Marcos Lopes

Marcos Lopes é professor doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e coordenador da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp (SEC). marcoslo@unicamp.br

Marcos Lopes é professor da Área de Literatura Portuguesa e Brasileira, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp). É pesquisador de temas relacionados à secularização, espiritualidade e poesia. É um dos coordenadores do Centro de Estudos Literários, Teorias do Fenômeno Religioso e Artes (CELTA).

A escola dos homens e a Igreja de Cristo

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Nu entrei neste mundo, e nu hei de sair dele, dizia Jó, e assim saíram o bom e o mau ladrão. Pois, se assim há de ser, queirais ou não queirais, despido por despido, não é melhor ir com o bom ladrão ao Paraiso, que com o mau ao inferno?  António Vieira, Sermão do Bom Ladrão (1655)

No dia 02 de outubro, acompanhei um amigo à Escola Sud Mennucci de Piracicaba. Fiquei, por alguns minutos, esperando-o retornar da sala de votação. Reparei no teto, nas fachadas e nos corredores dessa escola. Um pouco casmurro, por conta do clima beligerante do pleito eleitoral, pensei: a educação de base foi importante. Um prédio de uma escola era tão solene quanto o de uma igreja. E, não por acaso, os corredores da escola guardavam, na disposição arquitetônica, a sensação de infinito. Houve um tempo, na história do Brasil, em que a escola pública, restrita à população branca e à classe média, orgulhava-se da sua arquitetura, do espírito de corpo de seus membros e dos resultados pedagógicos, sempre duvidosos aos olhos dos pesquisadores atuais.

 Para esses pesquisadores, era uma escola para poucos, excludente, ultrapassada em seus métodos e incapaz de promover a autêntica mudança social. A verdadeira escola residiria não em um passado monumental, mas em um futuro incerto, grávido no aqui e agora das teorias sociais em disputa, nas feridas abertas de uma população excluída e simbolizada na figura do patrono brasileiro da educação: Paulo Freire.

Dessa escola monumento só restou a memória viva de poucos professores e alguns prédios que tiveram a sorte de serem conservados. Fato curioso é que a história de sua destruição se deu justamente no período do governo militar. A universalização do ensino fundamental e médio foi obra desse período e, por uma ironia dessas do destino, coube aos pesquisadores progressistas registrarem esse projeto de destruição, ao mesmo tempo que suas pesquisas colocavam sob suspeita os valores dessa velha escola pública. Afinal, restrita a uma parcela da população, a excelência dos antigos professores e de seus alunos ratificava apenas o perfil elitista da educação pública das décadas de 1950 e 60.

Deixemos por ora a evocação desse passado ainda insepulto. E prestemos atenção no fato de que, atualmente, as críticas feitas à universidade pública são semelhantes. Da parte de uma elite letrada e alinhada às pautas progressistas, a universidade pública é excludente; no máximo, é uma ilha de excelência formada por gente branca de costas para a realidade brasileira. É óbvio que não é toda universidade que está contaminada por essa insensibilidade social. Sinal inconteste disso foi a adoção da política de cotas a partir da lei federal, em que pesem as resistências de praxe dos nossos conservadores.

Contudo, essa sensibilidade, presente no interior da universidade, é compreendida como resultado das lutas sociais dos movimentos negros. Sem a organização desses grupos, o pouco que se avançou não existiria como realidade desafiadora para as novas gerações de estudantes que chegam anualmente ao ensino superior. Insuficiente em suas políticas de inclusão para os movimentos sociais ou decadentes para conservadores, uma vez que para esses últimos as universidades são fábricas de gente imoral e comunista, o que resulta dessa polaridade é que as universidades públicas têm dois inimigos: um interno (as corporações ou coletivos que vivem com o dedo em riste para o que ela acumulou) e um externo (setores da direita e da classe média que batem em retirada do espaço acadêmico, alegando a queda do nível intelectual e científico).

Há de fato, no momento atual, um país cindido em razão de projetos políticos distintos. Ao neoconservadorismo nacional, estribado nos lemas “pátria, família e Deus”, contrapõe-se o progressismo internacional, cujas palavras de ordem são inclusão social, sustentabilidade e democracia. Cada um desses projetos luta para provar sua superioridade moral. Contra o suposto banditismo emergem a lei, o crucifixo e a bala. Contra o fascismo dos trópicos, a civilização das boas consciências e a lembrança da dívida impagável aos oprimidos. 

No cristianismo de resultados, os bandidos, que foram crucificados ao lado de Cristo, são recalcados. Há pregação de pastor e exegese de padre que não percebem o fato mais chocante: Cristo foi crucificado ao lado de dois bandidos (a direita e a esquerda). Eram bandidos, segundo o evangelista; apenas um se arrependeu. Mas a humilhação de Cristo é somente sua. As almas puras da religião atual entendem que já estão salvas porque acolheram Cristo em seus corações. Nossos progressistas gozam de uma vantagem: não acreditam que estão salvos. Não, pelo menos enquanto durar o sofrimento alheio.

A diferença entre uma fé idólatra e uma outra simbólica é que essa última suporta o silêncio de Deus, ao passo que a primeira crê que orar é gritar; como se o silêncio derivasse da surdez de Deus e não de sua infinita liberdade. A escola dos homens fracassou, seja como projeto elitista ou igualitário. A igreja de Cristo se multiplicou. Abdicou, como a escola, de prédios duradouros ou de professores formados a longo prazo. Dos ministros da palavra ou dos pastores exige-se pouco estudo, alguma fé e robustos resultados.

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