Prof. Luiz Carlos Dias | Foto: Antonio Scarpinetti

Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.

Coalizão Covax e a disputa mundial pelas vacinas contra Covid-19

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A coalizão Covax, uma aliança global envolvendo 156 países e territórios (contemplando cerca de 70% da população mundial) foi criada para acelerar o desenvolvimento, a produção e o acesso equitativo e igualitário aos testes, tratamentos e vacinas contra a Covid-19. A Covax defende que vacinas eficazes e seguras contra a Covid-19 sejam acessíveis à todas as populações vulneráveis em países de renda baixa. Esta coalizão internacional foi idealizada pela Oorganização Mundial da Saúde (OMS), pela Aliança Global de Vacinação (Gavi) e pela Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi).

A OMS, que criou o mecanismo Access to COVID-19 Tools (ACT) Accelerator em abril de 2020 (que tem como objetivo a produção de 2 bilhões de doses de vacinas, 245 milhões de medicamentos e 500 milhões de testes), afirma que a Covax tem 9 candidatas vacinais em testes clínicos de fase 2 ou 3 em seu portfólio e que todos os países que apoiam a coalizão vão compartilhar os riscos inerentes ao desenvolvimento das vacinas. Apesar de participarem da Coalizão Covax, muitos países já asseguraram doses para suas populações, de forma individual. O Brasil aderiu à iniciativa no último dia 18/9/2020. Estados Unidos e China não aderiram ao acordo. As regras estipulam que os países de renda média como o Brasil, têm que pagar pela vacina dentro do consórcio e que apenas cerca de 95 países de renda baixa, que não tem acesso a acordos bilaterais, teriam acesso gratuito.

Um artigo publicado no dia 3 de setembro de 2020 na revista Science questiona o modelo global que a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs para a distribuição de vacinas contra a Covid-19
"Um artigo publicado no dia 3 de setembro de 2020 na revista Science questiona o modelo global que a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs para a distribuição de vacinas contra a Covid-19"

Por outro lado, um grupo de países e territórios ricos comprou cerca de 51% das 5,303 bilhões de doses prometidas pelas empresas que desenvolvem e fabricam as cinco principais candidatas vacinais contra a Covid-19. Considerando a necessidade de aplicação de duas doses, essas 5,303 bilhões de doses seriam necessárias para vacinar cerca de 2,651 bilhões de pessoas ou cerca de 35,4% da população mundial, longe do ideal. Um relatório da ONG Oxfam divulgado no dia 16/09/2020 mostra que estes países adquiriram cerca de 2,704 bilhões de doses. Estes países representam apenas 13% da população mundial e negociaram com as empresas que detém as candidatas vacinais em fases de testes clínicos mais avançados: AstraZeneca, Gamaleya/Sputnik, Moderna, Pfizer e Sinovac. Se duas doses por pessoa forem necessárias, com essas 2,704 bilhões de doses dá para imunizar cerca de 1,352 bilhões de pessoas, mas vão sobrar alguns milhões de doses. Somos cerca de 7,5 bilhões de pessoas no planeta e apenas cerca de 13% da população, ou pouco menos de 1 bilhão de pessoas está nestes países ricos.

Os países são os Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia, Hong Kong, Macau, Japão, Suíça e Israel. As 2,599 bilhões de doses restantes, que vão ser utilizadas em duas doses por 1,288 bilhões de pessoas foram prometidas para India, Bangladesh, Brasil, Indonésia, China, México e outros. Se considerarmos que todas as candidatas destas 5 empresas sejam aprovadas em fase 3, cerca de 64,6% da população mundial não terá acesso a estas doses iniciais. Como é muito provável que nem todas as 5 sejam aprovadas, o número de pessoas sem acesso será ainda maior. As vacinas deveriam ser consideradas bens públicos e deveriam ser distribuídas gratuitamente, com base nas necessidades de cada país, mas para isso as empresas farmacêuticas teriam que permitir que fossem produzidas compartilhando as patentes, em vez de proteger seus monopólios e vender em função das ótimas propostas que recebem.

Um artigo publicado no dia 3 de setembro de 2020 na revista Science questiona o modelo global que a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs para a distribuição de vacinas contra a Covid-19. O plano da OMS, como  instituição supranacional, prevê que cada país receba um número de doses proporcional à sua população, iniciando com cada país recebendo vacinas para aplicação em 3% da população até atingir o total de 20%, priorizando ainda países com maior número de profissionais de saúde na linha de frente e com maior proporção da população idosa, pessoas com diabetes, hipertensão e com comorbidades que causam mais mortes em caso de infecção.

Um modelo de distribuição de vacinas de maneira justa e equitativa deve beneficiar as pessoas, minimizando danos e mortes, priorizando as populações mais vulneráveis
"Um modelo de distribuição de vacinas de maneira justa e equitativa deve beneficiar as pessoas, minimizando danos e mortes, priorizando as populações mais vulneráveis"

Apesar de ser uma estratégia justa, o questionamento é que países em situação diferente em termos da pandemia, com maior taxa de transmissão comunitária, número de casos e mortes prematuras deveriam ter prioridade. Outro ponto importante levantado é que países de renda baixa têm uma população idosa menor e uma proporção reduzida de profissionais de saúde em comparação com os países de renda mais alta, o que acentuaria as desigualdades. Um modelo de distribuição de vacinas de maneira justa e equitativa deve beneficiar as pessoas, minimizando danos e mortes, priorizando as populações mais vulneráveis.

É preciso esperar pelo fim dos estudos de fase 3 para informações sobre eficácia das vacinas? 

A resposta é SIM, mas um estudo preliminar de eficácia pode ser realizado antes, quando tiver sido detectado um determinado número de infectados entre os milhares de voluntários sendo testados. Lembro que a fase 3 envolve estudos randomizados, com grupo placebo e duplo-cego, o que significa que nem os médicos e pesquisadores aplicando as candidatas vacinais e o placebo sabem quem é quem e nem os pacientes sabem se tomaram a candidata vacinal ou o placebo, que se parece com a candidata vacinal, mas não é. Todos os voluntários nos dois grupos estão sujeitos à infecção, embora estejam mantendo as medidas não farmacológicas de proteção como o uso de máscaras, hábitos de higiene, uso de álcool-gel etc.

Como na sua maioria são profissionais da saúde, todos estão expostos ao contágio pelo vírus. Aí vem a estratégia e os protocolos de pesquisas, que são ligeiramente diferentes para cada candidata vacinal. Mesmo que estejam sendo avaliados cerca de 30 mil voluntários para uma determinada candidata vacinal em fase 3, todos estão passando por acompanhamento, avaliação periódica e testagem contra a Covid-19. O ensaio clínico é fechado e mantido em segredo, mas quando um determinado número de infectados por Covid-19 for relatado, tipo surgirem as primeiras X pessoas com Covid-19 confirmada por exames clínicos e por RT-PCR, o estudo será aberto temporariamente naquele momento para identificar em que grupo essas X pessoas infectadas estão, se no grupo que tomou a candidata vacinal ou se no grupo placebo. Por exemplo, a Pfizer vai abrir seus estudos e fazer análises intermediárias quando tiver grupos de 32, 62, 92, 120 e 164 casos positivos para a Covid-19.

A Moderna fará dois estudos preliminares, com 53 e depois com 106 infecções e vai concluir quando atingir 151 voluntários infectados. A AstraZeneca, aparentemente, fará apenas um estudo intermediário quando atingir 75 pacientes infectados. Se no primeiro estudo da Pfizer, por exemplo, todos os 32 voluntários infectados estiverem no grupo placebo, isso sugere que a candidata vacinal oferece 100% de proteção. Se 16 voluntários infectados estiverem no grupo placebo e 16 no grupo que tomou a candidata vacinal, a proteção será de 50%, o limite mínimo de eficácia mínimo aceitável pela OMS, que não é o adequado e não serve para controlar a transmissão, mas que pode servir para aplicar em grupos de risco, atenuando a gravidade da doença. Quanto maior o percentual de pessoas infectadas no grupo placebo, que não tomou a vacina, em comparação ao percentual de infectados no grupo que tomou a candidata à vacina, melhor e maior será a proteção vacinal. Isso deve ser refeito posteriormente com um grupo maior, tipo quando 62 pessoas forem infectadas, até chegar a 164 pessoas, enquanto se espera o fim dos ensaios, após pelo menos 1 ano.

É preciso muito cuidado e responsabilidade com a aprovação emergencial de uma vacina, pois pode ser um desastre para o controle da pandemia e servir para a aumentar a descrença da população em vacinas, dando força aos movimentos antivacinas.
"É preciso muito cuidado e responsabilidade com a aprovação emergencial de uma vacina, pois pode ser um desastre para o controle da pandemia e servir para a aumentar a descrença da população em vacinas"

Após essas análises preliminares, no caso de proteções em torno de 50% ou maior, as empresas podem adiantar a distribuição do imunizante e solicitar a autorização para uso emergencial. Claro que problemas com segurança podem sempre surgir à medida que mais e mais pessoas vão sendo vacinadas e o ideal seria priorizar a ciência, o rigor científico e a ética, esperando o fim dos ensaios clínicos em fase 3, ao invés de autorizar uso emergencial. O ideal seria evitar os atalhos e a pressão política, para ter tempo suficiente para determinar com todo o rigor científico necessário e com muita transparência, a eficácia e a segurança da candidata vacinal sendo testada. Um efeito adverso grave e raro, ocorrendo para uma pessoa a cada 100 mil pessoas, detectado após a aprovação da vacina e início da vacinação em massa da população, seria muito.

No Brasil, com 212 milhões de habitantes, considerando que todos fossem vacinados, seriam aproximadamente 2.120 eventos graves. Não é aceitável. O ideal seria zero efeitos adversos graves ou no máximo 1 efeito adverso grave a cada 10 milhões de habitantes, o que no Brasil levaria a 21 destes eventos graves, se todos fossem vacinados. Por isto a importância de uma fase 3 com muitos milhares de pessoas, de diferentes faixas etárias, comorbidades, sexo, camadas sociais, etnias, países, grupos bem diversos, heterogêneos de pessoas, que forneçam uma ideia do mundo real. É preciso muito cuidado e responsabilidade com a aprovação emergencial de uma vacina, pois pode ser um desastre para o controle da pandemia e servir para a aumentar a descrença da população em vacinas, dando força aos movimentos antivacinas.

Nunca fizemos ciência em tempo real, com os resultados sendo divulgados na mídia todos os dias como em tempos de Covid-19. Não custa nada lembrar que quando alguém anuncia cerca de 98% de eficiência de uma candidata vacinal em fase 2, isto quer dizer que ela foi capaz de dar uma resposta de produção de anticorpos em 98% dos voluntários testados, esta é a taxa de soroconversão, mas não quer dizer que vai oferecer uma eficácia de proteção de 98%. Só os resultados de fase 3 vão nos dizer se a candidata vacinal terá eficácia para impedir a infecção e a transmissão pelo Sars-CoV-2, oferecendo imunidade esterilizante e proteção total contra a infecção ou se vai apenas minimizar a infecção, transformando a Covid-19 naquela tal gripezinha, impedindo os casos mais graves de Covid-19 no organismo. Importante salientar que a eficácia de uma vacina também não é igual em todas as populações e diferenças genéticas entre etnias na população podem levar a respostas imunes diferentes, por exemplo, considerando os povos indígenas.

Uma nova candidata no cenário - UB-612

A rede de laboratórios clínicos Dasa estabeleceu uma parceria com a Covaxx (divisão da United Biomedical) para testar uma nova candidata vacinal, a UB-612) em cerca de 3 mil voluntários. O imunizante usa como antígeno uma plataforma baseada em um peptídeo, uma biomolécula pequena composta de aminoácidos, que de certa forma tem semelhança com a estrutura de proteínas do Sars-CoV-2 e funcionaria como antígeno. A segurança em fase 1 está sendo testada em Taiwan e o Brasil vai participar de ensaios de fase 2 para avaliar a imunogenicidade, verificando a capacidade de induzir produção de anticorpos neutralizantes e resposta celular, assim como a eficácia em fase 3, verificando a capacidade de proteção efetiva contra o vírus. Os ensaios clínicos de fases 2 e 3 serão bancados pela Dasa, pelo grupo Mafra Hospitalar, pela empresa MRV, pela locadora de veículos Localiza e pelo Banco Inter. A candidata vacinal da Covaxx é a sexta a entrar em testes clínicos no Brasil, junto a da AstraZeneca/Universidade de Oxford, a da Sinovac, a do Instituto Gamaleya, a da multinacional Pfizer e a da Johnson & Johnson.

Potencial da vacina BCG contra a Covid-19

Em parceria com o Instituto de Pesquisa Infantil Murdoch da Austrália e com apoio da OMS, a Fiocruz vai testar a vacina BCG (Bacillus Calmette-Guerin) em 3.000 profissionais da área de saúde, para investigar possível efeito de proteção contra a Covid-19. A vacina BCG, usada para prevenir formas graves da tuberculose será testada em cerca de três mil profissionais da área da saúde no Mato Grosso Sul e no Rio de Janeiro, que nunca contraíram Covid-19. A tuberculose também é transmitida de pessoa a pessoa e aglomerações são o principal fator de transmissão. Como ainda não temos comprovação de que a BCG é eficaz contra a Covid-19, as pessoas não devem tomar a vacina acreditando que possa evitar a infecção pelo Sars-CoV-2, o que poderia levar a uma falsa sensação de segurança.

O futuro da pandemia da Covid-19 neste planeta dependerá de uma ou mais vacinas eficazes e seguras, do combate ao negacionismo científico e aos movimentos anticiência e antivacinas, da capacidade de distribuição das doses de vacinas para todas as populações e de campanhas de conscientização bem planejadas, levando a alta adesão da população às futuras vacinas. E para isso, no Brasil, vamos precisar de grande articulação pelo Governo Federal, pelos Governos Estaduais e pelos municípios.
"O futuro da pandemia da Covid-19 neste planeta dependerá de uma ou mais vacinas eficazes e seguras, do combate ao negacionismo científico, da capacidade de distribuição das doses de vacinas para todas as populações e de campanhas de conscientização bem planejadas"

Vacinar é preciso e para viver é necessário

Sem respeito ao meio ambiente, não adianta só torcer para que vacinas sejam desenvolvidas a toque de caixa, é um jogo que começamos perdendo de goleada. O Sars-CoV-2, vírus que causa a Covid-19, abalou o mundo moderno. Vejam como é caótico o cenário em um mundo com uma doença como a Covid-19 e sem vacinas. Então pare por um momento, um momentinho apenas, feche os olhos e tente imaginar como seria este mundo como o conhecemos, sem vacinas. Um mundo sem vacinas, mas com doenças como varíola, poliomielite ou paralisia infantil, coqueluche, sarampo, catapora ou varicela, difteria, febre amarela, tétano, rubéola, diarreia por rotavírus, caxumba, meningite, otite, tuberculose, hepatites A e B, HPV, Infecção por HiB (Haemophilus influenzae tipo B), influenza, doença meningocócica C, pneumonia causada por pneumococo, raiva, herpes zoster e leishmaniose canina. Tente imaginar se estaríamos aqui se não tivéssemos vacinas para essas doenças.

Agora abra os olhos e mantenha sua carteira de vacinação e a de seus filhos em dia e VACINE-SE contra a Covid-19 quando uma vacina estiver aprovada e disponível. Se tivermos uma vacina aprovada em fase 3, ela será segura e eficaz e a população poderá tomar em segurança, independentemente se a vacina está sendo testada em fase 3 no Brasil ou não, pois o nível de exigência e o rigor para aprovar será elevado. Espalhe informações corretas e defenda a necessidade de vacinação para seus amigos, familiares e seus contatos e ajude a combater a desinformação, as mentiras, o discurso de ódio dos grupos obscurantistas, as fake news e o enorme desserviço para a saúde pública prestado pelos movimentos antivacinas e pelo negacionismo científico.

É fundamental usarmos a tecnologia e as mídias sociais para espalhar informações corretas, manter a população bem informada, segura e confiante na ciência e na importância das vacinas, combatendo a infodemia, a desinformação, o movimento antivacinas, as agendas alternativas de grupos, de indivíduos e dos negacionistas científicos, que não respeitam a vida e violam os direitos humanos. Respeitar a vacinação é uma questão de responsabilidade social, empatia e respeito à vida. Viver é preciso, vacinar também é preciso.

Futuro da Covid-19 e de novas pandemias

O futuro da pandemia da Covid-19 neste planeta dependerá de uma ou mais vacinas eficazes e seguras, do combate ao negacionismo científico e aos movimentos anticiência e antivacinas, da capacidade de distribuição das doses de vacinas para todas as populações e de campanhas de conscientização bem planejadas, levando a alta adesão da população às futuras vacinas. E para isso, no Brasil, vamos precisar de grande articulação pelo Governo Federal, pelos Governos Estaduais e pelos municípios. Serão fundamentais a eficácia das vacinas em proteger e imunizar as pessoas, a duração da resposta imunológica às vacinas, a imunidade natural que pessoas infectadas por Covid-19 adquiriram e as características dos casos de reinfecção pelo Sars-CoV-2, que quando ocorrerem, esperamos sejam mais leves que a primeira infecção.

E que possamos aprender enquanto sociedade, pois mudanças climáticas, queimadas, o desmatamento de nossas florestas tropicais, a caça, o tráfico e o consumo de animais silvestres, a falta de saneamento básico, de água potável e de esgoto tratado, serão diretamente responsáveis pelo surgimento e espalhamento de novas epidemias e pandemias. Há milhares de vírus, micróbios, parasitas, que vivem em equilíbrio em seus ecossistemas, mas que em virtude da destruição de seus habitats naturais vão inevitavelmente migrar para zonas rurais e urbanas. Há também necessidade urgente de um controle sanitário mais rígido nas fronteiras, portos e aeroportos e definitivamente, é crucial fechar todos os mercados e postos de venda e consumo de animais vivos.

Observação : Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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