Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

A perseverança de ideias: vida em Marte, Teoria da Relatividade e Cloroquina

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O pouso da nave “Perseverança” na superfície do nosso planeta vizinho, que tem por missão buscar vestígios de vida presente ou passada por lá, desenterrou memórias. A primeira é relacionada a um artigo de José Reis na Revista Anhembi nos idos da década de 1950. Não encontrei o exemplar da revista aqui em casa, deve estar no gabinete em Limeira, que talvez eu volte a ocupar nesse ano. Depois lembrei de uma troca de correspondência com o grande divulgador de ciência mexicano Sergio de Régules, que escreveu bastante sobre o assunto. Em seguida, como secreto admirador do programa espacial soviético na infância, recordei as missões pioneiras ao planeta vermelho, ainda nos anos 1960: a Missão Marte.

A ideia de que há vida no planeta com o nome mitológico é antiga. Em 1854, William Whewell, cientista e teólogo, teorizou que por lá existiriam mares e, possivelmente, formas de vida. Essa hipótese viralizou com a observação dos famosos canais de Marte por Giovanni Schiaparelli mais para o final daquele século (1877). Não eram estruturas na superfície do planeta, tratava-se de uma ilusão de óptica, como foi verificado em várias observações subsequentes até o início do século XX. Mas que possibilidade fantástica, mesmo que o rigor da ciência pedisse cautela! Daí temos um dos clássicos da ficção científica, “A guerra dos mundos” (1897) de H. G. Wells, publicado pouco depois do livro “Marte” (1895) do astrônomo Percival Lowell, que especulou sobre a ilusão de óptica como sendo sim obras de engenharia alienígena. Lowell continuou insistindo na ideia e seu segundo livro de 1906, aprofunda as especulações sobre a civilização marciana.

Mapa dos canais de Marte segundo Giovanni Schiaparelli
Mapa dos canais de Marte segundo Giovanni Schiaparelli

Vasculhando a rede de canais virtuais do nosso planeta podemos nos deparar com a imagem da primeira página do “The Salt Lake Tribune”, edição de 13 de outubro de 1912 e sua manchete: “Marte povoado por um vasto vegetal pensante”. A imagem não tem resolução suficiente para ler o texto, apenas a linha fina, que diz que a teoria seria do prof. Campbell do Observatório Lick. Quem seria esse personagem? William Wallace Campbell (1862-1938) foi um astrônomo estadunidense e diretor do observatório mencionado[I]. Os textos oficiais e acadêmicos não mencionam essa teoria, mesmo porque foi Campbell quem determinou que a atmosfera de Marte não daria suporte a formas de vida. De fato, a autoria da teoria foi desmentida por Campbell em cartas (a propagação da teoria continuou por uns anos, sendo sempre desmentida pelo astrônomo)[II]. Trata-se, portanto, da mais pura desinformação/fake News, como tão bem conhecemos hoje.

Manchete do The Salt Lake Tribune em 1912
Manchete do The Salt Lake Tribune em 1912

O nome de Campbell deveria ser mais conhecido por outras contribuições. Ele foi o primeiro a propor a verificação da Teoria da Relatividade pela observação de um eclipse solar, bem antes de Arthur Eddington em 1919, com observações em Sobral e São Tomé e Príncipe[III]. Campbell já tentara verificar o desvio da luz por campos gravitacionais em um eclipse de 1914 e outro em 1918. Mas os equipamentos não tinham resolução suficiente para observar o efeito. O eclipse de 1914, aliás, foi observado na Rússia e, devido à eclosão da Primeira Guerra Mundial, os instrumentos foram improvisados. Mas coube a Campbell, com um eclipse solar em 1922, a importante tarefa de realizar a primeira das várias confirmações das observações de Eddington de 1919, que foram contestadas não por poucos cientistas e por razões externas à ciência. Como também temos observado, infelizmente e com desalento, em importantes questões relativas à pandemia que sofremos.

E poderia surgir ainda a pergunta: mas como Campbell tentou confirmar a Teoria da Relatividade Geral em 1914 se, como tanto se escreve e diz por aí, ela é de 1915? Bem, em 1915 Einstein publicou a cereja desse fantástico bolo, o artigo “As equações de campo da gravitação”, que foi o brilhante epílogo de um projeto – a Teoria da relatividade Geral – desenvolvido ao longo de 10 anos em vários outros artigos. Em um desses artigos, de 1911, Einstein apresenta sua versão preliminar da “Influência da Gravitação sobre a propagação da luz”[IV]. A ciência como forma de conhecimento e atividade humana é ainda pouco conhecida pelo público, leigo ou não. Na questão em pauta, muitos ainda se contentam e propagam o mito de que o grande cientista, depois do “ano miraculoso” de 1905, ficou trancado 10 anos para então finalmente divulgar sua grande teoria geral. Nada mais equivocado, pois nesse período, Einstein publicou 54 artigos científicos, boa parte deles sobre assuntos outros da Física. Ciência é assim, realizada passo a passo, compartilhando e discutindo ideias dentro da comunidade científica, checando constantemente os resultados, sem milagres, mesmo para as mais geniais ideias.

William Wallace Campbell e Albert Einstein em frente ao Observatório Lick (1931).
William Wallace Campbell e Albert Einstein em frente ao Observatório Lick (1931).

A história acima foi encontrada e costurada um pouco por acaso, refere-se a um tema bem distinto dos grandes problemas que enfrentamos no momento, além de distante no tempo. Mas talvez ajude a entender como cientistas podem propagar desinformação, como a desinformação viraliza e como ideias em ciência são desenvolvidas aos poucos, debatidas e verificadas. O caso da suposta vida inteligente em Marte, foi, digamos, inofensivo, e gerou pelo menos um clássico de ficção científica. Exemplos atuais são bem mais sombrios.

O “tratamento precoce” da Covid-19 é um desses exemplos sombrios. Às vésperas da efeméride de um ano do primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil (26 de fevereiro de 2020), contabilizamos mais de 10 milhões de casos e até o final do mês chegaremos a 250 mil mortes, enquanto no portal do Ministério da Saúde, acessado no dia 19/02/2021, sobrevive nota informativa, que ainda recomenda o uso de hidroxicloroquina como tratamento precoce[V].

Ao contrário dos inofensivos canais marcianos, trata-se de uma ilusão que provoca mortes, catapultada do ambiente científico aos meios de comunicação e a nefastas decisões políticas. A origem é um estudo preliminar, realizado às pressas, com falhas metodológicas e apresentando resultados questionáveis, encabeçado por Didier Raoult. Como a ciência, palavra que eu uso indistintamente para designar a forma de conhecimento, sua comunidade e suas instituições, reagiu? Como sempre reage, seja em relação á teoria da relatividade, seja em relação a um medicamento duvidoso. Verificando numa base de dados internacional (Web of Science), observa-se que em 2020 foram publicados 2090 artigos científicos com a palavra-chave “hydroxychloroquine”. Não são trabalhos preliminares, mas textos checados e avaliados. Esse número pode ser comparado ao de 2019, quando foram publicados um total de 569 com o mesmo tópico. O que esses números querem dizer? Primeiro que a ciência se mobilizou para verificar se o remédio é seguro e se funciona contra a Covid-19. Em segundo lugar, os artigos anteriores à pandemia, algumas centenas por ano, mostram que, mesmo um remédio com uso aprovado há muito tempo para determinadas outras doenças, é continua e perseverante a pesquisa para reavaliar seu manejo e segurança de uso e aplicação.

A segurança e efeito da hidroxicloroquina, precisava e precisa, diz-nos a ciência, ser comprovados por testes clínicos cientificamente rigorosos. E juntando a palavra “hydroxychloroquine” com “clinical trials”, temos 405 documentos na mesma base de dados em 2020. Em 2019 foram 41, ou seja: mesmo em usos aprovados, como contra a malária, testes clínicos continuam sendo realizados. Mas voltando ao ano de 2020, nota-se que são centenas de testes clínicos e seus resultados variam. Isso depende de vários fatores, pois são realizados em populações diferentes. Em resumo, testes clínicos necessitam de uma meta-análise: comparação, em princípio rigorosa, de diferentes testes clínicos, avaliando a qualidade de cada um deles. As meta-análises mostram que a hidroxicloroquina e associados são inúteis no combate à Covid-19[VI]. No entanto, atenção: segundo a Web of Science, temos 62 meta-análises de hidroxicloroquina publicadas em 2020. A maioria chega à mesma conclusão: o remédio é ineficaz, quando não também inseguro. Mas algumas meta-análises são ambíguas nas suas conclusões e, assim, continuam a alimentar a desinformação. Precisaríamos de uma meta-análise de meta-análises? Alguns autores, referindo-se a questões anteriores à atual pandemia sugerem exatamente isso. Jop de Vrieze no portal Sciencemag adverte[VII]: “Meta-análises são reconhecidas para encerrar debates científicos. Muitas vezes, no entanto, causam apenas mais controvérsia”. E Mark Sigman, entre outros, aponta a necessidade de meta-meta-análises[VIII], discutindo o impacto de escolhas subjetivas nos estudos que deveriam ser objetivos.

Enquanto esses cientistas discutem a importância do rigor e da atenção, Didier Raoult, que recentemente admitiu que a cloroquina não funciona, para logo depois voltar atrás, caminha na lamentável direção oposta. Em uma carta ao editor do “International Journal of Antimicrobial Agents”, publicada no começo de 2021, ele apresenta uma “meta-análise” na qual propõe que testes clínicos controlados e randomizados não são confiáveis, pois apresentam resultados divergentes, e que apenas estudos observacionais deveriam ser considerados. Acusa também os estudos que ele não leva em consideração na sua “meta-análise”, como sendo antiéticos[IX]. A proposta é simplesmente a negação do método científico e eliminação total da objetividade em favor de escolhas dominadas pela subjetividade. No extremo, o debate científico seria encerrado por meta-análises de opiniões.

O enfrentamento sério da pandemia tem mostrado a importância do compartilhamento de informações, maior colaboração entre pesquisadores e instituições, menos competição e mais coletividade. Mostra também que, isolados, cientistas podem se transformar em anticientistas. Curiosamente (ou não), Didier Raoult desponta naquela tão celebrada lista recente dos 100 mil pesquisadores mais influentes. Ele é o 450º cientista mais influente do mundo segundo as métricas que determinam as recompensas, basicamente o número de citações. É possível que estejamos no limiar de ter que reavaliar o que a comunidade científica está fazendo com seus valores, seus critérios de excelência e o controle desses critérios. Talvez alguns artigos deveriam ser assinados por instituições e não por indivíduos. Para que persevere o que interessa ao conhecimento e ao bem público.

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[I]http://www.nasonline.org/publications/biographical-memoirs/memoir-pdfs/william-campbell.pdf

[II]https://zapatopi.net/blog/?post=201202207190.the_mammoth_eye_of_mars

[III]https://www.comciencia.br/category/_dossie-207/

[IV]https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol3-trans/393

[V]http://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2020/August/12/COVID-11ago2020-17h16.pdf

[VI]https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/05/22/meta-analises-provam-importancia-do-isolamento-e-inutilidade-da-cloroquina

[VII]Meta-analyses were supposed to end scientific debates. Often, they only cause more controversy | Science | AAAS (sciencemag.org)

[VIII]https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0015028211007886

[IX]https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7779266/

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