Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Bolsonaro e o ressentimento

Autoria
Edição de imagem

Foto: ReproduçãoComecemos com a questão central: a soberania. Esta última define antes de tudo o controle, consentido ou não, sobre corpos. Não é por acaso que, dos três monopólios do Estado moderno, o da força é o que garante os demais (a norma jurídica e os impostos). A sociedade reúne corpos antes de, por metáfora, coligir almas. Num campo democrático e orientado por leis o controle é aceito de modo voluntário. Os indivíduos e grupos permitem limites aos seus movimentos em troca da livre circulação própria. O poder político define regras para os atos de todos. Mesmo o mais singelo passeio nas calçadas supõe a soberania que marca o permitido ou negado aos corpos. O indivíduo que segue em sentido contrário ao estabelecido pelos costumes e atropela os demais pratica um ato de insubordinação que, repetido e exasperado por outros do mesmo jaez, pode derrubar um governo. Normalmente não prestamos atenção aos gestos menores de nossa força muscular. Mas eles estão conectados a outros e outros numa cadeia que exige disciplina e respeito às formas sancionadas de comportamento.

Marcel Mauss tem ainda muito a nos ensinar sobre corpos e gestos. [1] Corpos sintetizam desejos, dores, emoções, tudo o que na filosofia clássica é nomeado como “paixão”. Os desejos nascem primeiro do corpo e, nele repetidos ou reforçados, passam a um estado de refinamento a que chamamos “alma”. As dores, as emoções, os sentimentos seguem o mesmo rumo. Não leitor, não! Aqui não se repete o acúmulo de noções elaborado por D’Holbach, Diderot, Hobbes ou Locke. Chega à nossa presença a contribuição de Aristóteles, assumida explicitamente pela escolástica tomista: Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu. Diria Spinoza: a alma é metáfora do corpo, não o corpo metáfora da alma. Um governo que bem administra corpos individuais lhes garante liberdade de movimentos, desde que não seja em prejuízo coletivo ou de outros indivíduos. Temos o direito de viver e nos orientar para onde quisermos, mas o mesmo direito deve ser garantido aos nossos iguais. Caso não tenhamos tal direito ou se apenas alguns de nós dele gozam, nascem em nossos corpos as paixões tristes, reativas, ressentidas.

Análises da campanha eleitoral e do governo Bolsonaro insistem em assinalar falas e atos grotescos praticados por ministros e apoiadores do presidente no Congresso, igrejas e ruas. São notórios os despautérios do chanceler sobre os EUA, o mundo ocidental, as tormentas climáticas, o pretenso comunismo que teria se infiltrado na imprensa. As delirantes falas da ministra Damaris, do ministro que se dedica à educação, as falas do presidente em matérias de costume e ideologia formam um sistema delirante que merece análise. Nos setores da oposição se concede eco a tais sandices, sempre seguidas por um sorriso ou gargalhada dos liberais ou de partidos à esquerda.

Creio ser tal procedimento um perigo para a vida em democracia. Lembremos sempre que na ditadura de 1964 o tirânico Costa e Silva era assunto de piadas na oposição ao regime. Recordo algumas delas. “Este problema de matemática pode ser resolvido por qualquer garoto”. Então resolva presidente. “Chamem um garoto!”. Alguém bate à porta do quarto, no hotel em que o ditador se hospeda. “Between!”, ele diz. Ah! A marca do desodorante predileto do presidente? “O IOIO” (em lugar de 1010). No mesmo passo em que muitos gargalhavam, o Ato Institucional de número 5 era urdido e recebia edição. Os risos se tornaram amarelos. Não preciso evocar o quanto Hitler, antes de chegar ao poder, era o saco de risadas dos liberais, conservadores, socialistas e comunistas alemães.

Volto aos corpos e ao ressentimento. Desde longa data estudos sobre aquela paixão foram publicados na Europa e nos EUA. O clássico de Elias Canetti, que estuda as massas modernas, poderia ter como subtítulo “o ressentimento”. Trata-se de uma paixão dissecada por nomes como Nietzsche e Max Scheler. Em seus escritos, não concordes em todos os aspectos do fenômeno, os dois pensadores mostram o quanto o ressentimento evidencia uma hostilidade sem força dos fracos contra os fortes. Ele tem tudo a ver com a vingança. Aliás, um estudo importante de Antonio Candido sobre a vingança remete ao pensamento de Nietzsche, via Gramsci, não por acaso. [2] Ao discutir o Conde de Monte Cristo, Candido acompanha os meandros de uma luta geradora de ódios e religiões do ódio. Ressentimento e vingança são banhados nas bacias da impotência vencida, das quais vazam os conceitos de inimigo a ser esmagado de todas as formas. O ressentimento pode se unir à indignação diante de injustiças, mas não se confunde com ela. [3]

As atuais vitórias da extrema direita, no mundo e no Brasil, podem ser entendidas em conexão com o ressentimento, a vingança, os acessos de ódio individuais ou coletivos. Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional de Harvard, ao escrever sobre a “política do ressentimento” diz que há vinte anos já era possível prever que o descuido de políticos não populistas diante das desigualdades sociais ou econômicas ajudou a parir governos como o de Trump e pares na Europa e no mundo.  Para explanar o fato, Rodrik analisa a chamada “globalização”. Sempre que os governos deram maior importância aos elos econômicos internacionais, explodiram ondas de nacionalismo entre os prejudicados pelos setores liberais. Para enfrentar o sangramento de riquezas dos países duas estratégias surgiram na Alemanha anterior ao nazismo, por exemplo.

A primeira, a dos socialistas e comunistas, seguia para as mudanças sociais. A segunda, a nazista, enfatizou a questão nacional. No seu livro Has Globalization Gone Too Far? [4], Rodrik indica que a internacionalização dos mercados de bens, serviços e capitais abre o vácuo entre grupos cosmopolitas profissionalmente integrados e qualificados – e assim conseguem vantagens – e o resto da sociedade. Dois tipos de política são exacerbadas: a escolha identitária ao redor da nacionalidade, etnicidade, religião e uma outra entre rendas fracas e altas, o que retoma a questão das classes.

Dada a mudança nas lides de esquerda, as quais atenuam bastante a luta das classes para  colaborar com os capitais e o modelo parlamentar, os novos choques não se operam sobretudo com estratégias classistas. O encolhimento dos postos de trabalho pelas inovações técnicas enfraquecem sindicatos e partidos mais fiéis à luta das classes. No vazio estabelecido entre os privilegiados que ainda têm acesso aos empregos e a massa dos sem meios de sobreviver (imenso, monstruoso e despreparado exército de reserva, sem ao menos o movimento das mãos para a boca) erguem-se os demagogos da extrema direita. E aí temos os conhecidos slogans: “sem emprego?”. Culpa dos chineses. Sofre com a criminalidade? Culpa dos mexicanos que invadem nossa terra. Terrorismo? A causa encontra-se nos muçulmanos. Economia fraca? Culpa dos nordestinos e assim vai. E temos o dado essencial: os demagogos trazem à tona o ressentimento dos realmente excluídos ou que se imaginam ameaçados pelo “outro”.

Quem já se dedicou a pensar a experiência do ressentimento leu com certeza os escritos de Nietzsche na Genealogia da Moral. [5] Mas se também analisou o livro de Max Scheler [6], o volume de Marc Ferro [7] e chegou ao livro de Peter Sloterdijk, Cólera  e Tempo [8] conhece as sinuosidades do problema. O ressentimento, adverte Ferro, evidencia o quanto é falha a divisão cronológica entre o que foi e o que é: nele, o passado é mais presente do que o presente porque o perseguido, se vence um dia, se transforma no mais vingativo perseguidor. Eis o tema nuclear do livro Massa e Poder escrito por Elias Canetti: as massas se dividem em hordas de fuga e de perseguição. Uma hora elas atacam o “inimigo”, mas logo a situação se inverte, elas são vistas e perseguidas como inimigas. Nas redes sociais de hoje as coisas podem ser mais complexas: a horda de perseguição pode ser perseguida no mesmo instante em que persegue, basta deixar um aplicativo e seguir para outro.

O ressentido, segundo Scheler, é alguém que injeta veneno em si mesmo, o que faz perder o sentido dos valores e força do juízo. Com o ressentimento vem a corte sinistra da inveja, ciúme, maldade, baixeza que tornam a vida social uma impossibilidade permanente. Gilles Deleuze resume: o ressentido é um ser doloroso, “a esclerose ou endurecimento de sua consciência, a rapidez com a qual toda excitação se enrijece e se congela nele, o peso dos traços que o invadem são muitos sofrimentos cruéis”. No sujeito acometido pela doença do ressentimento o pior não é a sua maldade, mas seu ímpeto voltado para a depreciação. Ele deseja que “os outros” sejam ruins, precisa da maldade atribuída aos demais para sentir a si mesmo como bom. “És ruim, logo sou bom”. [9]

As políticas da extrema direita usam e abusam do ressentimento. Trump é o resultado e a epítome de semelhante prática. [10] No Fórum para uma nova governança mundial foi tratado o tema do ressentimento de modo amplo, embora não profundo. [11] Também Joséphine Staron, em escrito instigante sobre o tema, cita Spinoza para demonstrar a força daquela paixão quando partilhada socialmente. O que seria o ressentimento numa ótica spinozana? Trata-se de um “desiderium coletivo, ou seja, uma tristeza, impotência e profundo rancor diante de um desejo não satisfeito. O ressentimento, individual ou coletivo, se exalta no desejo de vingança contra o opressor (real ou presumido), e se reforça no sentimento de impotência para derrubar a ordem estabelecida. O indivíduo do ressentimento considera a si mesmo um objeto de desprezo dos outros, uma vítima eterna daqueles outros. É próprio do ressentido imputar a responsabilidade de seu estado – impotência – a causadores reais ou supostos, bodes expiatórios. A expressão do ressentimento nas sociedades ocidentais tende a se fixar nos antagonismos entre grupos solidários, quando estes últimos se tornam, como símbolos, responsáveis pela injustiça sofrida”.

Staron não cita o escólio da proposição 32 posta no livro Terceiro da Ética por ela mencionada. Aqui está: “vemos, pois, como a natureza dos homens está ordinariamente disposta de tal modo que sentem comiseração por aqueles que padecem males e invejam quem vai bem, e isto (...) com tanto maior ódio quanto mais amam a coisa que imaginam estar na posse de outros. Vemos, além disso, que da mesma propriedade da natureza humana segue-se que os homens sejam misericordiosos e também invejosos e ambiciosos. Se queremos consultar por último a experiência veremos que ela nos ensina tudo isso, sobretudo se nos fixamos nos primeiros anos da vida. Pois a experiência mostra que as crianças, por causa de seu corpo sempre oscilante, riem ou choram pelo simples fato de ver os demais rir ou chorar e desejam imitar a seguir tudo o que enxergam ser feito pelos demais, e, finalmente, querem para si tudo o que imaginam deleitar os outros porque, com efeito, as imagens das coisas (...) são os próprios afetos do corpo humano, ou seja, maneiras pelas quais o corpo humano tem de ser afetado pelas causas exteriores e estar disposto a fazer uma coisa ou outra”.  [12]

As hordas humanas, presas à tutela mantida pelos demagogos, os chamados líderes, são inconstantes, invejosas, ambiciosas, ressentidas. Mas elas não sintetizam o povo na sua integralidade. No povo coexistem as paixões tristes como o ressentimento e as alegres que reduzem “na medida do possível, o império da tristeza, do temor e do ódio”. [13] As manifestações do ressentimento podem ter início nos indivíduos, grupos, partidos, igrejas ou qualquer outro coletivo. Mas se não forem administradas e não sofrerem atenuação relevante, elas tomam povos inteiros, impossibilitando o convívio político e social. A multidão é temível, se ela não teme. Mas as hordas repletas de ódio permanecem no ressentimento à espera da vingança. E tal afeto negativo é poderoso sintetizador de forças que podem explodir em momentos de crise e também de eleições.

Falemos do sr. Bolsonaro e das supostas tolices ditas ou cometidas por ele e seus ministros. Desde antes de 2018 assistimos a catadupa de slogans dirigidos a hordas ressentidas. E cada passo da campanha bolsonariana foi efetivado tendo em vista aquelas massas. Comecemos com o sinal de arma, imposto até às crianças e assumido por padres, pastores, juízes, professores, militares, jornalistas. Desde os tempos da ditadura, mas sobretudo depois dela, a pregação fascista ao modelo Salim Maluf projetou a sombra da insegurança na cidadania. Sim, existem quadrilhas que operam à margem e contra a lei. Mas Salim Maluf nutriu o quanto pode, com poderoso auxílio da mídia “policial” no rádio e na TV, a sensação de abandono diante dos fora da lei. As grades, proclamavam Maluf e asseclas, deviam trancafiar bandidos. Mas os cidadãos “direitos” estavam presos em suas casas, A propaganda repetida prosperou. A perda de segurança, meio real e meio imaginária, gerou o ressentimento e o desejo de vingança. Este último foi satisfeito em parte pelo grito malufista “a Rota na rua” e por massacres como o do Carandiru além de outros assassinatos em massa como o ocorrido na rodovia Castelo Branco.  Acrescentemos os arrastões nas praias e praças, sobretudo no Rio de Janeiro, o pavor diante da violência que vigora nas favelas (geradas pelas elites cariocas e brasileiras), os assaltos aos caixas de bancos e restaurantes finos ou nem tanto, sempre marteladas nos olhos e ouvidos pela mídia policialesca. O terreno estava germinado para Bolsonaro, com a mão em forma de arma capturasse o ressentimento e o desejo de vingança. No governo ele segue a mesma cantiga dirigida aos que o elegeram. Não é uma tolice, mas exploração sine ira et studio do ressentimento de hordas.

No plano dos costumes também não foi tolice a escolha da ministra Damaris. Até o fim da ditadura a truculência governamental se unia ao predomínio dos homens no lar e no trabalho. O macho era senhor absoluto em seu castelo, como os ditadores mandavam sem freios no país. Vigorava ainda em grande parte dos tribunais o entendimento: se a mulher não manteve a fidelidade conjugal, o marido tem o direito de “lavar sua honra”. Assassinos foram absolvidos em larga escala. Os homossexuais podem ter sido tolerados, desde que no segredo de sua vida. Caso revelassem sua opção por meio de roupas, linguagem, gestos, poderiam ser mortos incontinenti ou presos. Após a ditadura, com a Constituição de 88, as mulheres, por duras lutas, e os homossexuais, transgêneros e outros conseguiram alguma proteção da lei, podendo escapar pelo menos em parte ao assassinato cometido pelos “homens de bem”. Mesmo assim, os casos de ataques assassinos a mulheres e homossexuais continuam até os nossos dias. Leis como Maria da Penha são desobedecidas por juízes em desafio ao mando constitucional. Mas os avanços no plano dos direitos humanos são encarados como ataques à família “normal”, perigo de dissolução de “valores tradicionais”, ameaça de transformar cada menino em gay e cada menina em lésbica. Daí a eficácia de slogans como “menino usa azul, menina rosa” e de fórmulas grotescas como a “mamadeira de piroca” assumidas por Bolsonaro e seus propagandistas da internet, reiteradas pelos gestos e falas da ministra que deveria cuidar dos direitos humanos.

Na Inglaterra existiram, no pretérito, protestos em nome da liberdade de castigar o próprio escravo. No Brasil, quando proibidos por lei de perseguir e matar mulheres, homossexuais, índios, negros, quilombolas, assentados, os “homens de bem”, situados nos setores ricos e nas classes médias, sentiram-se ameaçados e ressentidos, perderam os seus “direitos”.  A vingança veio na escolha do “mito”.  Este, pois, apenas repete a mesma mensagem aos seus adeptos: é permitido matar em nome do patriarcado e da religião cristã. Não por acaso, o governo desmantelou o organismo que tratava de coibir a tortura nas ruas, nas prisões, nos lares. A autorização para matar, estimulada pelo decreto sobre a flexibilização do uso das armas, é mensagem reiterada ao público ressentido que irá se vingar de tudo e de todos.

No campo rural, medidas que protegiam o meio ambiente sempre foram vistas por grandes proprietários como ameaças ao seu lucro. Unindo a campanha contra as esquerdas e contra os defensores da ecologia, Bolsonaro aplaca o ressentimento de fazendeiros e rentistas que se percebiam acuados pela ação de sacerdotes (Pastoral da Terra, entre outros), pastores (raros), políticos e defensores dos sem terra. As invasões de propriedades improdutivas eram sentidas como facadas nas costas dos “legítimos proprietários”, mesmo que as terras tivessem sido o fruto de grilagem antiga ou recentíssima. Eleger o vingador foi um modo de dirigir o ressentimento, agora legalmente armado, para proteger a sacrossanta propriedade. A permissão, pelo ministério da Agricultura, da massa terrível de agrotóxicos, serve para aplacar o ressentimento dos latifundiários. Eles ficaram satisfeitos em parte, mesmo com as ameaças, devidas à política internacional canhestra do Itamaraty, de perder safras recusadas pela União Europeia, China e Rússia.

Termino com as medidas propostas pelo presidente no tocante às carteiras de motorista, pontos negativos no Detran, etc. Sim, existe uma indústria da multa praticada pelas instituições administrativas. A sinalização é defeituosa ou preparada adrede para pegar os veículos como se fossem moscas numa teia de aranha, uso desvirtuado do lucro trazido pelas multas – em vez de educação para o trânsito os dinheiros são gastos nos serviços administrativos e outros – sem transparência. Quase nunca um apelo ao julgamento dos funcionários encarregados pelo serviço resulta em correção de multas, mesmo que seja provada a falha da fiscalização. Assim, cada penalidade imposta aos motoristas é sentida no seu corpo como uma facada dolorida, uma injustiça perene. Imaginemos quantas multas atingem quantos donos de veículos por dia e teremos a massa enorme dos ressentidos para os quais o presidente responde com a vingança autorizada.

Assim, as bobagens do presidente e de seus adeptos têm lado caricato, sim. Mas não devem suscitar risos. Com experimentos semelhantes, o treino na condução de massas –a cada dia mais numerosas, ressentidas e sedentas de vingança – poderá conduzir o Brasil para regimes de hordas nos quais o Parlamento será varrido e a Justiça trancada, como disse um rebento presidencial, com um jipe e um cabo. O Holocausto começou com os pequenos movimentos de hordas, conduzidos pelos SA. Terminou como sabemos. Quando por infelicidade a amiga ou amigos discutir com um adepto rancoroso do governo, preste atenção sobretudo ao seu rosto e corpo enrijecidos, prontos para o ataque contra os “inimigos”.  O que ele fala tem pouca relevância porque deriva da fábrica de mentiras, as fake news, veiculadas pelas “redes sociais” ou mesmo pela imprensa “respeitável”. Outro dia uma pessoa assim repetia que “a verdade é que as universidades públicas não fazem pesquisas”. Quando se replicou que tal enunciado não era verdadeiro, a face se distorceu, o corpo se retesou e quase ocorreu o que se nomeia “desforço físico”. A mentira que saía dos lábios era potencializada pelo corpo apaixonado, ressentido. Recordei, na hora, o belo tratado de Sêneca sobre a ira: se estamos com raiva, olhemos o espelho e vejamos como o nosso corpo se torna feio, medonho. A ira é a política dos ressentidos. [14] Se não conseguirmos limitar os corpos ressentidos dos que apoiam incondicionalmente o governo na extrema direita, logo a soberania não será do povo, mas das hordas de perseguição que já movem suas patas com as milícias. A morte de Marielle Franco foi um aviso. Saibamos captar a mensagem da morte.

 


 

[1] - Carlos Emanuel Sautchuk: Bert, Jean-François. "Les techniques du corps " de Marcel Mauss. Dossier critique. Paris: Publications de La Sorbonne, 2012. 168 p.

[2] - https://archive.org/stream/DaVingancaAntonioCandido./Da%20Vinganca%20-%20Antonio%20Candido._djvu.txt

[3] - A. Grandjean e F. Guénard : Le ressentiment, passion sociale (Rennes, PUR, 2012).

[4] - Columbia University Press, 1997.

[5] - Segundo Tratado, nos aforisma 10 e 11. Em sentido lato diz Nietzsche que as morais nobres nascem de um sim para si mesmo, a do escravo diz não a um estranho, um outro, um não eu. E assim nada em tal moralidade é criativo.

[6] - Max Scheler:  Ressentiment. Translated by William W.( Holdheim Lewis  New York: Schocken).

[7] - Le ressentiment dans l´histoire (Paris, Odile Jacob)

[8] - Zorn und Zeit (Libella/Maren Sell).

[9] - G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie, (Paris, PUF, 1962), pp.133-136.

[10] - Dudas, Jeffrey R. : The cultivation of Resentment, treaty rights and the new Right (Stanford, Stanford University Press).

[11] - Forum pour une nouvelle gouvernance mondiale. Le ressentiment et la nouvelle gouvernance mondiale.

[12] - “Se imaginamos que alguém usufrui uma coisa da qual só ele pode usufruir, tentaremos fazer de modo que ele não mais a usufrua” (Ética, 3, prop. 32). Videmus itaque cum hominum natura plerumque ita comparatum esse ut eorum quibus male est, misereantur et quibus bene est, invideant et (...) eo majore odio quo rem qua alium potiri imaginantur, magis amant. Videmus deinde ex eadem naturae humanae proprietate ex qua sequitur homines esse misericordes, sequi etiam eosdem esse invidos et ambitiosos. Denique si ipsam experientiam consulere velimus, ipsam haec omnia docere experiemur praesertim si ad priores nostrae aetatis annos attenderimus. Nam pueros quia eorum corpus continuo veluti in aequilibrio est, ex hoc solo ridere vel flere experimur quod alios ridere vel flere vident et quicquid praeterea vident alios facere, id imitari statim cupiunt et omnia denique sibi cupiunt quibus alios delectari imaginantur; nimirum quia rerum imagines uti diximus sunt ipsae humani corporis affectiones sive modi quibus corpus humanum a causis externis afficitur disponiturque ad hoc vel illud agendum”. Cf. Joséphine Staron :  Ressentiment et solidarité: les ressorts d´une articulation au fondement de l ´ethos des communautés politiques.

[13] - Balibar, Etienne: “Ultimi barbarorum – Spinoza: o temor das massas”, in Revista Discurso

[14] - Cf. Ricardo Antonio Fidelis de Lima: De Ira de Sêneca, tradução, Introdução e Notas, USP, 2015 (mestrado).  No Projeto Perseus.

 

 

twitter_icofacebook_ico