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A construção de políticas para efetivação de Direitos Humanos

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Foto: PerriLuís Renato Vedovato é doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA); pesquisador associado FAPESP do Observatório de Migrações em São Paulo; e autor do livro “Deve Haver” (2017).

 

 

“Artigo 8. Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.”
“Artigo 28. Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.”
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
“Artigo 1º. Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.”
(Pacto de San José)

 

Ser contra-majoritário é um dos pilares dos Direitos Humanos, o que permite afirmar que suas ações se distanciam das aprovações da maioria da população. Em outras palavras, é natural que se critiquem as políticas voltadas à implementação desses direitos. Se o resultado da efetivação de ações para sua aplicação for o apoio inconteste da população, há chance de se estar fazendo algo errado. Nesse sentido, há um dilema que acompanha a construção de políticas de direitos humanos desde sua criação, pois, o governo se vê acuado diante da pressão da maioria contra a proteção de grupos vulneráveis.

O Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), assumiu o papel de agir como sendo o condutor dessas decisões. Foi assim com as cotas nas universidades – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 –, a possibilidade de antecipação terapêutica do feto anencéfalo (ADPF 54), o uso de células-tronco embrionárias – Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510 –, a união entre pessoas do mesmo sexo (ADI 4277 e ADPF 132), entre outros casos.

Atualmente, está em trâmite, no STF, o julgamento sobre a constitucionalidade da existência do crime de aborto (ADPF 442), que também leva à Corte um debate que envolve a proteção contra-majoritária. Ao mesmo tempo em que se afirma que o judiciário é o local para pleitos desse tipo, e é inegável que o STF atuou no sentido de proteção das minorias nos casos citados, deixar nas mãos dos tribunais questões tão relevantes para toda a sociedade pode criar barreiras entre a população e a sensibilização sobre direitos humanos.

Focando especificamente no caso da união entre pessoas do mesmo sexo, é possível fazer uma comparação interessante sobre as soluções trazidas pelo STF brasileiro (ADI 4277 e ADPF 132, julgados em 2011), pelo Tribunal Constitucional de Portugal (Acórdão 359/09 e Processo n.º 192/2010) e pela Corte Constitucional da África do Sul (CCT 10/2005). No Brasil, o STF optou por agir independentemente da atuação do parlamento. De fato, em 2011, o Supremo decidiu que a união entre pessoas do mesmo sexo é garantida pela Constituição e totalmente aceita pelo ordenamento jurídico brasileiro. No sentido de proteção das minorias, essa é a decisão que se espera. Mas ainda fica a dúvida sobre a legitimação perante a população, o que abre espaço para um veicular constante de críticas sobre tal decisão nos mais variados setores, não raro com objetivos político-partidários. Quanto às decisões de Portugal, a que foi tomada em 2009 seguiu o caminho tradicional, determinando que, se não há lei, não há o que ser feito pelo tribunal. Assumindo assim que a decisão sobre construção de direitos tem um foro específico, o parlamento. No entanto, a decisão de 2010 foi no sentido de proteção das minorias, garantindo-se o direito à união entre pessoas do mesmo sexo, porém, após manifestação nesse sentido do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Dessa forma, o tribunal português enfatiza a importância do debate no parlamento e no governo.

No entanto, buscar a garantia de direitos contra-majoritários junto ao parlamento pode exigir um longo caminho e um tempo ainda mais amplo, muitas vezes não existentes para pessoas que querem sua dignidade protegida. Logo, se a decisão brasileira tem o ônus da legitimação junto ao parlamento, a decisão portuguesa pode permitir a violação de direitos por longos períodos. No entanto, não se pode dizer que exista uma fórmula correta para ser aplicado em todos os países do mundo.

É nesse sentido que a decisão da Corte Constitucional da África do Sul pode trazer luzes sobre o tema. Ela de fato tenta se colocar numa situação intermediária. Sua determinação foi de que o parlamento do país deveria garantir a possibilidade da união entre pessoas do mesmo sexo, dando o prazo de 12 meses para que a norma fosse aprovada.

Caso não fosse feita a aprovação dentro desse período, passaria a valer a sua decisão de constitucionalidade da união, independentemente de manifestação do parlamento. Em outras palavras, a corte permitiu que o parlamento se manifestasse, porém, ao fixar prazo, afastou que a violação se prolongasse.

Outra comparação interessante pode ser feita entre o processo de não criminalização do aborto na Argentina e no Brasil. Tardiamente, os países da América do Sul entram no debate do tema de aborto, que foi discutido mundialmente no início dos anos 70 e também no início dos anos 90.

Na Argentina, o parlamento ficou no centro da decisão. Com grande envolvimento das mulheres argentinas, a descriminalização foi aprovada em primeira votação. No entanto, apesar de todo engajamento, o Senado argentino rejeitou a norma de descriminalização, o que demonstra a força da maioria em casos de violações a direitos humanos.

Enquanto isso, o Brasil tem feito o caminho aos poucos. Em 2012, depois de longa tramitação, pois o processo foi iniciado em 2004, houve a decisão pela constitucionalidade da antecipação terapêutica do parto, permitindo-se o abortamento nos casos de fetos anencéfalos (APPF 54). Em março de 2017, foi proposta a ação (ADPF 442) em que se discute o aborto. No início de agosto de 2018, foram realizadas audiências públicas sobre o tema a ser decidido pelo STF no futuro.

O ponto central da ação é a declaração de inconstitucionalidade do crime de aborto realizado antes de se completarem 20 semanas de gravidez. Esse processo poderá ser longo e essa escolha não deve deixar de lado o debate democrático no poder legislativo. Sendo importante lembrar que a relatora do caso, a Ministra Rosa Weber, negou liminar no processo.

Não há resposta simples para a pergunta sobre qual país faz (ou fez) o melhor caminho, se Argentina ou Brasil. Pois, não há solução absoluta a ser aplicada a todos os países do mundo. Impor uma conduta sem debate, ao mesmo tempo que pode ser a única saída para proteção de minorias, traz elementos antidemocráticos, podendo abrir espaço para pautas que vão surgir em campanhas eleitorais das mais variadas matizes.

O que muito se tem visto nos processos sobre direitos humanos nos vários tribunais no mundo é o trabalho com dados e números, das formas mais diferentes. Quanto a isso, mostra-se essencial a participação de órgãos ligados à pesquisa e ao manuseio desses dados, visando uma decisão sobre diretos humanos mais sustentável.

Nesse contexto, o papel da academia passa a ser cada vez mais relevante, não só para produzir a teoria sobre direitos humanos, mas para trabalhar com dados coletados da realidade. Como exemplos, trabalhar índices de violência doméstica é fundamental para se entender e se difundir a importância da produção de normas e políticas nessa área; reconhecer os dados relativos às mortes de mulheres em decorrência de procedimentos clandestinos de abortamento é uma forma de se analisar esse direito; entender a relevância e os impactos da nanotecnologia no meio ambiente por meio de pesquisas será fundamental para decisões legislativas e jurídicas sobre esse tema, em especial no que toca ao princípio da precaução do direito ambiental.

Dizendo de outra forma, a ponte entre a decisão judicial contra-majoritária e a legitimação da política de proteção a direitos humanos passa pela compreensão da realidade posta a partir dos dados e das pesquisas disponíveis, o que leva a universidade a ter papel de destaque nesse processo. Assim, a decisão judicial, mesmo que não sintonizada com o legislativo, fundada em dados e em pesquisas científicas tem mais condições de alcançar a legitimidade para tratar de direitos. Ao mesmo tempo, não se construírem políticas públicas, apesar das pesquisas acadêmicas indicando que são necessárias, pode dar menor espaço para debates puramente com o intuito de se alcançarem votos.

A academia tem um papel crucial no equilíbrio entre os poderes e na construção das políticas públicas de implementação de direitos humanos, quanto mais ela é ouvida, mais espaço há para construção de ações governamentais sustentáveis. Quanto mais a academia produz, mais ela cumpre seu papel social. E pode se dizer que há muito trabalho pela frente.

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