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Os direitos humanos e os direitos dos povos indígenas: por um posicionamento público das universidades

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Foto: DivulgaçãoAntonio Guerreiro é professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e Diretor Associado do CPEI – Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena. Desenvolve pesquisas sobre ritual, política e transformações no Alto Xingu. É autor do livro Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário (Editora da Unicamp, 2015), premiado em 3º lugar no 58º Prêmio Jabuti, na categoria Ciências Humanas.

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.”
(Excerto do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos)

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O texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é aberto pela afirmação da liberdade e da igualdade de todos os seres humanos “em dignidade e em direitos”. Com efeito, estes dois direitos/valores constituem o pilar de toda a Declaração, e é importante considerar a relação de absoluta dependência entre eles: qualquer violação da liberdade implica na corrosão da igualdade, assim como toda forma de desigualdade impõe limites ao exercício da liberdade. A co-dependência entre esses dois direitos merece especial atenção em relação aos povos indígenas do mundo. A ONU afirma que os indígenas têm pleno direito “a todos os direitos humanos reconhecidos no direito internacional”, com a importante observação adicional de que “os povos indígenas possuem direitos coletivos que são indispensáveis para sua existência, bem-estar e desenvolvimento integral como povos” (NAÇÕES UNIDAS, 2008 [2007]: 6). Assim, deve-se entender que qualquer limitação à sua existência enquanto povos diferentes implica na violação de seus direitos humanos fundamentais. A interdependência e indivisibilidade entre os direitos humanos estendem-se a seus direitos coletivos específicos – entre eles o direito às suas terras, elas mesmas indivisíveis, como nos diz o xamã yanomami Davi Kopenawa, em epígrafe.

É afirmando “que os povos indígenas são iguais a todos os demais povos” e reconhecendo “ao mesmo tempo o direito de todos os povos a serem diferentes, a se considerarem diferentes e a serem respeitados como tais” (idem: 3), que a Assembleia Geral das Nações Unidas aprova, em setembro de 2007, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DDPI). Este documento (cujo primeiro rascunho foi elaborado ainda em 1994, e debatido com lideranças indígenas de diversos países) é um importante complemento à DUDH, pois reconhece aos povos indígenas o gozo de tais direitos na condição de coletividades diferenciadas e autônomas, contrapondo-se a limitações impostas por modos de dominação políticos, territoriais e culturais, sejam eles partes de regimes explicitamente autoritários, ou efeitos da persistência de relações coloniais mesmo em países democráticos.

A DDPI reconhece que as graves injustiças sofridas pelos povos indígenas no passado e no presente, como a subtração de suas terras, territórios e recursos, resultam no impedimento de exercer livremente “seu direito ao desenvolvimento, em conformidade com suas próprias necessidades e interesses” (idem: 3). Tendo isso em vista, a DDPI como um todo lida com as condições de garantia ao exercício de sua autodeterminação. O conceito é chave em todo o documento, e se refere ao direito de um povo a determinar livremente sua condição política e a buscar “livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural” (DDPI, Artigo 3). Cabe destacar que esse é um direito assegurado a todos os povos pela Carta das Nações Unidas, de 1945. Inicialmente, ele foi assegurado a territórios sob regimes de tutela e, posteriormente, às colônias, como parte da política de descolonização adotada pela ONU. É somente após o encolhimento dos sistemas coloniais que o conceito passa a ser aplicado a minorias étnicas, entre elas os povos indígenas. A extensão do direito à autodeterminação a esses grupos parte do reconhecimento de que eles não só foram historicamente subjugados, como permanecem sendo alvo de formas de discriminação ou políticas de assimilação forçada, que sob diversos aspectos os privam das condições de direito ou de fato para sua existência enquanto coletividades e, como consequência, privam seus membros de direitos fundamentais.

Foto: Marina Pereira Novo
Vista aérea da aldeia Aiha, do povo Kalapalo, na Terra Indígena do Xingu (MT) | Foto: Marina Pereira Novo

É consenso entre especialistas em direito internacional que o princípio da autodeterminação não fere e nem ameaça, sob nenhum aspecto, a soberania dos Estados nacionais (GRAHAM; WIESSNER, 2011). A própria declaração enfatiza que nada de seu conteúdo pode autorizar ou fomentar ações voltadas ao desmembramento ou redução da unidade territorial de uma nação soberana e independente (DDPI, Artigo 46), assim como a Carta das Nações Unidas, onde o conceito aparece originalmente, também não considera a autodeterminação um sinônimo de independência político-territorial (NAÇÕES UNIDAS, 1945). O exercício da autodeterminação dos povos indígenas se dá por meio do que a DDPI define como autonomia ou autogoverno, isto é, a capacidade de deliberar e decidir livremente sobre seus assuntos internos e locais, sem a submissão ao jugo de outros grupos (sejam outros povos, classes sociais ou quaisquer segmentos de uma população). O conceito define que os povos indígenas não podem ser submetidos a decisões e ações que firam suas condições de existência coletiva, livre e digna, assim como quaisquer outros povos ou indivíduos. A garantia de tal liberdade é acompanhada do direito de “conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas sociais e culturais” (DDPI, Artigo 5), o que não exclui em hipótese alguma o direito de participar plenamente de um Estado nação (DDPI, Artigos 5 e 6). Cabe aos Estados nacionais estabelecerem os mecanismos pelos quais a autodeterminação pode ser exercida dentro de seus territórios, segundo seus ordenamentos jurídicos e instituições políticas. Há interpretações sobre o direito à autodeterminação que o entendem, de forma alargada, como uma garantia à plena participação em um regime democrático, permitindo a grupos minoritários a atuação efetiva em processos políticos que afetem suas vidas (ANJOS FILHO, 2013).

A declaração também enfatiza a garantia ao aprendizado e transmissão das línguas indígenas, aos seus modos próprios de educação, à manutenção de suas práticas de saúde, e à representação digna de sua diversidade social, cultural e linguística. Uma garantia em particular merece destaque, pois encontra-se sob forte ataque no contexto brasileiro atual: o direito às suas terras. Conforme o Artigo 26, “Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou tenham de outra forma utilizado ou adquirido”, e a declaração especifica que cabe aos Estados assegurar seu reconhecimento e proteção, respeitando os regimes indígenas de posse da terra. Cabe também aos Estados realizar reparações justas e equitativas quando os territórios dos povos indígenas tiverem sido ocupados, tomados ou prejudicados sem o seu consentimento livre, prévio e informado.

As relações dos povos indígenas com seus territórios ultrapassam perspectivas limitadas que queiram reduzir a terra à sua capacidade de atender necessidades da (dita) subsistência e/ou de produção de excedente para a venda. O falso argumento de que haveria “muita terra para poucos índios” demonstra o desconhecimento das condições de sustentabilidade ecológica dos recursos naturais utilizados pelos povos indígenas, segundo complexos sistemas de manejo do solo, dos recursos hídricos, da flora e da fauna (CARNEIRO DA CUNHA; ALMEIDA, 2000; HECKENBERGER et al., 2003). Ele também desconsidera algo amplamente demonstrado em pesquisas das últimas décadas, que as terras indígenas não são meros “bens” em sentido econômico, mas parte do modo como estes povos produzem pessoas e coletivos segundo seus ideais do que é uma vida boa e digna. Como diz Davi Kopenawa na epígrafe deste texto, enquanto os não indígenas repartem a terra e trocam seus pedaços por dinheiro, as terras indígenas devem “permanecer inteiras” para que suas condições de vida sejam garantidas. Não há, assim, possibilidade de garantia ao direito de autodeterminação (e, logo, aos direitos humanos) dos povos indígenas sem o reconhecimento de seus direitos territoriais, segundo suas próprias formas de envolvimento com a terra.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é um instrumento fundamental na garantia dos direitos dos povos indígenas. O capítulo “Dos Índios” foi elaborado em diálogo próximo com os povos indígenas, e seus artigos inovam na abertura do direito para uma diversidade de modos de vida e visões de mundo, criando novas possibilidades de relações dos povos indígenas com o Estado que ultrapassam a política integracionista anterior (CAPIBERIBE, 2018). Conforme o Artigo 231, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Garante-se, dessa forma, seu direito à diferença, que vem sendo a base da conquista de políticas públicas específicas nas últimas décadas. A definição do direito à terra como um direito originário, por sua vez, reconhece que tal direito é anterior à existência do Estado nacional. Trata-se de um direito natural, que decorre da conexão entre as populações contemporâneas e as pré-colombianas, não tendo origem no reconhecimento do Estado, nem podendo ser anulado pelo seu não reconhecimento - não sem descumprir a Constituição (SILVA, 2018). As “terras que tradicionalmente ocupam” são tanto aquelas habitadas em caráter permanente, quanto aquelas utilizadas em suas atividades produtivas e também, conforme o texto constitucional, “as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (CF, Artigo 231). Uma terra indígena, portanto, não é apenas um espaço de reprodução material (ainda que, claro, não deixe de sê-lo), mas também de produção simbólica e social da vida. Que elas sejam definidas segundo “usos, costumes e tradições” dos povos indígenas implica em reconhecer a diversidade de concepções de vida, e de viver bem, entre os povos originários que estruturam seus regimes de posse e uso da terra. Nem a legitimidade, nem os limites, de uma terra indígena podem ser definidos pela imposição de lógicas externas – como por vezes se pretende fazer comparando a densidade demográfica de terras indígenas com as de centros urbanos, ou a produtividades dos hectares do agronegócio em relação à produção de pequenas comunidades.

A reprodução de argumentos falaciosos, como o da suposta “ameaça à soberania nacional” e o da “necessidade de integração à comunhão nacional”, só é possível graças à articulação de interesses privados com a desinformação sobre os povos indígenas, que ainda é muito grande no país. Dados de pesquisas deixam claro que Terras Indígenas em áreas de fronteira não só não ameaçam a soberania nacional (as terras pertencem à União), como representam obstáculos importantes à penetração de atividades ilegais no país. Também se sabe que a presença indígena em fronteiras foi historicamente importante para a composição do território brasileiro, assim como continua relevante para sua defesa (RICARDO; SANTILLI, 2008). Também é inquestionável que são as TIs (junto com as Unidades de Conservação) as principais responsáveis pela preservação – e incremento - de recursos naturais indispensáveis para o equilíbrio dos ecossistemas brasileiros e do planeta (CARNEIRO DA CUNHA; MORIM DE LIMA, 2017). Além disso, a biodiversidade manejada pelos povos indígenas guarda um potencial enorme para o desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais promovendo, de forma justa, conhecimentos e economias locais e regionais.

O prazo de cinco anos para a demarcação das terras indígenas definido pela Constituição expirou, e este tema segue sendo objeto de conflitos. No momento atual, assistimos a violações explícitas de direitos dos povos indígenas, com a tentativa de submeter o direito originário às suas terras a interesses econômicos privados; com a difusão de ideias que descaracterizam a diversidade sociolinguística dos povos indígenas e propagam o preconceito (duas violações a direitos definidos na DDPI); discursos de incitação à violência; e a sistemática negligência do Estado em relação às ocupações ilegais de terras indígenas por posseiros que se intensificaram desde o início do novo governo (como as noticiadas em Mato Grosso e Rondônia em janeiro deste ano). Em suma, um conjunto de discursos e práticas que ganharam espaço na política nacional atentam de forma explícita contra princípios elementares da Constituição Federal, dos direitos dos povos indígenas e dos direitos humanos em geral. Diante desse cenário, não é difícil ver quais interesses, práticas e modelos de posse da terra atentam verdadeiramente contra a soberania nacional e contra a vida dos cidadãos.
A reversão dessa série de violações aos direitos humanos às quais os povos indígenas estão submetidos depende do fortalecimento da democracia, e também da desconstrução de um ideário falso e anacrônico. Essa difícil tarefa passa pela crescente organização do movimento indígena, que vem atuando de forma cada vez mais incisiva na defesa de seus direitos e dando visibilidade a uma realidade social, cultural, linguística e ambiental extremamente diversa e pulsante. Ela é também uma tarefa das Universidades, que têm o duplo dever de ampliar a divulgação dos conhecimentos que produzem em diálogo com os povos originários, e multiplicar a participação de indígenas na produção de tais conhecimentos. O acesso ao ensino superior pelo Vestibular Indígena da Unicamp, assim como as cotas já adotadas por alguns programas de pós-graduação, são iniciativas fundamentais nessa direção. Além de fortalecer o direito à educação dos povos indígenas, valorizando experiências e práticas educativas diferenciadas, elas apostam que essa multiplicidade é capaz de ampliar enormemente os modos de ensino, aprendizagem e pesquisa da Universidade. Em um momento em que a “inovação” ocupa lugar de destaque nas políticas de ensino superior no Brasil e no mundo, temos o desafio de transformar o ensino superior e a pesquisa a partir da incorporação de outros saberes e práticas de conhecimento, ancorados em outras epistemologias. Este é, sem dúvidas, um ideal de inovação que as Universidades deveriam cultivar, em prol do avanço do conhecimento e do fortalecimento da democracia.

 



Referências

ANJOS FILHO, R. N. DOS. O direito à autodeterminação dos povos indígenas: entre a secessão e o autogoverno. In: ANJOS FILHO, R. N. DOS (Ed.). . Direitos Humanos e Direitos Fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 588–620.

CAPIBERIBE, A. Dos Índios: em defesa da Constituição. Juízes para a Democracia, n. 18, p. 3–5, 2018.

CARNEIRO DA CUNHA, M.; ALMEIDA, M. W. B. DE. Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the Amazon. Daedalus, v. 129, n. 2, p. 315–338, 2000.

CARNEIRO DA CUNHA, M.; MORIM DE LIMA, A. G. How Amazonian Indigenous Peoples enhance Biodiversity. In: BAPTISTE, B. et al. (Eds.). . Knowing our Lands and Resources: Indigenous and Local Knowledge of Biodiversity and Ecosystem Services in the Americas. Knowledges of Nature. Paris: Unesco, 2017. p. 1–22.

GRAHAM, L. M.; WIESSNER, S. Indigenous Sovereignty, Culture, and International Human Rights Law. The South Atlantic Quarterly, v. 110, n. 2, p. 403–427, 2011.

HECKENBERGER, M. J. et al. Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland? Science, v. 301, n. 5640, p. 1710–1714, 2003.

KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A Queda do Céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

RICARDO, B.; SANTILLI, M. Povos Indígenas, Fronteiras e Militares no Estado Democrático de Direito. Interesse Nacional, v. 1, n. 3, p. 18–28, 2008.

SILVA, J. A. DA. Parecer. In: CARNEIRO DA CUNHA, M.; RODRIGUES BARBOSA, S. (Eds.). . Direitos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 17–42.

UNIDAS, O. DAS N. Carta das Nações Unidas São Francisco, 1945.

UNIDAS, O. DAS N. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas Rio de Janeiro Nações Unidas, 2008.

 

 

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