Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Cientistas, esses desconhecidos

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Ilustração: Luppa SilvaVocê saberia citar o nome de um cientista brasileiro? A 5ª edição do estudo ‘Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil [I], divulgada na 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o progresso da Ciência (SBPC) revela que 90% dos entrevistados não souberam citar o nome de um cientista brasileiro. Esse resultado provocou preocupação nos meios acadêmicos, mas não deveria ser surpresa, caso déssemos alguns passos a mais na discussão. Primeiro é importante verificar se é um exemplo de desinformação apenas no Brasil. Uma busca rápida mostra que não é bem assim, em outros lugares é apenas um pouco melhor. Pesquisa de opinião de 2018 [II] sugere que 81% dos estadunidenses não sabem identificar corretamente um cientista vivo. Dos 19% restantes quase um terço mencionou Stephen Hawking, ainda vivo na época e que era inglês e não americano! Pelo jeito, não adianta muito ter um prêmio Nobel (pelo menos) por ano para aumentar a popularidade de cientistas em um dado país. Em segundo lugar, o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, levanta a lebre: “É preciso fazer um programa para inserir esse tipo de conteúdo na escola. Não há um livro que conte a história da ciência no Brasil.” Bem, talvez o problema seja maior ainda, pois vasculhando alguns currículos de licenciatura na área de ciências naturais na Unicamp, verifica-se que não há uma única disciplina de História da Ciência (que dirá da Ciência no Brasil) nos programas. Enquanto esse quadro não muda, resta apresentar a trajetória de alguns desses ilustres desconhecidos do público e, talvez, aprender alguma coisa sobre quem faz e como e onde a ciência é feita. Escolho para esse fim dois cientistas brasileiros que conheci por acaso, pois são distantes da minha área de formação: Pirajá da Silva (1873-1961) e Jessé Acyoli (1921-1996), que têm histórias surpreendentes e com muita coisa em comum.

A história de Pirajá da Silva eu conheci devido às andanças em um sebo onde adquiri três edições da revista Anhembi da década de 1950. Em uma delas aparecia o artigo de Edgar de Cerqueira Falcão sobre a saga de Pirajá, que está resumida em nota publicada na Revista de História da USP: “A descoberta e identificação do “Schistosoma Mansoni por Pirajá da Silva, em 1908, na Bahia” [III]. A descoberta e identificação dessa nova espécie de Schistossoma só ocorreu, nas palavras de Cerqueira Galvão:  

“quando, em 1908, entrou na liça jovem e desconhecido médico baiano e acabou por solucionar brilhantemente o problema. Tratava-se do assistente da 1ª Cadeira de Clínica Médica da Faculdade da Bahia, então regida pelo Prof. Anísio Circundes de Carvalho. Trabalhando num modesto laboratório de análises clínicas, instalado no Hospital Santa Isabel, da capital baiana, esse auxiliar de ensino, que se chamava Manuel Augusto Pirajá da Silva, passou a deparar nas fezes de doentes sob sua guarda a presença apenas de ovos espiculados [...] Vindo a falecer três desses veiculadores de ovos de esquistossomos nas fezes, necropsiou-os Pirajá da Silva e teve a sorte de achar, na veia porta e em suas primeiras ramificações, os animais adultos, responsáveis pela eliminação intestinal em apreço”.

Essencialmente, é a descoberta da nova espécie de parasita. Após publicar seus resultados na revista “Brasil-médico”, o cientista baiano partiu para a Europa (internacionalização já ocorria, portanto, naqueles tempos) para...

“...examinar em melhores condições o material de que dispunha, redigindo e acrescentando dados, que lhe permitiram expor ao mundo científico a primeira descrição completa do discutido parasito, individualizando-o definitivamente. Tal estudo foi estampado, ao mesmo tempo, nos "Archives de Parasitologie", tome XIII, n.° 2, págs. 283-302, Paris, 1908-1909, e no "The Journal of Tropical Medicine and Hygiene", vol. XII, n.° 11, June lst., 1909, London”. O fac-símile da capa do artigo francês ilustra esta coluna.

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A disputa em torno do reconhecimento da nova espécie foi árdua, bem como sobre sua prioridade intelectual. Ciência abriga seus grupos de interesses e faltas de isenções. No final, Pirajá da Silva foi reconhecido e recebeu em 1954 a medalha Bernhard Nocht, do Instituto de Medicina Tropical (Bernhard-Nocht-Institut für Tropenmedizin), de Hamburgo, por suas contribuições [IV]. Seus artigos internacionais, no entanto, não estão na prestigiosa base de dados Web of Science. Por outro lado, na concorrente base Scopus, onde “A esquistossomose na Bahia” também não se encontra, para o ano de 1908 surgem quase solitários os artigos de colegas que se tornaram mais famosos, Carlos Chagas e Emílio Ribas, estes às vezes lembrados em enquetes como a mencionada no início desse artigo.

Jessé Acioly, nascido em Alagoas, tem em comum com Pirajá a Faculdade de Medicina da Bahia, onde, quase 40 anos depois da descoberta de Pirajá da Silva, contribuiu decisivamente para o entendimento de outra doença: identificou os mecanismos de herança genética da anemia falciforme, um ano antes de quem levou a fama por muito tempo, o geneticista americano James Nee [V]. O nome de Jessé Acioly eu ouvi pela primeira vez em uma palestra na primeira década desse século. A palestra não era sobre a história da ciência brasileira, mas para lembrar a comunidade de que é importante publicar em revistas internacionais de alto impacto, afinal o ainda estudante alagoano divulgara sua pesquisa na obscura revista Arquivos da Universidade da Bahia, também conhecida como Tertúlias Acadêmicas. Por outro lado, James Neel publicara a sua no prestigioso Medicine. O palestrante do século XXI, no entanto, não dando atenção à história, mas apenas aos números, não se deu conta do reconhecimento ainda que tardio dado a Jessé Acioly. Meio por acaso, a partir de conversas informais com o próprio Acioly, Eliane Azevedo abriu o caminho para a devida atenção internacional a seu mestre, enviando para publicação a carta ao editor que também ilustra, abaixo, esta coluna.

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A história do então estudante de medicina Jessé é um exemplo típico do que é chamado de descobertas múltiplas independentes [VI], fenômeno comum na ciência, mas pouco discutido, geralmente reduzido a uma tertúlia superficial sobre quem publica o que, aonde.

Os dois cientistas apresentados aqui têm bem mais em comum do que a Faculdade de Medicina da Bahia [VII], hoje integrada à UFBA. Ambos se dedicaram a doenças tropicais negligenciadas [VIII]; ainda que a anemia falciforme não se encaixe integralmente no perfil, muitos a consideram como tal [IX]. Negligenciadas são as “enfermidades que apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e em seu controle”, segundo o sítio da Fiocruz. Mas não são negligenciadas pelas universidades e institutos de pesquisa públicos. Independentemente da lista de suas listas de publicações, Pirajá da Silva e Jessé Acioly, contribuíram para o nosso “Raumgeist” – analogia espacial para “Zeitgeist”, nosso espaço de ciência. E aqui números passam a ser importantes. Se, por um lado, deveríamos nos atentar mais à história, por outro lado, olhar os indicadores revela outra dimensão. Uma busca por “Schistosomiasis” na já mencionada base Web of Science, mostra que a Fundação Oswaldo Cruz é líder absoluta em pesquisa dedicada a este tópico. “Sickle Cell Anemia” também coloca o Brasil em destaque no cenário mundial de pesquisa, atrás apenas dos EUA, Inglaterra e França.

Aproveitando a deixa sobre negligência logo acima, curto-circuito com a pesquisa do início deste texto: se negligenciamos a história da ciência, com a qual possivelmente entenderíamos algo sobre a construção presente, não há porque se espantar com a falta de informação do público em geral [X].

 



[I] ] https://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/CGEE_resumoexecutivo_Percepcao_pub_CT.pdf

[II] https://www.researchamerica.org/news-events/81-percent-americans-can%E2%80%99t-name-single-living-scientist

[III] Artigo de Cerqueira Galvão de 1959: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/119803

[IV] Uma história detalhada é contada no livro “Pirajá da Silva – vida e obra” de Itazil Benício dos Santos:

[V] https://revistapesquisa.fapesp.br/2016/08/19/a-sombra-da-historia/

[VI] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/quem-inventou-o-telegrafo-esquerda-direita-direita-direita-esquerda-direita

[VII] Faculdade na qual, entre outros, estudou também Nise da Silveira.

[VIII] https://agencia.fiocruz.br/doen%C3%A7as-negligenciadas

[IX] Is Sickle Cell Anemia a Neglected Tropical Disease?, Russell E. Ware, PLOS Neglected Tropical Diseases

[X] Quase ia esquecendo, a inspiração para falar sobre cientistas brasileiros veio de um podcast de Paulo Nussenzveig

 

 

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