Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

A compaixão em tempos de acirramento

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Ilustra: luppa SilvaEmoções intensas e uma profusão de sentidos nos marcam a cada tragédia política e social que nos circunda. As catástrofes naturais, as violências cotidianas e o modo corriqueiro como vidas são ceifadas no trânsito, nos deslizamentos de terras, em ataques terroristas e toda ordem de ação reposicionam perguntas desconcertantes: por que e como aconteceu? E, no limite, por que não comigo? Por que uns pagam pelo infortúnio de uma casualidade, de uma época ou de um estado de decomposição social e ético no lugar de outros?

As execuções de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março, no Rio de Janeiro, causaram comoção e movimentaram o acirramento existente nas redes sociais em um país polarizado. O contexto de intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro, as pressões políticas de um tabuleiro eleitoral complexo e esvaziado de representatividade, a sensação de impotência dos cidadãos foram o pano de fundo para que se disputas estéreis e, muitas vezes, insensíveis com as vidas perdidas.

O caso de Marielle, quando comparado a outros crimes e execuções, estampa em nossos rostos o modo como a compaixão é variável e seletiva. Os que procuraram atacar a vereadora executada, militante negra e defensora dos direitos humanos, associando-a a supostos grupos criminosos é de uma perversidade inominável. As tentativas de comparar a execução a outros crimes semelhantes e, por isso mesmo, naturalizá-lo como um fato usual são estarrecedoras. A vida de Marielle, claramente, não tem um valor superior às demais vítimas. Mas a condição que produziu sua morte tem um impacto político e social mais amplo ao ponto de merecer ampla cobertura midiática e suscitar imensas polêmicas.

Foto: Tânia Rêgo | Agência Brasil
Flores para Marielle Franco e Anderson Gomes nas escadarias da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro; a frase “quem vive grita contigo” faz menção à canção “Menino”, composta por Milton Nascimento e Ronaldo Bastos em homenagem ao estudante Edson Luis de Lima Souto, secundarista morto pelas forças da ditadura militar em 1968

O sofrimento do outro e o reconhecimento da condição de vítima são aspectos complexos em sociedades midiatizadas. A compaixão existe no espaço e nas condições em que nos sentimos vulneráveis. Não por acaso, o assassinato de Marielle, fez que muitos lembrassem das estatísticas referentes à juventude negra, maior vítima da violência estrutural do Brasil. Tudo o que aconteceu com ela poderia acontecer a muitas outras pessoas, mas não com todas as pessoas.

Os sentimentos públicos são produzidos a partir da imediata solidariedade com as vítimas e com a ideia de sofrimento que nos ronda. Todavia a sensação nem sempre é suficiente. Nas sociedades democráticas, em tese, o princípio da igualdade perpassa as relações sociais e políticas e, dessa forma, as pessoas tenderiam a se colocar no lugar do outro e construindo uma relação de empatia. Na prática, embora a igualdade seja um mantra repetido e oficializado pela legislação, as pessoas constroem vínculos e nexos mais complexos que perpassam as noções de pertencimento – familiar, social, econômico etc. Os sentimentos, portanto, são sentimentos de si mesmo: a humanidade que me afeta é aquela à qual pertenço. E as lutas que me mobilizam são aquelas das quais compartilho ou, ao menos, não nutro alguma aversão.

O desafio que emerge nessa condição é uma forma de perguntar: que espécie de sociedade e de princípios democráticos estamos tentando construir a partir de nossas condições históricas? Cada pessoa deve responder publicamente sobre seus vínculos e sua forma de expressar consentimento diante das tragédias que nos abatem a cada dia. O individualismo, característico das sociedades ocidentalizadas, não é a única condição que temos. A solidariedade e o dever de testemunhar sobre as diferenças e as singularidades são perspectivas igualmente fundantes do repertório de sociedades republicanas e democráticas.

O autoritarismo da sociedade brasileira é bem conhecido, tal como a lógica de exclusão e de desigualdades históricas.  Quando, diante de tragédias pontuais e constantes, a sociedade se enfrenta, é uma oportunidade para se perguntar sobre os caminhos que foram e que continuam a ser escolhidos.  A compaixão deve ser cultivada, mas não podemos ficar aprisionados a uma divisão artificial entre indivíduos de “boa consciência” e os que acusam o outro lado de “uso político” da dor alheia. Não basta fazer uma postagem nas redes sociais para explicitar sua visão e sentimento no atual contexto.

É necessário ultrapassar a questão e pensar a partir de uma reflexão política: os direitos que defendo são, por extensão, universais? Há vítimas que são mais representativas que outras? Esse é o paradoxo que, tristemente, as mortes de Marielle e Anderson nos colocam. Sem reflexão política, a compaixão midiática apenas nos fará esquecer desse episódio em algumas semanas, até que emerjam outras vítimas e outra situação que nos coloquem a questão: o que estamos fazendo por nós e pela sociedade da qual participamos?

Não há privilégios diante da morte: todos morreremos. Mas há prioridades e privilégios no viver que explicitam o quanto estamos distantes uns dos outros.

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