Audiodescrição: Imagem colorida de uma gota de água projetando uma planta no fundo.

A coluna Ambiente e Sociedade é um espaço de discussão crítica e analítica sobre as questões ambientais contemporâneas, dando ênfase às problemáticas concernentes às transformações para sociedades sustentáveis. Dentre outros, são abordados temas como mudanças climáticas, políticas públicas ambientais, biodiversidade, degradação ambiental urbana e rural, energia e ambiente, Antropoceno, movimentos ambientalistas, desenvolvimento e sustentabilidade, agricultura sustentável e formação de quadros na área.

O mundo pós-Covid, distopia ou solidariedade?

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Não podemos prever o futuro, mas podemos inventá-lo

-- Charles Birch

Por Roberto P. Guimarães*

A eclosão da pandemia provocada pelo “novo” coronavírus (na verdade, uma nova e mais agressiva mutação do Corona) coloca em evidência o protagonismo de ao menos dois possíveis cenários extremos para a sobrevivência da vida no planeta. De um lado, o retorno a uma distopia de sociedades confinadas no isolamento, sem vínculos de sociabilidade e com o predomínio de trabalhos terceirizados, subalternos e precarizados em matéria de redes de proteção social como as que caracterizaram a evolução da humanidade no último século. No extremo oposto, poderemos ser testemunhas do renascimento de uma sociedade verdadeiramente ambiental, social e eticamente sustentável, como a que preconiza a agenda internacional desde a publicação do Nosso futuro comum, em 1986.

Pandemia de Covid-19 aprofundou desigualdades sociais. Crédito: Antonio Scarpinetti
Cenário distópico pós-pandemia pode se traduzir em sociedades confinadas no isolamento, sem vínculos de sociabilidade. Crédito: Antonio Scarpinetti

A viagem de volta à distopia de uma sociedade fragmentada e desprovida de humanidade pode parecer a mais provável, em especial à luz da experiência histórica passada.

De fato, desde 11 de março de 2020, quando eclodiu a pandemia, enquanto 42,6 milhões de trabalhadores solicitaram auxílio-desemprego, 1% dos bilionários norte-americanos viram a sua riqueza acrescida em mais de US$ 565 bilhões. Como resultado dessa dinâmica perversa no nível mundial, apenas 26 bilionários acumulam uma riqueza superior à metade mais pobre da humanidade. No caso específico do Brasil, dados recentes revelam que 705 mil homens possuem renda superior à de todas as 33 milhões de mulheres negras.

O documento oficial apresentado pelo Brasil à Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) já assinalava que “em situações de extrema pobreza, o indivíduo marginalizado da sociedade e da economia nacional não tem nenhum compromisso para evitar a degradação ambiental, uma vez que a sociedade não impede sua própria degradação como pessoa”. Fazendo eco ao consenso mundial sobre esse aspecto, a própria Resolução 44/228 das Nações Unidas que convocou a Rio-92 afirmava com inusitada clareza que “pobreza e degradação ambiental encontram-se intimamente relacionadas”.

Já no cenário pós-pandemia mais otimista, seria inaugurado um novo modelo de organização social e de acumulação que, em bases solidárias e de afetividade, permitiria superar diversas forças motrizes da globalização atual. Desde a distópica mercantilização da natureza e dos seres humanos que levou a uma sorte de “uberização” geral do planeta e à transformação de cidadãos em meros robots do consumo online, sem qualquer relação com as suas necessidades, individuais e coletivas, de sobrevivência material, espiritual e de materialização de uma ética verdadeiramente planetária e entre gerações.

A emergência da nova “economia do conhecimento” permite tentar colocar em prática um truísmo das últimas décadas, considerando que o futuro de nossas economias, de fato de nossas sociedades, passa necessariamente pelas capacidades de transformação baseadas na exploração do conhecimento acima de mercadorias ou serviços. A nova economia do conhecimento requer, no entanto, o fortalecimento tanto dos bens públicos como dos bens comuns.

Em um dos cenários pós-pandemia poderemos ser testemunhas do renascimento de uma sociedade verdadeiramente ambiental, social e eticamente sustentável. Crédito da imagem: Pixabay
Por trás do sorriso de Mona Lisa encontra-se a empatia. Crédito: Pixabay

Um futuro mais promissor convida a desvendar o enigma de Mona Lisa[I]. Durante anos permaneceu envolto em mistério o sorriso da Gioconda retratado por Leonardo da Vinci. A interpretação mais próxima da verdade é revelar a capacidade de o gênio Florentino de perceber movimentos sutis antes que estes se manifestassem. De fato, foram necessários mais de quatro séculos para comprovar o que já constava dos escritos de Da Vinci, que as libélulas voam com quatro asas, as da frente erguidas e as de trás abaixadas.

A metáfora utilizada aqui sugere que, por trás do sorriso, encontra-se a empatia, muito mais do que a interpretação popular do “colocar-se no lugar do outro”, um movimento mais profundo, a capacidade de sentir pelo outro suas próprias emoções e sentimentos. Em outras palavras, uma forma racional e objetiva de experimentar na própria pele o que o outro está vivenciando. O que um cenário Mona Lisa projeta é um franco processo de reversão das tendências atuais em prol da diminuição das brechas de desigualdade e de exclusão, o que requer de um novo marco de políticas públicas, que coloque o ser humano no centro do processo de desenvolvimento, que considere o crescimento econômico não como um fim, mas como um meio para alcançar maiores níveis de bem-estar socioambiental, que proteja a qualidade de vida das gerações atuais e futuras e que respeite a integridade dos sistemas naturais que permitem a existência de vida no planeta. Este novo padrão estará necessariamente orientado por uma nova ética de desenvolvimento em que os objetivos econômicos estejam subordinados às leis que regem o funcionamento dos sistemas naturais e que obedeçam também aos critérios de respeito da dignidade humana e de melhoria da qualidade de vida das pessoas. Sendo assim, os cenários mais otimistas com as possíveis soluções à crise atual de civilização terão que ser encontrados no próprio sistema social e não em alguma mágica tecnológica ou de mercado.

Em resumo, o cenário mais promissor pós-Covid é um que outorga primazia à chamada “economia do cuidado”, que oferece o indispensável amálgama ético para o respeito da dignidade humana e dos membros menos favorecidos ou francamente marginalizados ou excluídos da sociedade. Representa, em suma, o império da justiça socioambiental, tanto sincronicamente como entre gerações. Não cabe dúvida que a luta pela materialização do sorriso de Mona Lisa justifica aunar todas as forças para almejar esse impossível e resgatar o caráter intrinsecamente humano da sociedade. Um mundo no qual valha a pena fazer parte.

 

Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.

 


Roberto P. Guimarães

Ph.D em Ciência Política, autor, entre outros, de The ecopolitics of development in the Third World, e The inequality predicamente: peport on the world social situation. Atuou como coordenador técnico nas Conferências Rio-2, Rio+5 e Rio+10d. Atualmente, desempenha as funções de presidente do Comité Director de IfE - Initiative for Equality (UN ECOSOC Consultative Status). E-mail: robertoguimaraes@hotmail.com.


[I]Ver Roberto P. Guimarães, “Pasado y futuro de la distopia o el enigma de la sonrisa de Mona Lisa”, MÉROPE-Revista del Centro de Estudios en Turismo, Recreación e Interpretación del Patrimonio (Nuequén Argentina), Año. 1, Nº 2, agosto 2020, pp. 10-21.

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