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O que a lama trouxe, o que a lama levou

Livro reúne diferentes olhares sobre as dimensões políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais do desastre de Mariana

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Quando a barragem de Fundão se rompeu sobre Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG), não foi somente a lama de rejeitos de mineração que se esparramou. Esparramaram-se também as relações, memórias e vidas antes presentes no caminho da devastação. A tragédia de 5 de novembro de 2015, com 19 mortes e danos ambientais imensuráveis, foi o marco principal de um episódio iniciado anos antes e não encerrado até hoje. Das rachaduras arrebentadas de Fundão, pertencente à mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela multinacional BHP Billiton, brotaram inúmeros questionamentos sobre os setores público e privado, as leis, as mídias e as contradições humanas.

No início de 2016, o desastre se tornou tema de discussão na disciplina Linguagem: Jornalismo, Ciência e Tecnologia, ministrada pela professora e jornalista Graça Caldas no mestrado em Divulgação Científica e Cultural, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Surgiu a ideia de construir coletivamente – eram 35 alunos – um dossiê com diferentes perspectivas sobre a tragédia que impactou a bacia do rio Doce e chegou ao oceano Atlântico. Os frutos do trabalho estão no livro digital (ou impresso sob demanda) Vozes e silenciamentos em Mariana: crime ou desastre ambiental?, amplamente ilustrado, com edição final de Graça Caldas e Adriana Menezes, produção gráfica de Fabiana Grassano e edição de fotografia de Camila Brunelli.

Cada com sua formação, os alunos produziram entrevistas, reportagens, análises, narrativas literárias e fotografias que resgatam o desastre. São sete capítulos: Meio Ambiente, Política e Economia: uma difícil equação; A vida antes da tragédia; Da água para a lama; Viagem ao Epicentro; O Desastre Ambiental; Vozes e Visibilidade; e Memória e Esquecimento. “Foi um desafio, mas o resultado conseguiu ir além daquilo que vinha sendo publicado sobre o tema por reunir vários olhares num só lugar. Isso permitiu aos alunos exercitar um trabalho de pesquisa e cobertura”, conta Graça. Ela destaca que o livro é uma obra aberta, já que muitos desdobramentos da catástrofe ainda não foram resolvidos ou sequer mensurados.


Quadro da catástrofe

Os primeiros capítulos exploram o contexto e as possíveis causas que culminaram no rompimento da barragem, levando em conta a política ambiental brasileira, a crise na mineração, o vínculo da Samarco com o poder público e as particularidades de Mariana e seus subdistritos mais afetados pelo desastre, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Uma das análises mostra a precariedade dos cursos de engenharia de minas do país, que, além de má avaliação em exames nacionais, pouco tratam de responsabilidade ambiental e segurança do trabalho.

São fatores que, direta ou indiretamente, ajudam a entender como a barragem chegou a ponto de ruptura sem que nada fosse feito ou anunciado. Conforme narra o livro, os problemas começaram em 2007, quando os órgãos públicos responsáveis aceitaram o projeto de construção de Fundão mesmo sendo carente em detalhes técnicos. Uma mudança arriscada realizada no eixo da estrutura em 2012 teria sido a principal causa das fissuras. Alertada sobre os riscos em 2014, a Samarco não colocou em prática ações efetivas de segurança e monitoramento.

As primeiras 26 horas do desastre são detalhadas por Érica Mariosa no terceiro capítulo. “Fazer a linha do tempo foi dolorido. Uma coisa é saber agora da história por completo, outra coisa é vivenciar minuto a minuto, saber das pessoas que não receberam as informações ou que receberam muito depois”, relata. O olhar sobre os primeiros momentos também rendeu a análise sobre o trabalho da imprensa naquele cenário, de Raquel Almeida, e criações em poesia e prosa, como a narrativa literária Vida e morte do seu Totó de Bento, de Rosana Gimael, baseada na história de um morador de Bento Rodrigues. 

Rastros imensuráveis

A equipe de Adriana Menezes, Bruno Andrade, Renan Possari e Tássia Biazon viajou a Mariana em busca de nuances sequer imaginadas de longe. Eles exploraram os efeitos do desastre no subdistrito de Paracatu de Baixo, o segundo mais impactado, e na área urbana de Mariana, que foi afetada não pela lama, mas por suas consequências econômicas e sociais. Uma das surpresas foi perceber que a população desabrigada era recebida com hostilidade por parte dos moradores de Mariana, que culpavam as vítimas pela crise econômica irrompida após a paralisação da Samarco, principal fonte de riqueza do município.

Para Adriana, o contato com os habitantes mostrou que o medo do desemprego pode superar a vontade de justiça, contradição presente em outras regiões do País. “O problema de Mariana não é um problema só de Mariana, mas do Brasil. Se repete em quase todas as formas de exploração de nossos recursos naturais”, afirma. Já Tássia, única bióloga entre os 35 alunos, destaca os imensuráveis impactos ambientais causados. “Foram centenas de quilômetros de destruição, sendo que algumas das regiões por onde a lama passou não tinham estudos aprofundados sobre seus ecossistemas para mensurar o que e o quanto se perdeu”, comenta. Conversando com moradores, ela notou que pouco se falava sobre os danos às águas, fauna e flora, tema reforçado no livro pelas ponderações do pesquisador Carlos Joly, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Foto: Perri
Acima, a professora Graça Caldas, coordenadora da publicação, durante entrevista e, abaixo, na finalização do livro, com Adriana Menezes (à esq., em primeiro plano), coeditora da obra, e as alunas Andressa Alday (ao fundo, à esq.) e Érica Mariosa

Foto: Perri

Na viagem, o grupo conheceu de perto o jornal A Sirene, criado pelo coletivo Um Minuto de Sirene – alusão ao sinal sonoro que deveria existir para avisar a população sobre a necessidade de evacuação – em parceria com a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e a Arquidiocese de Mariana. A intenção do veículo mensal, ainda em atividade, é dar voz àqueles que foram diretamente afetados pelo desastre, oferecendo uma alternativa à cobertura da grande imprensa.  

A capa do primeiro A Sirene mostra um bilhete, nas mãos de uma mulher, dizendo que seu marido havia perdido a carteira de trabalho no desastre, com todos os registros necessários para se aposentar. A foto inspirou Roberta Sales a abordar, no último capítulo da obra, a situação daqueles que perderam, além de casas e familiares, objetos e costumes importantes em suas vidas. “As conversas à sombra de árvores levadas pela lama, fotos dos filhos quando crianças, a vista da rua com as casas e vizinhos”, conta. Roberta entrevistou para o dossiê a pesquisadora Olga Von Simson, da Faculdade de Educação (FE) e do Centro de Memória da Unicamp (CMU).

Outra entrevista do livro traz Roberto do Carmo, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo), da Unicamp. Segundo ele, desastres ambientais geram uma resposta padrão de quatro fases: comoção e desejo de punição; compreensão do problema e seus efeitos; acomodação após soluções mínimas; e, por fim, o esquecimento, quando apenas os mais afetados seguem buscando reparação. Do esquecimento vem o perigo de não aprender com o desastre. Para Graça Caldas, uma das missões do livro é justamente contribuir para que as cenas de Mariana não se apaguem e nem se repitam. “Manter viva a memória do desastre é essencial para evitar o esquecimento”. Dois anos depois do rompimento de Fundão, resta apenas a promessa de reconstrução dos subdistritos atingidos, com prazo de entrega em 2019, conforme acordo firmado por Samarco, Vale e BHP Billiton.


Lançamento

O lançamento oficial de Vozes e silenciamentos em Mariana: crime ou desastre ambiental?, aberto ao público, ocorrerá em 18 de outubro, às 14h30, no auditório do DGA (Diretoria Geral da Administração), na Unicamp. A abertura contará com a organizadora da obra, Graça Caldas; o coordenador do Labjor, Carlos Vogt; a coordenadora do Cocen (Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa da Unicamp), Ana Carolina Delfim Maciel; e a coordenadora do Nudecri (Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade) e pesquisadora do Labjor, Simone Pallone, que assina o prefácio do livro.

Em seguida, haverá a mesa de apresentação da obra com Graça Caldas, Adriana Menezes, Fabiana Grassano e Camila Brunelli. Às 15h30, a mesa-redonda Os múltiplos efeitos de Mariana abordará os impactos ambientais, sociais e de memória provocados pela tragédia, além da repercussão na imprensa. Participam o biólogo Carlos Joly (IB/Unicamp e Biota/Fapesp), os sociólogos Roberto do Carmo (IFCH e Nepo/Unicamp) e Olga Von Simson (FE e Centro de Memória/Unicamp), e o jornalista do Estado de Minas Mateus Parreiras, premiado pela cobertura do desastre.

 

Foto: ReproduçãoServiço

Lançamento do livro Vozes e silenciamentos em Mariana: crime ou desastre ambiental?

Quando: 18 de outubro de 2017, quarta-feira, às 14h30

Local: Auditório do DGA (Praça das Bandeiras, 45, Cidade Universitária - Campinas)

Programação:

14h30: Abertura com Carlos Vogt, Ana Carolina Delfim Maciel, Simone Pallone e Graça Caldas

15h: Apresentação do livro com Graça Caldas, Adriana Menezes, Fabiana Grassano e Camila Brunelli

15h30: Mesa-redonda Os múltiplos efeitos de Mariana

17h às 18h: Debate e encerramento

 

Mais sobre Mariana

Foto: Reprodução

Imagem de capa JU-online
Destruição causada no subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana, pelo rompimento da barragem de Fundão | Foto: Antonio Cruz | Ag. Brasil

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