Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Modelos de ensino superior – pausa para nossos comerciais...

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Ilustra: Luppa SilvaEste artigo é um anúncio publicitário – ou merchandising, se preferirem. Está nas livrarias um livrinho que acabo de lançar, em parceria com duas de minhas ex-orientandas na Unicamp. É uma tentativa de trazer ao leitor brasileiro uma visão sintética de alguns sistemas de educação superior. Como esse conhecimento não é tão disseminado entre nós, o texto é deliberadamente didático e descritivo.

ReproduçãoOs países são escolhidos pela relevância que tiveram na “exportação” de modelos. A Alemanha, como se sabe, forneceu a muitos países a inspiração para que se replicasse a chamada universidade Humboldtiana. Nosso segundo caso, o americano, é um desses herdeiros. Entre o final do século XIX e começo do século XX, centenas de intelectuais americanos com sede de conhecimento avançado foram completar sua formação superior naquele país. E trouxeram esse modelo para criar as primeiras “universidades de pesquisa” norte-americanas. Esse movimento teve contrapartida, ou, quem sabe, uma consequência parcial da admiração despertada no novo continente. Nos anos 1930, vários pesquisadores alemães, açoitados pela crise política do velho mundo, foram atraídos pelas universidades americanas, algo que se repetiria depois da II Guerra. Quanto à França, a terra de Descartes e dos iluministas, não apenas sediou as primeiras elaborações de campos científicos decisivos – química, matemática, geografia, biologia, entre tantos. Missões francesas ajudaram a criar escola na Universidade de São Paulo, no momento de sua criação.  O estudo sobre os Estados Unidos é, em certa medida, uma atualização de trabalho maior, também publicado pela editora Unesp em 2015 – Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura.

Este livro, como o anterior, é resultado de pesquisa financiada pela Fapesp: “ Ensino superior, políticas de pesquisa e inovação, processos de desenvolvimento – estudo comparado de quatro países: Alemanha, Brasil, França e Estados Unidos”.

O trecho a seguir é um aperitivo. Os interessados podem anotar a referência: Modelos Internacionais de Educação Superior – Estados Unidos, França e Alemanha, Editora Unesp.


Nota sobre o recente crescimento do ensino superior privado com fins lucrativos

A educação superior americana foi majoritariamente privada até a Segunda Guerra Mundial. A partir daí, “estatizou-se” cada vez mais. Hoje, 71% do alunado frequenta escolas públicas. A maior parte delas são colleges e universidades estaduais; algumas são municipais, como a City University de New York. Uns outros 20% frequentam escolas privadas sem fins lucrativos (como Harvard, Stanford, Chicago, Columbia etc.).

Nos anos 2000 um setor antes bastante marginal teve razoável crescimento – o ensino privado com fins lucrativos. Hoje abriga mais de 10% dos estudantes de nível superior. É ainda bastante minoritário, mas cresceu bem e de modo algo predatório. É relevante compreender como e por que cresceu esse setor. E quais as consequências desse modo de expansão.

Comecemos pelas prováveis razões da expansão, tão grande nos anos 2000.

Aparentemente isso não teria sido possível se os outros setores (público e non-profit) também não tivessem entrado numa rota de “privatização”, para usar os termos de Roger Geiger, isto é, de dependência crescente de anuidades e taxas, para seu custeio. A elevação das anuidades é contrastante com o a estagnação da renda média das famílias e, mais ainda, com o assombroso crescimento das desigualdades de renda (cf. Gráfico 1.15).

Gráfico 1.15 – Encarecimento das anuidades, 1980-2008

Imagem: Reprodução
Fonte: reproduzido de Geiger; Heller (2011, p.3).

Em estudo recente, Steven Brint compila algumas indicações da “seletividade” (econômica) das universidades de pesquisa, públicas e privadas. Em 2003, a renda familiar mediana, nos Estados Unidos, era de US$ 43.500,00. Nesse mesmo ano, nas universidades privadas mais seletivas, apenas uns 11% dos estudantes estavam dentro dessa faixa. Em 2005, destaca Brint, perto de 40% dos ingressantes, nas mais seletivas instituições privadas, tinham renda familiar estimada de US$ 150 mil ou mais. No conjunto das escolas privadas esse percentual era de quase 40%. Nas universidades públicas, o percentual desses “mais ricos” era de 20%. Apenas 7% das famílias americanas têm renda nesse nível (mais de 150 mil dólares).

O tamanho da “indústria de educação superior” é bastante significativo, no seu conjunto. Mas algumas de suas unidades merecem destaque. Brint monta o instigante quadro a seguir, referente às instituições sem fins lucrativos (Quadro 1.4):

Imagem: Reprodução
As cifras são baseadas nas rendas totais | Fonte: Fortune 500 (2004; 2006); National Center for Education Statistics (2006)
Imagem: Reprodução
Fonte: Brint (2007, p.94, Tabela 6).

Mas o setor privado com fins lucrativos, ainda que em menor escala, também tem suas estrelas. As maiores são as seguintes (Quadro 1.5):

Foto: Reprodução
Fonte: Fonte: Brint (2007)

Ao que tudo indica, o setor privado “acolhe” um conjunto de estudantes que vê como difícil ou mesmo impossível o ingresso em escolas públicas, mesmo os baratos community colleges. De certo modo, esse público “antecipa sua exclusão”. Ao mesmo tempo, as escolas-empresa montaram esquemas muito agressivos de “venda de financiamento” aos estudantes, no limite da irresponsabilidade. Os relatos que começam a aparecer, nos últimos anos, registram alguns circos de horrores, similares às vendas de hipotecas claramente fraudulentas que levaram à bolha e crise das tais subprimes, em 2008.

Isso só se tornou possível pela confluência desses dois fatores – o setor público reflui e se torna mais caro e inacessível e, por outro lado, as escolas-empresas e seus lobistas em Washington conseguem reformar as leis e normas, de modo a tornar tais empresas elegíveis para receber créditos e vantagens outrora apenas reservados a escolas públicas ou sem fins lucrativos.

Os números parecem indicar as manobras que os tornaram possíveis. No ano 2000, os for-profit receberam cerca de US$ 1,1 bilhão do programa federal de bolsas Pell Grants. As non-profit private receberam US$ 1,5 bilhão e as escolas públicas receberam US$ 5,4 bilhões. Agora compare com os dados de 2010: os for-profit receberam US$ 7,5 bilhões, as non-profit, US$ 3,9 bi, e as públicas, US$ 18,4 bi.

A agressividade das “vendas” de escolas for-profit pode ser vista nas suas táticas comerciais: a criação de volumosas equipes de “recrutadores”, isto é, de vendedores de vagas movidas a crédito (endividamento), muito similar às de vendedores de hipotecas podres de dez anos atrás. Essas escolas gastaram, em 2009, mais de 4 bilhões de dólares com marketing e com equipes de vendedores, isto é, de recrutamento e admissão. Quando somamos as 30 principais empresas desse tipo, verificamos que contrataram mais de 35 mil “recrutadores” em 2010, cerca de um “vendedor de vagas” para cada 50 estudantes matriculados.

Quando insistimos em fazer o paralelo com a venda de hipotecas isso não é uma brincadeira ou jogo. A dívida estudantil já tem sido apresentada como grande bolha, constituindo a segunda dívida privada do país (já superou cartão de crédito e compra de veículos). O site Mother Jones compila outros dados preocupantes sobre esse tópico (cf. Quadro 1.6):

Imagem: Reprodução
Fonte: Fonte: Brint (2007)

A inadimplência é de 1 em cada 25 estudantes que se formam, na conta geral. Mas, entre os estudantes de escolas privadas de curta duração (dois anos), a proporção é de 1 para 5. E no setor com fins lucrativos em geral (dois anos ou 4 anos), 47% dos estudantes são inadimplentes.

Fonte: Mother Jones – “Screw U: How For-Profit Colleges Rip You Off”. Disponível em: <http://www.motherjones.com/politics/2014/01/for-profit-college-student-debt/>. Acesso em: 31 jul. 2017.

Em 2010, o Educacion Trust – centro independente dedicado à análise (e defesa) da educação para todos – produziu um exame crítico do setor privado lucrativo. Utilizando dados do Departamento de Educação, no relatório intitulado Subprime Opportunity: The Unfulfilled Promise of For-Profit Colleges and Universities, o centro registrou:

 

No ano letivo de 2008-2009, as faculdades com fins lucrativos receberam US$ 4,3 bilhões em bolsas do programa federal Pell-Grant – quadruplicaram a quantidade que receberam dez anos antes. E receberam, ainda, aproximadamente US$ 20 bilhões em empréstimos estudantis federais. Como resultado deste grande investimento federal, em média, a escola com fins lucrativos extrai 66% de sua receita de auxílio federal ao estudante [...], a gigante Universidade Phoenix abocanhou mais de 1 bilhão de dólares só do Pell Grant em 2009-2010 [...]. O rápido crescimento e os níveis de lucro recorde relatados por estas instituições poderiam ser aceitáveis se os alunos tivessem razoáveis taxas de êxito, de conclusão de curso. Mas não é o que acontece. Alunos de baixa renda e negros terão acesso, mas não muito sucesso.

 

O relatório sublinha as ineficiências desse segmento – quando levamos em conta suas taxas de conclusão. Considerando um período “folgado” de seis anos, a taxa de conclusão é de 20,4% – contra perto de 60% dos outros segmentos (público e privado sem fins lucrativos). A Universidade de Phoenix tem taxa ainda mais baixa – de 9%! Esse é também o segmento com maior proporção de estudantes em débito – e com débitos significativamente maiores. Em suma, ao que tudo indica, é um segmento altamente enganoso e predatório. O título do relatório faz alusão à crise das hipotecas que sacudiu as finanças americanas em 2008. E parece fazer sentido. Outra bolha? É o que parece acontecer, a ponto de o tema ter sido constante nas falas de Barak Obama.

 

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