Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

300 mil: o descaso e o deboche

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Descaso e deboche, cúmplices das três centenas de milhares de mortes. Não há outra palavra, cúmplices, quando não mandantes. Exemplos de como proceder em favor da vida, informações e apelos não faltaram durante todo esse ano. Restou virar como se podia em cada rincão do país, virar-se enfrentando as franquias do descaso e do deboche, nutridos pela desinformação e seu entulho: a negação; a banalização; o contínuo desprezo pelas máscaras, adornos de “maricas”, e pelo distanciamento social, coisa de “covardes”. Trocando o certo pelo errado: a ilusão cruel do tratamento precoce. Tratamento repetida e exaustivamente sob escrutínio da ciência, que repete sua conclusão: é ineficaz. E perigoso. Além da ilusão, que acaba levando a óbitos pela Covid-19, a falsa proteção dissemina ainda mais o vírus e suas variantes e hoje a automedicação cobra sua conta: recuperados ou não da Covid-19, os enganados (ou que se deixaram enganar) baixam aos hospitais com as dramáticas consequências, esperando agora por transplantes, necessários pelo uso indiscriminado e irresponsável do “kit covid”. Irresponsavelmente propalado por pusilânimes, que agora se dizem a favor da vacina. Vacina contra a qual até ontem se posicionaram, também com deboche e descaso.

300 mil e a conta será ainda maior com o total descontrole da pandemia. Conta já paga à vista por 300 mil e em prestações pelos outros cerca de 210 milhões desamparados nesse país. Ou seja, nós. Governos do mundo se debruçaram sobre o problema, aprenderam e, infelizmente, relaxaram, quando não deviam. Mas reconhecem erros e assumiram responsabilidades e voltaram a enfrentar o problema, infelizmente ampliado. Aqui pouco se fez e muito se sabotou, erros não foram reconhecidos, nem responsabilidades assumidas: e daí, o que querem que eu faça? Não se quis tomar conhecimento da falta de oxigênio nos hospitais, mas se fez questão de debochar da falta de ar de quem morria nas filas. Deboche em imagem gravada e disseminada, alto e bom som, por quem, com o deboche, causa mortes.  

300 mil foram necessárias para o anúncio de um comitê de crise. Comitê 300 mil mortes atrasado, um ano inteiro adiado. Incrédulos nos perguntamos se é para enfrentar mesmo o problema ou criar outra cortina de fumaça e seguir com o deboche e o descaso. No meio da urgência, reuniões são anunciadas, mas não para ontem, só para depois de amanhã. O que nos resta é a obscena realidade em que ações não coordenadas, como deveriam ser, trazem só aos poucos as vacinas, por tanto tempo debochadas por quem hoje finge que as defende. Mas são as palavras e imagens passadas que não permitem a chancela de credibilidade do que passa a ser dito a contragosto. A realidade é cruel, alimentada pela estulta realidade paralela dos acólitos da desumanidade.

Em todas as colunas que escrevi, procurei articular diferentes ideias, buscar referências a outros exemplos. Hoje não, não é possível. Não há ideias que ainda possam ser articuladas com o que se vê, não há referências a algo remotamente parecido com o que testemunhamos e sofremos. Há apenas a indignação com o desrespeito e descaso a todas as referências, dados e ideias apresentados por tantos colegas dentro e fora das universidades, em instituições que prezam a vida. Há a indignação pela realidade alternativa das fake News, que seguem matando no nosso Brasil real. Há perplexidade com o grau da tragédia, de como isso se tornou possível, embora se saiba bem como. Na espera de que algo mude de fato nesse país, antes que morram outros 300 mil, o repúdio aos responsáveis por termos alcançado os primeiros 300 mil. É hora de um pacto, a começar por todos dizendo basta. Que caia esse castelo de cartas da realidade paralela desumana, que os jogadores desse truco letal vendem e que tantos ainda aceitam.

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