Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Coisas que se misturam: religião e política

Ilustra: luppa SilvaApenas uma visão ingênua ou excessivamente laicizada refutaria o modo entrelaçado com que religiosidade e política se misturam. Desde o século XVI, para não retroagirmos tanto, são muitos os exemplos de uma relação imbricada entre crenças e posicionamentos políticos. A história das liberdades religiosas e políticas, aspectos necessários e fundantes de uma série de direitos, é marcada por conflitos e conciliações que impactam as decisões das pessoas.

Toda pessoa, mesmo aquela que não professa nenhuma religião, vive num campo social e cultural marcado por fundamentos sistematizados pelas religiões e, ao mesmo tempo, pelo debate público pautado pelo campo político. Se instados a participar de um plebiscito sobre questões comportamentais, por exemplo, as pessoas tendem a explicitar os confrontos de sua vida e crenças privadas e o dever da manifestação pública.

A fé, mais do que fenômeno individual, é manifestada coletivamente e, portanto, está na vida pública. A separação entre Igreja e Estado, formalmente estabelecida, fez-se na esteira das liberdades religiosas e na defesa da liberdade de culto. Nas democracias representativas o princípio de reconhecimento de todas as crenças e religiões assegurou um campo de atuação nos quais as religiões podem ingerir em questões civis ou políticas. O Estado, exceto naqueles em que não há liberdade religiosa, é pouco laico e vive sob as frequentes ameaças de forças político-religiosas.

Sobre a tolerância em tempos intolerantes

O discurso religioso raramente é tolerante. Ao classificar as ações como pecaminosas ou heréticas, há uma ambiguidade sobre a aceitação da liberdade religiosa que se proclama em tempos de secularização. A convivência, para o fiel, com pessoas que atuam de forma diversa não é fácil. A indiferença ou o desprezo é um risco para quem ostenta convicções inabaláveis.

O desafio para alguns grupos é estabelecer o limite para incorporar as diferenças e, ao mesmo tempo, preservar sua identidade religiosa. A reação católica no período moderno, com o reforço do tribunal do Santo Ofício, foi a demonstração de uma Igreja militante que procurava combater os hereges e manter sua doutrina, por exemplo. Quanto maior a demonstração desta força, com rituais exaltados, maior o temor da instituição e maior a propaganda que se fazia contra a própria Igreja, como nos textos dos humanistas do século XVI que condenavam estas práticas. A defesa da liberdade religiosa aumentava nos debates entre intelectuais e contribuía para a perda de prestígio da Igreja católica.

A visão de Martinho Lutero, a despeito de sua importância para a conquista das liberdades individuais e de consciência, não era muito distante da Igreja que ele combateu. A sua teoria da graça e a noção de pecado existente no mundo o fez defender uma dupla esfera de jurisdição: a espiritual, na qual os justos e eleitos estão protegidos; e a temporal, marcada pela impiedade e pelos riscos da maldade se espalhar pelo mundo e, mesmo assim, o fiel deveria também obedecer ao poder temporal. A sobrevivência de seu movimento, mais do que questão teológica, necessitava do beneplácito de monarcas e outras autoridades terrenas.

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Cranach, o Velho, representou a disputa entre católicos e seguidores de Lutero em “A verdadeira e a falsa Igreja”, de 1547. O embate, para além das questões religiosas, motivou revoltas populares, condenadas por Lutero, na Alemanha, em 1524 | Imagem: religionereligioni.blogspot.com.br

O discurso religioso no período moderno também impulsionou grupos rebeldes. A existência de um texto sagrado que legitimaria a ação dos fiéis e a existência de leis humanas e “imperfeitas” fez com que surgissem movimentos radicais inspirados na Bíblia. Na Inglaterra do século XVII, como analisou o historiador Christopher Hill (1912-2003), a relação entre “o pergaminho e o fogo” exerceu papel considerável nas revoltas populares entre 1618-1648. A liberdade de interpretação do texto divino impulsionou movimentos rebeldes contra a nobreza e o clero. A fé da plebe, subvertendo a autoridade dos clérigos, foi propulsora de uma rebelião popular contra o sistema estabelecido, mas não nos esqueçamos, impulsionada por acreditarem que sua demanda era sagrada, pois eles seriam os detentores da verdade fé.


Da liberdade de crença ao fanatismo que ameaça as liberdades

Os Estados modernos criaram mecanismos políticos para assegurar as liberdades individuais, incluindo a religiosa. Os princípios da tolerância e laicidade foram conquistados em diferentes instantes e processos históricos.

A autonomia da esfera privada, que marca as questões de fé, e, ao mesmo tempo, a ampliação das ações públicas que, por exemplo, limitariam o poder das religiões em temas como educação, saúde pública ou temas culturais, armaram um histórico de contínuas tensões. No cerne do Estado moderno está a tensão entre a autonomia das escolhas e a condução dos destinos coletivos.

Excetuando-se os estados autoritários, que negam a liberdade religiosa, ou os teocráticos, que negam a autonomia da vida política, há impasses profundos entre religião e política nas sociedades atuais. No Brasil, um desses campos de disputa é a discussão sobre a teoria de gênero. A filósofa Judith Butler foi alvo de protestos em sua recente passagem por São Paulo. A menção a fogueiras inquisitoriais é reveladora dos obscurantismos e dos riscos embutidos na suposta liberdade de expressão dos que defendem doutrinas que negam os princípios da laicidade.

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Os protestos pela visita de Judith Butler, em 7 de novembro passado, foram organizados por grupos religiosos e pela crítica ao que chamam de “ideologia de gênero”; a filósofa respondeu aos ataques em artigo na Folha de S.Paulo. | Foto: Reprodução nexojornal.com.br

A opinião pública forma-se por elementos complexos e até mesmo contrários ao respeito e à dignidade das pessoas. A pluralidade e a convivência entre grupos sempre serão ameaçadas, se algum grupo considerar-se acima do bem e do mal, se algum grupo se afirmar como porta-voz de uma verdade suprema ou iluminada, seja de matriz religiosa ou política.

Os messianismos são uma verdadeira ameaça à convivência dentro de um Estado plural. Quando esses messianismos se convertem em ódio e ultrapassam as fronteiras da legalidade ressurgem os velhos demônios que estão disponíveis para queimar todos os que são diferentes. Como as mulheres acusadas de bruxaria, estamos vulneráveis diante da insensatez dos que, em nome de uma moral ressentida, querem por fim à convivência entre pessoas com hábitos, práticas, crenças e visões de mundo diversas.

A tensão entre a política e a religião só poderá ser dissipada se os limites e o respeito entre seus campos de atuação forem firmemente respeitados.

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