sistema será tão reduzida que vai quebrá-lo”, adverte o docente do IE-Unicamp.

Tanto Fagnani quanto Cardoso Júnior são contundentes ao assegurar que o alegado déficit da Previdência é na realidade um mito. “O que o governo, a grande imprensa e os economistas liberais divulgam como déficit nada mais é que o fluxo de caixa do sistema, um critério meramente contábil. Trata-se do volume de entrada de contribuições menos os pagamentos de benefícios. Essa conta realmente é negativa no contexto do Regime Geral da Previdência. Entretanto, é preciso explicar para a sociedade que esse critério é inconstitucional. Os constituintes fizeram constar na Carta de 1988 recursos adicionais para a Previdência, justamente para evitar que o sistema entrasse em colapso. Assim, além das contribuições de empregados e empregadores, os deputados também definiram outras fontes de financiamento, como tributos sobre o faturamento e o lucro das empresas. Ocorre que a Constituição jamais foi respeitada nesse sentido. Se a legislação estivesse sendo cumprida, as contas da Previdência seriam superavitárias desde 1988”, sentencia o economista do Ipea.

Na mesma linha de raciocínio, Fagnani entende igualmente que o declarado déficit previdenciário é na verdade um desprezo à Constituição. “O argumento do déficit é uma mentira que vem sendo contada dede 1989. E, como sabemos, uma mentira repetida milhares de vezes passa a ser encarada como verdade. A Constituição de 1988 buscou inspiração nos modelos da social-democracia europeia, que estabelece que a seguridade social deve ser financiada por três fontes: empregados, empregadores e governo, através de impostos, como o Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social]. Isso está claríssimo nos artigos 194 e 195. Acontece que o governo nunca cumpriu a sua parte. O alegado déficit é isso: um desprezo à Constituição da República, praticada por todos os governos desde 1989. Simples assim”, argumenta o professor.


“Austericídio”

Outro aspecto que estrangula as contas da Previdência, assinalam os economistas, é a dobradinha formada pela anistia de dívidas e a falta de fiscalização para combater a sonegação. Juntos, esses dois ralos engolem bilhões de reais por ano, cifra muito maior que a economia que seria obtida com a reforma. Os ideólogos do “austericídio”, segundo Cardoso Júnior, enxergam somente o que querem. “Esse pessoal não olha as finanças públicas como um todo. Colocam a culpa na Previdência, mas não observam os juros. Nos últimos anos, o governo promoveu uma série de desonerações fiscais, favorecendo devedores inclusive do INSS [Instituto Nacional de Seguridade Social]. Essas medidas favorecem claramente os segmentos empresariais, particularmente os financeiros. Existe um rombo estrutural nas finanças públicas brasileiras que não tem a ver com a questão social, com a questão da Previdência. Tem a ver com a decisão do governo de não cobrar de quem deve e pode pagar”, pormenoriza.

Fagnani apresenta números que reforçam a análise de que o governo abre mão do seu potencial de arrecadação em favor de determinados segmentos. De acordo com ele, o governo Temer vem afirmando que a Reforma da Previdência trará uma economia de R$ 500 bilhões em dez anos, ou seja, R$ 50 bilhões por ano. Atualmente, porém, o governo federal abre mão de R$ 350 bilhões por ano em isenções fiscais. Além disso, estimativas indicam que a sonegação de impostos no Brasil é da ordem de R$ 500 bilhões por ano. “Não é curioso que os defensores da reforma digam que o país vai quebrar se não economizarmos R$ 50 bilhões ao ano com Previdência, sendo que o governo poderia incrementar a arrecadação em R$ 850 bilhões, mas não o faz? Isso sem falar nos quase R$ 500 bilhões de dívidas que empresas têm exclusivamente com o INSS, mas não são cobradas. É um escândalo”, define o docente do IE-Unicamp.


Servidores

Um nó a ser desatado em relação a questão previdenciária, reconhecem os economistas, diz respeito aos servidores públicos, que pertencem a um regime específico e não ao Regime Geral. “Mas é preciso olhar para esse segmento com atenção porque há diferenças dentro dele. Curiosamente, os servidores civis, que são o maior alvo da proposta de reforma, estão com a situação equacionada no médio e longo prazos. Durante os governos Lula e Dilma foram feitas mudanças para resolver os problemas estruturais relativos a esse grupo, como estabelecer um teto de aposentadoria - e não o último salário - para os ingressantes no sistema. Mas há pontos a serem trabalhados em relação aos militares e a segmentos do Legislativo e do Judiciário”, destaca Cardoso Júnior, do Ipea.

No caso dos militares, prossegue o economista, o regime conta com um grande contingente de aposentados e um pequeno número de contribuintes. Isso acontece porque esses servidores se aposentam muito cedo, geralmente por volta dos 50 anos. “Os militares começam a contar o tempo de contribuição precocemente, lá pelos 15 anos, quando ingressam nas academias militares. Além disso, os homens podem requerer a aposentadoria depois de 30 anos de serviço e as mulheres, 25. O que ocorre, em muitos casos, é que as pessoas passam mais tempo como beneficiários-aposentados que como ativos-contribuintes. Além disso, esse segmento está enquadrado na regra antiga, da integralidade. Ou seja, não há teto. Para completar, por força da legislação, em caso de morte do beneficiário a aposentadoria é transferida ao cônjuge ou às filhas na forma de pensão”.

Foto: Perri
Eduardo Fagnani, do IE-Unicamp: “Estão tentando eliminar os direitos conferidos pela Constituição de 1988. A Carta é um marco do processo civilizatório brasileiro. Foi a primeira vez em 500 anos que tivemos ao mesmo tempo direitos sociais, políticos e civis”

Também no Legislativo e no Judiciário ocorrem “distorções”, sendo que neste último a situação é mais complicada, conforme o economista do Ipea. “Em termos absolutos, esse segmento é menor que os demais, mas em termos relativos é o que constitui o caso mais escandaloso. Não é incomum encontrarmos remunerações acima do teto constitucional entre magistrados, graças a gratificações que são incorporadas e penduricalhos como os auxílios moradia e paletó. Tudo isso resulta em aposentadorias muito altas, embora a base de contribuição seja pequena e obviamente insuficiente para cobrir as despesas”, analisa Cardoso Júnior.

Fagnani concorda que há um problema a ser resolvido em relação aos servidores públicos. Pelas contas dele, o Regime Geral soma cerca de 30 milhões de beneficiários na área urbana e rural e outros 5 milhões na assistência social (Benefício de Prestação Continuada). “100% dos benefícios rurais correspondem a um salário mínimo e 80% dos benefícios urbanos também correspondem a essa remuneração. No geral, o rendimento médio recebido pelos beneficiários é de R$ 1,4 mil. O curioso é que o governo fala em fazer reforma para acabar com privilégios. Qual o privilégio de alguém que recebe esse valor de aposentadoria? Definitivamente, o problema não está nesse segmento”, afirma o docente do IE-Unicamp.

Fagnani adverte igualmente que o nó não engloba todo o funcionalismo público. Ele esclarece melhor esse ponto: “A Previdência do setor público foi regulamentada em 2012 com a criação da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp). Pelas novas normas, o trabalhador que ingressa no serviço público depois da regulamentação terá um teto de aposentadoria no valor de R$ 5 mil. Se ele quiser receber mais, terá que contribuir para isso. Entretanto, quem ingressou antes de 2012 tem direitos adquiridos e, em alguns casos, pode se aposentar com rendimento integral. Então, não faz sentido fazer reforma para tratar de questões referentes ao futuro. Estas já estão equacionadas. Nosso problema reside nas questões do passado”, reforça o professor.


Diálogo possível

Questionados sobre o desconhecimento desses aspectos por parte de uma parcela considerável da sociedade, Fagnani e Cardoso Júnior atribuem o fato ao desprezo do contraditório pela “grande imprensa”. “Nós temos produzido estudos e textos para discussão sobre esses temas, que são desconsiderados ou desqualificados por parte da mídia, que só se interessa pelo argumento favorável à reforma. Isso pode ser explicado porque as grandes empresas de comunicação atuam também em outros setores da economia, como o imobiliário e do agronegócio. Então, há muitos interesses envolvidos, o que coloca a imparcialidade em terceiro plano”, critica o docente do IE-Unicamp.

Cardoso Júnior também se queixa do bloqueio ideológico da imprensa. De acordo com ele, recentemente foram produzidos três documentos com críticas à proposta de Reforma da Previdência [Veja os links], mas que não tiveram ressonância junto à sociedade. “O papel de levar essa discussão adiante e furar o bloqueio imposto pela mídia vai caber ao que sobrou da oposição. Precisamos martelar essas questões para tentar esclarecer o maior número de pessoas possível”. Fagnani completa: “Precisamos resistir, pois há uma tentativa de destruir os direitos sociais assegurados na Constituição. A Reforma da Previdência deve ser analisada dentro desse contexto. As elites brasileiras jamais aceitaram que o movimento social capturasse 8 % do PIB. Elas querem esse dinheiro de volta a qualquer custo. Infelizmente, estamos assistindo ao fim de um brevíssimo ciclo de cidadania social no Brasil”, avalia o docente do IE-Unicamp.


Artigos sobre a Reforma da Previdência

1. 30 anos da Constituição Federal Brasileira: Notas para um obituário precoce (1988/2018).

2. A Reforma Tributária Necessária.

3. Previdência: reformar para excluir?

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Imagem close up e bastante inclinada para a esquerda, carteira de trabalho tradicional, com capa azul e cerca de dez centímetros por quinze, sendo que uma pessoas a segura com a ponta dos dedos da mão esquerda. À esquerda há um óculos com as pernas abertas, junto à carteira, na parte superior, e ao fundo um tipo de painel de madeira em tom amarelo. À frente de toda a imagem, efeito gráfico que simula um vidro todo estilhaçado, com o ponto de impacto da quebra sobre a carteira. Imagem 1 de 1.

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