Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Inovação nos Estados Unidos – o viés militar e seus limites

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Ilustra: Luppa SilvaA máquina norte-americana de produzir conhecimento e inovação transformou significativamente o país e seu lugar no mundo. A manufatura americana já era um exemplo de sucesso em 1900, quando superava a Inglaterra nos indicadores de produção. E já nos anos 1930, o jovem sistema acadêmico norte-americano e os laboratórios de suas indústrias atraíam cientistas e engenheiros europeus – fustigados pelas diferentes crises e incertezas europeias.

Depois da II Guerra, esse dinamismo transbordou na criação de uma rede que por muito tempo ficou sem rivais. Apenas nos anos 1970 os limites e contradições desse modelo começaram a se tornar claros. E eram realçados pelos contrastes com os avanços de competidores como a Alemanha e o Japão.

Estudos sobre os impasses do SNI americano costumam enfatizar 3 eixos críticos:

  1. A estrutura do sistema de pesquisa, seu viés militarizado e high-tech, sua relação problemática com o mundo produtivo. A passagem de uma invenção ou descoberta para a inovação propriamente dita (produção, vulgarização do uso, etc.) parece menos rápida e menos bem-sucedida nos EUA do que na Alemanha e Japão, por exemplo. Também se acentua a dificuldade de gerar inovações incrementais ou aquelas produzidas pela interação com o mundo do uso, do reparo e da manutenção. Ainda nessa linha, aponta-se outra dificuldade, a de gerar ou introduzir inovações em setores ditos tradicionais ou não-high tech.
     
  2. A estruturação socialmente polarizada do sistema educativo e a frágil articulação entre os diferentes níveis e modalidades de ensino. É cada vez mais flagrante o contraste entre o vibrante ensino superior americano e o seu medíocre sistema de educação elementar, média e profissional. Não por acaso, um estudo da National Science Foundation (NSF) que estuda as políticas de inovação da Europa dedica a esse tema especial atenção, retomando a crônica insatisfação dos americanos com seu sistema de educação pré-terciária – o estudo está disponível em: https://www.nsf.gov/publications/pub_summ.jsp?ods_key=nsf96316. Aparentemente, também, esses níveis de ensino pré-terciários, pela sua fragilidade ou baixa capacidade de criação de “talentos”, surgem como um dos fatores a explicar o fraco interesse dos jovens americanos na formação em engenharia ou “ciências duras”, campos em que europeus e orientais ameaçam liderar – esse estudo também está disponível online. Aparentemente, os americanos correm atrás dos rivais nesses indicadores. Ironia da história, no caso dos asiáticos, sobretudo, isto parece ocorrer através do envio de seus estudantes para estágios de especialização e pós-graduação nos EUA, precisamente nessas áreas.
     
  3. A forma de financiamento das empresas, com implicações sobre a gestão e as decisões de investimento. Esse elo débil, paradoxalmente, instala-se em um campo que à primeira vista era vantajoso para os norte-americanos: o vigor de seu sistema financeiro. Ao que parece, a excessiva financeirização das empresas americanas, pós-1980, com a consequente ênfase em resultados de curto prazo, tem tido implicações perversas no investimento em inovação, atividade mais dependente de “paciência”. Sim, havia vibrantes nichos de venture capital – ainda assim eram nichos. Demonstravam relevância para fazer vingar startups. Os nichos bem-sucedidos, contudo, não compensavam um efeito perverso: a substituição da engenharia toutcourt pela engenharia financeira, como força motriz das corporações (e das aspirações dos jovens...). Esta substituição tem sido indicada por certas mudanças fortes: os dirigentes das empresas não são mais antigos quadros do campo da produção (engenharia) ou de vendas, mas formados em business, contratados para gerir mesas de operação; os cursos de business crescem muito mais do que engenharia; a remuneração dos dois setores também se distancia cada vez mais. O capitalismo de papel – engenharia financeira, legal, tributária, etc. – sobrepuja o capitalismo das oficinas, ângulo de análise desenvolvido em estudos de William Lazonick publicados pela Business History Review (número 84, winter 2010) e Ashish Aroray e colaboradores.

 

Peculiaridades do sistema

A organização da política norte-americana de R&D foi profundamente marcada pelo chamado “esforço de guerra”. Alguns estudos bateram forte nessa tecla. Ralph Landau e Nathan Rosenberg organizaram um volume que descreve esse desenvolvimento -  The Positive Sum Strategy: Harnessing Technology for Economic Growth. Seymour Melman enfatizou e popularizou o vínculo com o Departamento de Defesa, desde seu – Pentagon Capitalism – the Political Economy of War (Mc-Graw-Hill, 1970). Muitos outros estudos seguiram essas pistas.

De fato, as três armas, mais a Nasa e o Departamento de Energia (sucessor da Comissão de Energia Atômica) figurariam no centro do sistema, ao lado da NSF e dos NIH, outras duas grandes fontes, não militares. Descentralizada nessas agências, ela é porém fortemente concentrada em um punhado de instituições acadêmicas e umas poucas centenas de corporações que executam os contratos.

A literatura especializada costuma realçar as virtudes do sistema norte-americano de pesquisa básica e aplicada, com forte participação de “supridores” principalmente universidades e centros de pesquisa a elas vinculados, como os FFRDCs (federaly funded research and develoment centers). Essa forma de articulação ajuda a formar gente para pesquisa e, sobretudo, a formar quadros especializados em pesquisa encomendada, programática. O sistema de pós-graduação e as escolas profissionais (engenharias) se beneficiaram tremendamente desse arranjo. Uma outra peculiaridade americana: o sistema compra serviços de universidades privadas. É o que mostra em detalhes o estudo de David Mowery e Nathan; Rosemberg, Nathan.Technology and the Pursuit of Economic Growth (Cambridge University Press, 1989).

Essas práticas e protocolos – muito marcados pela experiência de guerra, como dissemos – acabou por delinear uma espécie de política “clandestina” de R&D análoga à política industrial “american style” [Bingham, 1998, cap. 1], a política industrial que não ousa dizer seu nome, evidenciada por outro analista conhecido – Richard D. Bingham  – Industrial Policy American Style – from Hamilton to HDTV ( ed. M.E. Sharpe, 1998).


A percepção de rachaduras no modelo

Esse caminho americano teria consequências. Como a guerra era o fator não-declarado mas sempre presente, I&D passa a ser identificada com algo muito preciso e focado – a investigação “militarizada” do breaktrough, um pouco independente e mesmo displicente com a consideração de custo-benefício. Esse é o balanço coordenado por John Alic e Lewis M. Branscomb – Beyond Spinoff – Military and Commercial Technologies in a changing world (Harvard Busisness School Press, 1992). Mary Kaldor chama o desenvolvimento desse aparato de um “arsenal barroco”, cada vez mais insustentável. Já nos anos 1960, desenvolve-se, pouco a pouco, uma crítica militante da militarização excessiva da pesquisa, envolvendo sobretudo as organizações de engenheiros.  Uma das críticas: tal tipo de pesquisa é muito pouco familiarizada com o follow-through, negligencia a prosaica tarefa de produzir a vida cotidiana. Tende a confundir-se com a invenção – não com seu uso, reparo e difusão. E passa a ser vista como propriedade exclusiva do “core” científico, o laboratório corporativo ou acadêmico, não como um comportamento ou prática socialmente difundida.

O modelo concentra enormes recursos e poderes (arbítrio) em cientistas e engenheiros. Por outro, acentua ou quase sacraliza o lócus e a atividade de invenção e inovação em setores de ponta (breakthrough) em detrimento da inovação incremental e adaptativa, bem como da disseminação, sobretudo para setores “tradicionais”. Isso é pior quando se combina com o modelo Taylor-fordista de organização do trabalho (na indústria, na agricultura, no comércio e nos serviços). Na sua versão extremista, tende a qualificar a manufatura como prescindível para a saúde econômica do país, vendo como aceitável (quando não recomendável) a transferência de atividades manufatureiras mais “mundanas” para partes do planeta em que sejam mais baratas. É a visão extremada da “sociedade pós-industrial” de Daniel Bell e do mandamento “inove aqui, produza lá fora”.

Qual o impacto desse enviesamento na organização do ensino superior, ensino e pesquisa? Haverá outros caminhos para estimular o desenvolvimento tecno-científico, sem submetê-lo às demandas das armas? Vernon Ruttan faz desse tema o título de um livro, em 2006: Is War Necessary for Econononic Growth? Military Procurement and Technology Development. Será esse sistema vocacionado excessivamente para a geração de breakthroughs e cutting-edge technologies – inovações disruptivas, radicais, em áreas de fronteira? Seria mais ineficiente para a geração de inovações em indústrias maduras? Seria negligente para com a difusão e negligente para as inovações incrementais geradas no ambiente do uso, do reparo, da manutenção, incrementos esses decisivos para, de fato, gerar uma “ecologia socioeconômica inovadora”?

A lista de vulnerabilidades do “modelo americano” é periodicamente reforçada pelos fantasmas que assombram seus empresários, líderes políticos e acadêmicos. Os fantasmas mudam de cara, etnia, território.  Tema do próximo artigo...


Leitura adicional para quem quer aprofundar os temas deste artigo:

  • Abramson, H. Norman, José Encarnação, Proctor P. Reid & Ulrich Schmoch (eds) – Technology Transfer Systems in the United States and Germany, National Academy Press, Washington DC, 1997.
     
  • Adams, Gordon – The Politics of Defense Contracting – The Iron Triangle, ed. Transaction Books, New Brunswick, 1982
     
  • Alic,  John A. -  A weakness in diffusion: US technology and science policy after World War II, Technology in Society 30 (2008) 17–29;
     
  • Alic, John A. – Everyone an Innovator, in Block, Red & Matthew R. Keller (eds) State of Innovation – the US Government’s Role in Technology Development, Paradigm Publihsers, Boulder/London, 2011.
     
  • Alic, John A. - Postindustrial technology policy, Research Policy 30 (2001).
     
  • Alic, John A., Lewis M. Branscomb, Harvey Brooks, Ashton B. Carter & Gerald L. Epstein – Beyond Spinoff – Military and Commercial Technologies ina changing world, Harvard Busisness School Press, Boston, 1992
     
  • Aroray, Ashish, Sharon Belenzonz & Andrea Patacconix - Killing the Golden Goose? The changing nature of corporate research,1980-2007, January 9, 2015, disponível em:  https://faculty.fuqua.duke.edu/~sb135/bio/Science%201%2091%2015.pdf (7/12/2015)
     
  • Bingham, Richard D. – Industrial Policy American Style – from Hamilton to HDTV,  ed. M.E. Sharpe, Armonk-NY/London, 1998.
     
  • Landau,  Ralph & Nathan Rosenberg (editors) - The Positive Sum Strategy: Harnessing Technology for Economic Growth, National Academy Press Washington, D.C. 1986, disponível em http://www.nap.edu/catalog/612.html
     
  • Edgerton, David – The Shock of the Old - Technology and Global History since 1900, Oxford University press, 2007.
     
  • Florida, Richard & Martin Kenney – The Break-through Illusion – Corporate America’a Failure to Move from Innovation to Mass Production, Basic Books, 1990
  • Kaldor, Mary – The Baroque Arsenal, ed. Abacus, London, 1983.
     
  • MacCorquodale, Patricia L., Martha W. Gilliland, Jeffrey P. Kash & Andrew Jameton (eds) – Engineers and Economic Conversion – from the Military to Marketplace, ed. Springer-Verlag, NY, 1993
     
  • Markunse, Ann, Peter Hall, Scott Campbell & Sabina Deitrick The Rise of the Gunbelt – the Military Remapping of Industrial America, Oxford University Press, Oxford/NY, 1991
     
  • Wisnioski, Matthew Engineers for Change – Competing Visions of Technology in 1960s America, MIT Press, 2012.

 

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