Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Balanças, instrumentos do cotidiano, da ciência e contra o obscurantismo

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Novas direções na ciência são lançadas por novos instrumentos com muito mais frequência do que por novos conceitos.

Freeman Dyson

O historiador inglês Peter Burke, em seu livro “O que é história do conhecimento?”, comenta sobre as ferramentas de conhecimento, tanto as de grande quanto as de pequeno porte, de aceleradores de partículas aos computadores pessoais e, por que não, papel e lápis. Como exemplo cita que “as práticas de observação associadas à ‘revolução científica’ do século XVII dependeram de novos instrumentos científicos, principalmente dois: o telescópio e o microscópio”. Esses dois instrumentos de fato possibilitaram novas e fundamentais direções na ciência, mas igualmente importantes e menos lembradas são as balanças.

As balanças fazem parte do nosso cotidiano, seja no supermercado e na cozinha, ou para controlar nossa dieta. Elas estão entre os instrumentos mais antigos da humanidade e os primeiros indícios sobre seu uso remontam a quase cinco milênios no antigo Egito. Servem para medir a massa, ou seja, a quantidade de matéria nas coisas, tanto inanimadas, quanto animadas, comparando a força peso sobre uma coisa com essa mesma força sobre outra coisa. A força peso é devida à atração gravitacional da Terra, que é proporcional à massa do objeto pesado[1]. E como tudo no nosso planeta está submetido a essa força, na linguagem cotidiana chamamos de peso o que na verdade é a massa, dada em gramas, quilos ou toneladas. Em vez de descrever em palavras o que é uma balança, que afinal todos conhecemos, melhor seria usar a imagem abaixo do modelo mais antigo conhecido e que, aliás, ainda é utilizado.

Imagem de uma pintura em tecido. Na cena há três homens que têm máscaras de animais no lugar das cabeça. Eles usam saias e estão de pé observando a pesagem de objetos em uma balança. No centro da pintura há um leão sentado.
Ilustração de uma balança no “Livro dos mortos”, cerca de 1275 A.C. (Imagem: Wikipedia)

As balanças são usadas em muitas situações, mas demoraram para se tornar um instrumento científico. É provável que o mais antigo registro da balança na ciência seja o atribuído ao grande matemático, filósofo, físico, inventor e astrônomo grego Arquimedes de Siracusa (287 A.C – 212 A.C.). É a lenda do “eureka”, palavra que ele teria gritado, correndo pelado pelas ruas de sua cidade, ao perceber que o nível da água subia, quando ele entrava na banheira. A água deslocada, igual ao volume do tanto do corpo mergulhado nela, provoca uma “força de empuxo” em oposição à força peso. Coisas mais densas do que a água afundam totalmente, caso contrário, mergulham só um pouco e, portanto, flutuam. Arquimedes descreveu detalhadamente o empuxo, mas se ele de fato usou essa ideia e uma balança para ver se certa coroa real seria toda de ouro ou de prata folhada a ouro é algo que não aparece registrada em suas obras.

A história das balanças na ciência fica mais intensa, com uma multiplicação de exemplos, ao darmos um pulo de 1.800 anos, chegando à revolução científica do século XVII. Entre os tantos casos, podemos começar com a origem remota do uso da balança para controlar nossas dietas. O médico italiano Santorio Santorio (1561-1636) inventou a ‘balança-cadeira’ e, durante décadas, comparou o peso daquilo que ingeria com o daquilo que excretava (fezes e urina). Como o peso da comida e da bebida ingeridas era sempre maior do que das fezes e da urina, Santorio percebeu a importância da transpiração. Ele também foi o inventor do termômetro clínico e, com o conjunto da obra, é considerado o pai dos estudos quantitativos em ciências da saúde. 
 

Ilustração que mostra um homem sentado em uma grande balança.
Ilustração representando Santorio Santorio em sua balança-cadeira (Imagem: Wikipedia)

Enquanto o médico italiano se perguntava sobre o que viria a ser chamado de o metabolismo de seres humanos, um contemporâneo seu, o químico e médico Jan Baptista van Helmont (1580-1644) pensava também nas plantas, às quais dedicou um longo experimento de cinco anos de duração. Helmont plantou um salgueiro em um grande vaso e observou o seu crescimento, pesando regularmente a terra no vaso, a árvore e a água adicionada ao longo do tempo. Ao fim dos cinco anos a árvore pesava 74 kg e a quantidade de terra diminuíra em meros 57 gramas. Deduziu, portanto, que a massa da árvore viria da água e não do solo, como se pensava na época. Seriam necessários mais de 150 anos para se chegar à constatação de que esse resultado ainda era incompleto, pois não levava em conta a absorção de gás carbônico pela planta. Voltaremos a essa questão depois de um breve interlúdio sobre novas balanças e suas contribuições à ciência, fazendo jus à epígrafe acima. Por enquanto, vale mencionar que o trabalho de Helmont foi um dos pioneiros na área de estudos quantitativos de nutrição vegetal. O cientista belga, conectando a história ao personagem anterior, se interessou também pelo problema da digestão, mas isso é algo a ser tratado em outra oportunidade. Somente percebamos, agora, que as grandes questões da ciência sempre interessam a muitos. 

Ilustração em preto e branco que mostra um homem sentado. Ele usa um manto e está segurando uma garrafa de vidro.
Retrato póstumo de Jan van Helmont
(Imagem: Science Museum Group / Wikimedia Commons)

Na efervescente revolução científica do século XVII, que se estendeu ao século seguinte, novas balanças foram inventadas, agora diretamente para o bem da ciência. Uma delas devemos ao filósofo natural inglês Robert Hooke (1635-1703), figura-chave da revolução mencionada. Seus interesses eram múltiplos, entre eles o uso de um dos importantes instrumentos mencionados por Burke, o microscópio, com o qual compôs a magnífica obra com observações sobre o que é minúsculo, o livro “Micrographia”[2]. Mas suas contribuições são inúmeras, incluindo a astronomia e a física em laboratório e sua balança de mola, presente em todos os laboratórios de ensino de física, mais de três séculos após sua invenção. A balança compara a força elástica da mola com a força peso do que é pendurado nela. A ilustração, frontispício do artigo sobre o tema, mostra mais claramente do que se trata.

Foto de um livro aberto. Na página à esquerda há o desenho de uma balança.
Ilustração da balança de mola no livro “Micrographia (Imagem: Acervo The Royal Society)

A balança de mola pode medir o peso do que é pendurado nela, novo método para fazer o que era feito desde o antigo Egito. Por outro lado, conhecido o peso do penduricalho, é possível entender as propriedades mecânicas (no caso as propriedades elásticas) das molas (que servem para outros usos, como na suspensão de carros, invento que surgiria só muito tempo depois), tanto da configuração delas, quanto dos materiais de que são feitas. É ainda muito curioso, para entender os meandros das relações na ciência, o anúncio de sua descoberta:

 "Ut tensio, sic vis": "como a extensão, assim a força". A frase em latim é a solução do anagrama “ceiiinosssttuv”, com o qual Robert Hooke garantiu a prioridade intelectual de sua criação enquanto elaborava a descrição de experimentos e a elaboração de sua Lei de Hooke. O anagrama foi publicado em 1676 e a solução veio no artigo de 1678.

No entanto, foi apenas no século XVIII que se deu a invenção da minha balança preferida. A balança de torção, que mede outras forças como, por exemplo, a força que você aplica para torcer uma toalha lavada. Esse é exatamente o princípio básico no instrumento de John Mitchell (1724-1793), outro inglês que, além de cientista, foi clérigo. Em vez de uma toalha, o que era torcido era um fio que tinha uma haste equilibrada numa ponta. Nas extremidades das hastes eram acopladas, por exemplo, duas esferas iguais, e, assim, o instrumento continuava equilibrado. No passo seguinte, juntava-se uma segunda haste independente, que trazia em suas extremidades esferas bem maiores, que podiam ser aproximadas ou afastadas da haste com as esferas menores. Seja lá qual a força entre elas, ela torcia o fio, torção que podia ser cuidadosamente medida. Mas que força? Bem, com uma balança dessas o físico francês Charles Augustin de Coulomb (1736-1806) mediu a força elétrica entre cargas elétricas, eletrificando as esferas da balança, o que levou à lei que leva seu nome. Talvez mais impressionante tenha sido o experimento de Henry Cavendish (1731-1810), físico e químico inglês que mediu a força de atração gravitacional entre as esferas menores da balança e as maiores da outra haste. Mas essa força é muito, mas muito pequena mesmo, e o instrumento precisou ser bastante aperfeiçoado, como podemos verificar na ilustração da balança desenvolvida pelo cientista inglês.

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Balança de torção de Cavendish (Imagem: Wikipedia)

Vemos na ilustração a haste com as esferas pequenas e a haste independente com as bolas grandes. O sistema de polia para aproximar as esferas, o rígido e maciço suporte e o invólucro do equipamento. Qualquer vibração, corrente de ar ou variação de temperatura atrapalhavam a medida. Por isso, o cientista ficava do lado de fora e observava a torção do fio pelas lunetas que aparecem no esquema. Cavendish mediu dessa forma, nada mais nada menos, que a atração gravitacional entre as esferas (grandes e pequenas) e, com isso, determinando a força peso que a Terra exerce sobre as esferas menores, podia achar a relação entre a massa das esferas grandes do experimento e a massa... da Terra. Portanto, Cavendish “pesou” nosso planeta e determinou sua densidade!

É preciso olhar também Henry Cavendish como químico que se insere em uma longa cadeia de cientistas e seus estudos sobre as descobertas de diferentes gases e a composição do ar que respiramos. Essas descobertas envolviam também pesar os gases e o ar com balanças. Um dos pontos culminantes veio com Antonie-Laurent Lavoisier (1743-1794), que conhecia, aliás, a importância do trabalho de seu colega inglês. Pesando as coisas, ambos descobriram de forma independente um do outro que a água não é um elemento químico, mas sim uma substância composta de hidrogênio e oxigênio, este identificado por Joseph Priestley (1733-1804), outro importante elo na longa cadeia mencionada acima. Com a ajuda das balanças, Lavoisier estabeleceu a lei de conservação da massa, pesando reagentes antes de uma reação química e seus produtos após essa reação. Quando pincelamos com apenas um pouco de história as aulas de química ou física, esquecemos que grandes ideias ou descobertas são, em geral, feitas paralelamente por outros cientistas que não se tornam tão famosos. No caso da conservação da massa, temos que lembrar o russo Mikhail Vasilyevich Lomonosov (1711-1765), outro cientista de múltiplos interesses, que enunciou a lei de Lavoisier de forma mais ou menos semelhante[3]. Mas o tema deste texto são os instrumentos da ciência, ou seja, as balanças, e quais delas Lavoisier usou em seu laboratório para pesar os gases. A ilustração abaixo aparece em seu “Tratado Elementar de Química” junto a várias outras desenhadas por sua assistente e esposa, Marie-Anne Paulze Lavoisier, desenhos aos quais se deve muito da inteligibilidade do livro de seu marido[4] para os leitores da época.

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Balança no laboratório de Lavoisier para pesar gases (Imagem: Projeto Gutemberg)

Muitas outras contribuições das balanças para a ciência nesses séculos incríveis poderiam ser descritas, mas o espaço se esgota. Descobertas cujas histórias não deixam nada a desejar em relação aos filmes de suspense. Como um possível roteiro, deixando de lado a história da pesquisa sobre respiração humana lá no laboratório de Lavoisier (usando balanças, claro), poderíamos citar a história da descoberta da fotossíntese, que começou com a nutrição de plantas de Jan van Helmont para chegar ao século XIX com os experimentos de Nicolas Théodore de Saussure (1767-1845), fisiologista suíço que, pesando plantas, água e o ar nos recipientes, na presença de luz ou não, determinou que, além da água e alguns nutrientes presentes na terra, o gás carbônico da atmosfera completaria a charada sobre a nutrição das plantas. Para quem quiser montar o quebra-cabeça dessas aventuras científicas, um bom caminho é vasculhar os verbetes relativos aos cientistas mencionados aqui, que sempre conectam os nomes de uns com os dos outros.

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Ilustração da pesagem de mulheres de Oudewater (Imagem: Portal The Memory)

Por fim, é preciso mencionar o uso de balanças contra o obscurantismo e a negação da ciência. Voltemos às casas de pesagem para venda e compra de produtos na Europa da Idade Média. Era uma época em que se acreditava que bruxas teriam que ser muito leves para poderem voar com suas vassouras. Portanto, em alguns lugares, mulheres acusadas de bruxaria eram acolhidas e pesadas para avaliar sua suposta condição de bruxa. A casa de pesagem de Oudewater na Holanda levava os pesos e medidas a sério, tendo salvado muitas mulheres da fogueira ao mostrar que as "bruxas" tinham o mesmo peso das não-bruxas.

Balanças são, portanto, ferramentas de conhecimento e já foram diretamente responsáveis por salvar vidas. Ao longo de sua história foram ficando cada vez mais precisas, agregaram a eletrônica, analógica e digital, e são onipresentes nos laboratórios. E novas balanças foram sendo inventadas, uma delas pouco tempo atrás, e ironicamente, para definir melhor o quilograma, unidade de medida de massa[5]. A história da ciência pode ser vista por meio de seus instrumentos. E passei a lembrar disso toda vez que vou ao supermercado.


[1] Não custa lembrar que é exatamente devido a essa proporcionalidade que, se as soltarmos juntas, uma bola de futebol e uma de boliche caem com a mesma aceleração e batem no chão ao mesmo tempo.

[2] https://royalsociety.org/blog/2020/07/micrographia-online/

[3] Outro aspecto pouco destacado, quando estudamos ciência, é que descobertas são sempre replicadas, para verificar se de fato são válidas. No caso da lei de conservação das massas, a mais conhecida replicação é a realizada pelo químico Hans Heinrich Landolt (1831-1910) no começo do século passado.

[4] https://www.gutenberg.org/ebooks/52489 

[5] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/varios-pesos-muitas-medidas

 

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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