Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

A resistível ascensão de Donald Trump. Mídia brasileira toca trompete (II)

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Ilustra: Luppa SilvaO governo Temer, como se sabe, mudou consideravelmente a política externa do país. Logo nas primeiras medidas se notava a tentativa de forjar uma parceria mais próxima com os EUA e suas grandes empresas, abrindo ao capital estrangeiro o controle de riquezas minerais (como o petróleo do pré-sal) e acenando com a promessa de grandes contratos de obras públicas, agora disponíveis a empreiteiras estrangeiras, já que as nacionais foram praticamente dizimadas pela operação “Lava Jato”. O descaso demonstrado com os parceiros do sul, em particular com o Mercosul e os BRICS, também aponta nesse sentido.

Agora, antes mesmo de tomar posse, o governo eleito em 2018 mostra inclinações similares. Mas há algumas diferenças, talvez resultantes de diferentes alinhamentos, lá no coração do império.

No âmbito político, ao que tudo indica, o governo Temer estava mais confortável com a suposta vitória da candidata Hillary Clinton, acreditando que ela aceleraria acordos comerciais bilaterais. O primeiro ministro das relações exteriores de Temer, José Serra, declarou publicamente esse alinhamento, ao afirmar que a vitória de Hillary era esperada e que Trump representava um “pesadelo” tão grande que não poderia nem deveria ocorrer, o que pode ser motivo de algum constrangimento futuro.

O governo Bolsonaro parece ter outra inclinação. Trump não é apenas sua inspiração, parece cada vez mais seu magneto, seu centro de força.  Nesse sentido, também, o novo governo parece ter diferenças com relação à grande mídia local.

Durante a campanha eleitoral americana, a “torcida” por Hillary era evidente e confiante – por parte do governo e também por parte grande imprensa nacional, dominada por seis famílias detentoras dos principais meios de comunicação no Brasil. A torcida era tanta que obscureceu a capacidade de análise e a prudência de se prevenir diante de um possível resultado adverso. Até hoje, boa parte dessa mídia trabalha para deslegitimar a vitória de Trump – com encenações “jornalísticas” que parecem sugerir algum tipo de “impeachment” no futuro.

O governo, evidentemente, tem que ser mais discreto. Trump não constava dos sonhos do governo Temer, mas isso não autoriza o governo a entrar em conflito com o novo mandatário. O certo é que Trump instalou uma grande dose de incerteza no cenário internacional e, mais especificamente, nos parâmetros que orientam a política externa do Brasil. A incerteza é a marca maior dos novos tempos na política externa, muito longe do business as usual representado por Hillary Clinton. Talvez isso explique, em parte, o vai-e-vem dos grandes meios de comunicação


Imprensa brasileira sonhou com Hilary, acordou com Trump

Como já mencionado, era perceptível uma preferência da grande imprensa brasileira pela candidatura democrata. Tanto o noticiário como as colunas de “opinião” mostraram sempre, antes da eleição e depois, um notável exercício de confusão entre desejo e aferição da realidade. Uma repórter da rede Globo, maior cadeia de info-entretenimento do país, publicou um tweet que provocou celeuma na editora: “No Brasil não existe cobertura das eleições americanas. Existe torcida pela vitória de Hillary Clinton”.

Era voz solitária, ou quase. No dia seguinte aos resultados, o jornal O Globo emitiu editorial duríssimo contra o novo presidente: Trump deve ter tremido de medo, coitado.

A mídia brasileira não era muito diferente da americana nesse alinhamento cego pró-Hillary. Durante a campanha, ainda nas primárias, Trump era apresentado como um astro de entretenimento, algo grotesco – uma imagem mais ou menos parecida com aquela que o New York Times anunciou, quando um de seus principais jornalistas disse que a campanha do excêntrico seria confinada à seção de entretenimento do grande jornal.

 No Brasil, os colunistas mais obsessivos com o figurino de modernidade “global” ensaiavam um otimismo de autoengano. É o caso de Marcos Troyjo, colunista do jornal Folha de S.Paulo que também desempenha o papel de sociólogo na Columbia University.  Depois de enquadrar Trump na dimensão show-business, sentenciou: “A ascensão de Donald Trump não é de interesse público, mas seguramente atrai o interesse do público.” [http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcostroyjo/2016/11/1828577-eleicao-nos-eua-deixa-mundo-a-beira-de-um-ataque-de-nervos.shtml]. Como intérprete autoproclamado do tal interesse público supranacional, o colunista fulminou o candidato republicano. Alertou para algum perigo de surpresas, mas de fato, parece confortável com a atitude dominante: “A aposta é sempre a de que na hora “H”, o eleitor americano vai dizer “bem, agora chega de diversão. Votemos na chata, previsível e mais-do-mesmo Hillary Clinton”. Caso ocorra o inverso, diz ele, teremos o mundo “à beira de um ataque de nervos”. O colunista passa bem. Rivotril se vende em qualquer quiosque em New York, próximo da Columbia University.

Zombando das propostas ditas excêntricas de Trump, Troyjo defende a candidata democrata no que diz respeito aos dramas da política doméstica americana. Ela traria, por exemplo, “uma mensagem mais densa quanto ao controle de armas”, uma vez que “o fácil acesso a elas nos EUA é o elemento comum que se encontra em todos os tiroteios em massa”.

Clovis Rossi, correspondente internacional de longa carreira, comenta uma pesquisa feita com líderes empresariais e daí deduz que o repúdio dessas “elites” a Trump provavelmente representasse a opinião “do continente”: “Mas, à falta de dados científicos a respeito, fiquemos com a opinião dos “líderes”, que, ademais, parece extremamente sensata ao rejeitar Trump”. Como a opinião do líderes empresariais parece “sensata”, do ponto de vista do repórter, ele passa a supor que é também verdadeira. Como de costume, tende-se a chamar de irracionais as razões dos outros que não entendemos ou não aceitamos.

Chama ainda mais atenção na visão dos analistas brasileiros o desprezo para com a chamada “América profunda”, transfigurada, por essa análise, na América “superficial”. Trump é acusado de fazer diagnósticos e tratamentos “superficiais” para os males da América – por exemplo, quando apela ao sentimento de perda da chamada “classe trabalhadora branca” dizimada pela globalização das manufaturas americanas. A América profunda, para os globalistas, é algo superficial, um mundo facilmente acessível aos populistas e demagogos. Segundo Troyo, Trump “se vale de parte da insatisfação econômica interna, como o sentimento de perda de postos de trabalho que a mão de obra industrial menos qualificada experimenta nos EUA, para disseminar soluções simplistas de política externa baseadas em preconceitos ou diagnósticos equivocados.”

Poucos analistas brasileiros conseguiram compreender a profundidade real da situação de crise que vive boa parte do assalariado estadunidense, apontando para os dilemas econômicos e sociais como a origem da vitória de Trump.


O assunto não é Trump. “É nóis”

Por que se observou, entre autoridades, analistas e jornalistas brasileiros, toda essa construção edulcorada do duelo eleitoral, com tanta discordância com o que se pode chamar de “fatos”? Em primeiro lugar, devemos considerar a influência da cobertura midiática americana, bastante favorável à Hillary e que a apontava como vencedora até a véspera da eleição. Em segundo lugar, o viés neoliberal da imprensa brasileira, dominada por poucas famílias e analistas com postura ideológica há muito consolidada, se coadunava melhor com as propostas e ideais representados por Hillary Clinton, em particular no campo econômico e dos costumes. Por fim, o ataque de Donald Trump à população latina pode ter tido alguma influência nas preferências dos analistas brasileiros. 

Trump venceu, mas grande parte da mídia brasileira parece ter decretado Hillary como a “vencedora moral” de outra eleição, aquela que a mídia deseja que tivesse acontecido. A grande maioria de manchetes concentrava-se nesta informação: Hillary havia suplantado Trump na votação popular, dando a entender que o “problema” a ser superado era sistema eleitoral americano. Como Al Gore contra Bush Jr., no começo do milênio. Esse questionamento ao sistema eleitoral americano demonstra uma certa incompreensão do sistema federativo dos EUA, bastante diverso daquele existente no Brasil. Demonstra também um tratamento condescendente com o sistema eleitoral americano, por este não ser baseado na representação direta, supostamente mais democrática na visão de boa parte dos analistas.

 Outros jornalistas, como Lucia Guimarães, no Estadão, encontravam na “nuvem” as razões da derrota de sua candidata favorita: “Trump é o primeiro presidente eleito pelo extremismo estimulado pela cultura digital e a desinformação disseminada online.” Segundo essa interpretação, Hillary, senhora de uma máquina de espionagem conhecida e temida, teria sido vitimada por uma outra máquina, sem dono, a incerta nuvem de boatos da internet.

A cobertura da imprensa brasileira, em suma, diz mais sobre essa imprensa e suas inclinações, do que sobre os fatos que supostamente narrava. Foi fortemente influenciada pela mídia americana com inclinações ideológicas pró-Hillary. E foi incapaz de compreender em profundidade os dilemas tanto da sociedade americana, quanto do sistema eleitoral e federativo dos EUA. Assim, a mídia tupiniquim não foi apenas surpreendida pela vitória de Trump, como foi obrigada a se enredar em explicações pouco convincentes para justificar a ascensão de um outsider de discurso agressivo, que fala mais para os corações que para as mentes dos americanos.

 

 

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