Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Madrid, 2004: um atentado, uma eleição

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Ilustra: Luppa SilvaEsta é a estória de uma tentativa frustrada. A tentativa de manipular um atentado para produzir efeitos eleitorais. Há vários aspectos interessantes nesse caso. Por exemplo, o modo pelo qual o contexto determina a percepção. Ou o modo como uma tentativa de “sair à frente”, vendendo uma versão, foi confrontada com uma reação inesperada. E o caso também traz um tema sobre o qual podemos apenas especular: o que teria acontecido se a manipulação do atentado tivesse “dado certo”?

A estória começa assim, antes de virar história. Eu estava em Madrid em fevereiro de 2004. As eleições para o governo ocorreriam no mês seguinte. Mesmo os mais inflamados da esquerda me diziam que a direita, o Partido Popular, era franco favorito. Essa certeza ia do PSOE à Izquierda Unida, coligação liderada pelo antigo Partido Comunista. Entre todos eles, além disso, a expectativa era uma derrota das esquerdas para um inimigo que crescia: o desencanto, a abstenção.

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Ainda assim, uma sombra toldava o horizonte. A manchete abaixo devia preocupar aqueles que lessem as pesquisas qualitativas: perto de 90% dos espanhóis eram contra o envolvimento espanhol na guerra “dos americanos”. E se a “questão externa” virasse interna? Pois não é que isso iria ocorrer?

Imagem: ReproduçãoSim, em menos de um mês o tema da guerra viria à tona, por conta de algo muito, muito interno, explosivo. De certo modo, a Espanha navegava em relativa tranquilidade econômica. Mas, na política externa ajoelhava diante dos norte-americanos. Aznar era quase um cãozinho de estimação de George Bush. A Espanha tinha ido à guerra. Mas a guerra estava um pouco distante. O problema se colocaria quando a guerra viesse à Espanha. E veio logo, dolorida como costuma ser.

Não fiquei para ver o trágico espetáculo, mas voltei para lá em setembro, quando o cenário já era bem outro. Fiquei alguns meses, dando aula em Salamanca. O país mudava de cara, as reformas de Zapatero espantavam os conservadores, o fim da manipulação da TV estatal inspirava “Viva Zapatero”, filme de uma entusiasmada italiana, Sabina Guzzanti. Quando cheguei, essas mudanças já estavam em andamento. Mas três dias tinham sido decisivos para inverter as cores.

A sequência dos fatos é muito instrutiva, não apenas para entender o cenário espanhol, mas, também, para perceber como certas inversões de humor ou psicologia social se processam em dias, às vezes em horas.

Recordando: as eleições deveriam ocorrer em 14 de março, o 14-M, como costuma sintetizar a mídia do país. Eleição equilibrada, mas com um claro favorito, a situação. Eis, porém, que de repente...

Em 11 de março de 2004, um atentado à bomba, no metrô de Madrid, provocou duzentos mortos e outras centenas de feridos. Como disse, a Espanha fora à guerra, agora a guerra vinha à Espanha. A política externa virava assunto interno.  A marcha “tranquila” das eleições foi submetida a um tranco. Daqueles.

Há uma espécie de convicção – quase sabedoria corrente – de que os espanhóis de hoje filiam-se pouco a partidos e sindicatos, mas estão sempre muito dispostos a participar de manifestações de rua. Já houve quem estudasse tal fenômeno – parece que é mesmo real nas ultimas três décadas, não é pura lenda urbana. A explosão de 2004 registrou a confirmação do fato e, ao mesmo tempo, uma rápida inflexão na curva do voto. Rápida e passageira. O governo em exercício, presidido por Jose Maria Aznar, tentou tirar proveito do trágico atentado. Fez com que a mídia desse trela a uma “informação” da polícia segundo a qual o crime era responsabilidade da ETA, a organização separatista basca.

Minutos depois do atentado, o ministro do Interior, seguindo as instruções do chefe de governo, foi à TV para alertar que os espanhóis deveriam se prevenir da “intoxicação dirigida” que talvez desviasse a autoria, que ele declarava ser “sem dúvidas” da ETA. O próprio Aznar veio em seguida para pôr a mão no fogo: era coisa dos bascos e não se fale mais nisso!

No dia seguinte, 12 de março, o ministro do interior voltou à carga, com detalhes de investigação que, mais uma vez, “não deixavam dúvidas”: era o modo de agir da ETA, tinha que ser a ETA. ETA, ETA, ETA. Eita! Contudo, a polícia seguia recolhendo informações que iam em outra direção. O PP insistia. Em 13 de março, o próprio Mariano Rajoy, candidato à presidência do governo, afirmou  que tinha a “convicción moral de que había sido ETA”. Não tinha provas, mas tinha convicção. O ministro do Interior reapareceu na TV repetindo a estória envolvendo os bascos. Mas a coisa ganhou outra dimensão eleitoral. Zapatero, candidato da oposição que nas primeiras horas admitira a hipótese, disse ao ministro, ao vivo e em cores, que fazia horas que já tinha informação suficiente para dizer que a origem da coisa era a Al Qaeda. Não era apenas uma farsa que caía – era a tentativa de manipulação eleitoral que ficava evidente.

Convinha a Aznar a versão ETA, já que há tempos estava envolvido em polêmica com seus adversários do partido socialista. O PSOE era favorável a conversações com os remanescentes do grupo basco, para firmar uma paz duradoura, o fim das escaramuças violentas que ainda ocorriam. E, repito, o país estava às vésperas de uma eleição equilibrada – o conservador Partido Popular, parecia destinado a ganhar. Mas a jogada “esperta” de Aznar virou-se contra o feiticeiro.

Como dissemos, os grandes jornais compraram a mentira, a TV controlada pelo PP, também, é claro. Mas até a imprensa “crítica” como El País, sempre próximo do PSOE, entrou na onda. Durou pouco. Um mar de evidências indicava que a coisa era bem diferente. O atentado estava ligado a grupos políticos árabes – represália pela ativa participação da Espanha na invasão do Afeganistão e do Iraque. E a sequência dos fatos e declarações oficiais mostravam algo ainda mais espantoso: Aznar tinha ordenado claramente que seus funcionários mentissem e sustentassem a outra versão.

Em dois ou três dias tudo mudou. Nas ruas, primeiro. Nas urnas, depois. As mobilizações se tornavam caudalosas, inflamadas.  Chamadas de telefone móvel e mensagens de texto trouxeram as pessoas para as ruas e praças das cidades. As sedes do PP eram cercadas. O PP tentou controlar o prejuízo, pedindo que a justiça impedisse essas “manifestações ilegais e ilegítimas que tentam perturbar a eleição”. Aznar e Mariano Rajoy, seu candidato, pisaram firme nesse terreno lamacento. Sobraria para eles.

A direita ainda tentou enevoar as coisas. Uma manifestação “sem partido”, em 13 de março, deveria reunir gregos e troianos para protestar “contra o terrorismo”. Ali estariam o príncipe-herdeiro e sua cara-metade, os chefes do governo, o ultraconservador presidente da União Europeia, a fina flor da oligarquia. Algo assim como um todos pela educação das crianças. Deu ruim.  A manifestação juntou 2,5 milhões de pessoas em Madrid, 11 milhões em todo o país. Reparem bem: a Espanha tem pouco mais do que 40 milhões de habitantes, Madrid concentra uns 5 milhões.

Mas durante a manifestação “consensual” já corria a notícia da treta de Aznar. Quando o chefe de governo chegou ao ato, em Madrid, começaram os gritos: “’assassino, mentiroso”. Aos poucos, um grito ensurdecedor e inquisitivo, milhões de vozes: "Quem foi? Quem foi?".

A grande imprensa também foi sentindo a barra, na reta final da campanha. Até o diário El Mundo, mais alinhado com o PP, foi cedendo. De um dia para o outro, a capa se altera profundamente:

Imagem: Reprodução

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O El Pais, evidentemente, foi mais longe: "Este jornal acreditou no presidente [Aznar] por duas vezes. Mas a confiança tem um limite: a realidade." 

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As manifestações incomodavam claramente os conservadores, que viam escorrer pelos dedos a vantagem que tinham. Só restava a Mariano Rajoy, o cabeça de chapa, uma tentativa desesperada, impedir que isso virasse assunto de rua:

 Imagem: Reprodução

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O movimento das urnas foi ainda mais espantoso do que aquele das ruas, porque inédito. No dia 14 de março, a participação eleitoral deu um salto; 2,5 milhões de não votantes de 2000 agora saíram para simplesmente dar um fora em Aznar e seu grupo.  Um salto de quase 9% na participação. E isso simplesmente desequilibrou o jogo. Contrariando as pesquisas até ali realizadas, os socialistas ganharam e formaram um novo governo. O PP terminava seu reinado, que vinha de 1996.  Alguns milhões de espanhóis, que se ausentavam sistematicamente das eleições, durante dez anos, resolveram sair de casa e dizer: Aznar, abusaste da paciência. Duzentos mortos é uma conta alta para qualquer um.

Assim é a estória que conto e que conta, de fato. Poderia ter sido outra. Pode-se imaginar?

 

 

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