Audiodescrição: Imagem colorida de uma gota de água projetando uma planta no fundo.

A coluna Ambiente e Sociedade é um espaço de discussão crítica e analítica sobre as questões ambientais contemporâneas, dando ênfase às problemáticas concernentes às transformações para sociedades sustentáveis. Dentre outros, são abordados temas como mudanças climáticas, políticas públicas ambientais, biodiversidade, degradação ambiental urbana e rural, energia e ambiente, Antropoceno, movimentos ambientalistas, desenvolvimento e sustentabilidade, agricultura sustentável e formação de quadros na área.

O meio ambiente como signo negativo da modernidade ou uma alegoria de ultraje à natureza?

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Por Dimas Floriani*

O mundo das palavras é a zona da realidade que permite ao escritor ficar prisioneiro delas ou então buscar transpor seus limites, com todos os riscos que isso representa para a imaginação. Entre um limite e outro transita a alegoria que é uma figura de estilo ou recurso de linguagem, espécie de tradutora dos sentidos do mundo ou ausência deles e que pode ser interpretado também como “falar da realidade de outra maneira” segundo a expressão grega allegorein.

Nos diversos usos da escrita e das palavras, o escritor paraguaio Roa Bastos, em seu magnífico romance epopeico Eu o Supremo expressa que “escrever não significa converter o real em palavras, mas fazer que a palavra seja real” (p. 73 na edição de 2003 em espanhol, Editora El Lector, Assunção).

Lembra ainda mais adiante (p. 78) que houve épocas na história da humanidade em que o escritor era uma pessoa sagrada; escrevia livros sagrados, códigos, épica, oráculos, sentenças e inscrições em criptas, pórticos e nos templos. Transmitia seus mistérios de idade em idade, sempre atuais, sempre futuros. De tal maneira que os livros têm um destino mas o destino não tem nenhum livro.

Poderíamos pensar, para nossos propósitos, que esse destino estaria reservado à natureza que pode ser escrita, mas que toda escrita que é feita sobre ela é uma tentativa de religação humana, com seus desígnios, seja de comunhão ou de divórcio trágico como estamos assistindo na atual fase do antropoceno.

Como um de nossos intuitos aqui é de aproximar a produção discursiva como figura de linguagem e seu uso alegórico, associado com a questão ambiental, podemos identificar ainda na literatura dois escritores, José Saramago e Ignácio Loyola Brandão, que nos colocam diante de rupturas da “normalidade” até então pouco plausíveis ou inverossímeis, embora bastante alardeadas pelos escritos de Bauman que se refere a essa normalidade como vidas desperdiçadas.

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Limites humanos e o castigo pela sua violação: uma alegoria ética válida para o presente

Alguns pré-socráticos, como Heráclito (1964), percebiam o pesado sentimento de culpa para a alma humana ao defrontar-se com o desejo e sua proibição. No Banquete, Platão faz referência a Aristófanes que ao tratar dos seres humanos e dos seus poderes exagerados, em suas origens, valeu-lhes ser cortados pela metade pelos deuses, e dessa amputação surgiu o vazio que só pode ser preenchido pelos outros. Daí que cada um de nós é símbolo do outro, sendo que o outro é o ser alheio que rouba meu ser; cada ser humano é o complemento do outro. Uma vez mais a referência ao outro suscita, para os gregos, a ideia de que a virtude ética é sempre realizada em comunidade pelos indivíduos, uma relação com o outro.

A conduta da desproporção, do excesso, do viver sem limites pareceria antecipar o alerta sobre a forma de viver, de produzir e de consumir dos modernos, especialmente se levarmos em conta como vivemos nossas experiências com a natureza usada como recurso produtivo e submetida sem trégua ao mercado.

Pela alegoria de Zeus que ordena que os homens sejam divididos ao meio por querer igualar-se às divindades, poderíamos nos contentar, afinal, com o paradoxo da privação imposta pelos deuses aos seres humanos, uma vez que daquela privação nasce o desejo de cada ser humano completar-se no outro, devolvendo-nos nossa própria condição limitada, dependente e finita!

Assim sendo, entende-se que as questões socioambientais derivam dos problemas vinculados com a maneira de conceber, viver e transformar as condições de vida material e cultural, e que o amálgama desses atributos se remete às concepções e modos de representar a natureza e conviver com ela. Pensar e viver essa dimensão na contemporaneidade, significa conviver com ameaças, riscos, privações e, no limite, promover desastres crescentes, pelo modo de como conduzimos nosso sistema de produção das condições materiais, simbólicas e culturais de vida (estilos de consumo que excedem nossas necessidades essenciais). Note-se aqui que foi esquecido, pelas modernas sociedades, o apelo dos autores clássicos gregos, sobre as virtudes da moderação!

Pensar eticamente a comunidade hoje envolve uma ética global já que administrar um sistema de justiça ambiental implica em uma espécie de proclamação de mandamentos, preceitos, leis e normas que regulem mundialmente os mecanismos de controle e que penalize os excessos cometidos pelas ações implementadas no âmbito dos usos e abusos dos recursos naturais disponíveis.

Com Sísifo, para insistir nas analogias, se sua tarefa é inútil e absurda, não deixa de revelar o que a modernidade ocidental instaurou como normalidade repetitiva e que embora destituída de sentido, continua executando sua tarefa diária. Ora, essa normalidade pareceria que está prestes a terminar se é que já não terminou, com o aparecimento letal de um vírus que desafia a toda a humanidade.

A questão que é necessário reformular a partir dessa ruptura é se de fato estamos varrendo de vez o imaginário de Sísifo, como inexorável repetição, e o que advirá a partir de sua ausência: um vazio absoluto ou a necessidade de criarmos outras alegorias para representar o que todavia não se esboça como visível? No dizer de Edgar Morin, o improvável cede lugar ao involuntário e ao inesperado! Esse inesperado como anúncio de alerta do perigo totalitário que é bem diferente daquele do século XX parece profetizar que a paz e a segurança poderão, infelizmente, se estabelecer em pequenos oásis cercados pela aridez de um grande deserto.

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O que o inesperado reserva para a atual crise socioambiental

Em um de seus capítulos do livro Para Além da Esquerda e da Direita, Anthony Giddens (1996) designa a crise ambiental atual como signo negativo da modernidade, em oposição à visão radiante do progresso e das promessas de uma sociedade afluente para todos os seres humanos que habitam o mesmo Planeta, desde as revoluções industriais até o final do século XX.

O fim da natureza como entidade independente da ação humana, o impacto da globalização, a eclosão do fundamentalismo, a persistência da dimensão de gênero e a necessidade de uma teoria normativa da violência aparecem neste livro como alguns dos elementos relevantes para a implementação de uma nova política verdadeiramente democrática.

Contudo, com a eclosão do neoconservadorismo, a ressurgência e insurgência de forças proto autoritárias, encarnadas em populistas da extrema-direita, os anseios por uma terceira via parecem ter ficado estagnados, para não dizer enterrados, diante das expectativas otimistas sobre as promessas da globalização dos mercados; não se confirmaram as profecias de que essa globalização pudesse trazer esperanças de um novo modelo de cooperação internacional, com regimes políticos democráticos e um novo modelo normativo de gestão compactuada entre as nações sobre o meio ambiente.

Da mesma maneira, temos que buscar substituir as ingenuidades sobre a trajetória da história das sociedades humanas, que vai do inferior ao superior, do atrasado ao adiantado, da tradição à modernidade e de levar a sério a forma de como os sistemas de super exploração da natureza acabará provocando a ira do inesperado conforme Morin.

É hora então de retornarmos aos autores e autoras que em determinados momentos foram considerados catastrofistas ou descontextualizados. Carl Sagan com suas reflexões sobre vida e morte na virada do milênio diz que no século XXI serão os tônicos e tóxicos que causarão danos no mundo despreparado. Para contrapor-se a essa inércia, segundo ele, seria necessário expandir o campo da saúde pública de forma que inclua a saúde cultural; premonitoriamente, cita o poeta inglês John Donne, em poema de 1611, com o verso: “Este novo mundo pode ser mais seguro, se for informado sobre os perigos das doenças do antigo”.

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É possível ainda acreditar piamente no desenvolvimento como crescimento econômico?

Como já é por demais conhecido, as teorias do desenvolvimento foram elaboradas por teóricos comprometidos com a centralidade do modelo capitalista hegemônico e posteriormente transplantadas, adaptadas ou assimiladas a contextos histórico-sociais e culturais bem diversos, sobretudo em situações coloniais como da África ou de dependência como da América Latina.

Perguntas a se fazer para a busca por soluções, dentro dos limites históricos do desenvolvimento e de suas contradições ou então desde as margens do sistema, é se ambas as possibilidades (alternativas de desenvolvimento x alternativas ao desenvolvimento) são antagônicas ou complementares; mais ainda, se aparecem como antagônicas, as possibilidades de coexistência é da ordem estrutural (sistêmica) do modelo neoliberal? Ou se a possibilidade de outra matriz hegemônica ( por exemplo, a desenvolvimentista, estatista, social democrática, etc.) poderia promover algum tipo de coexistência?

Pensar em alternativas ao desenvolvimento requer, portanto, não apenas conceber de outra forma mecanismos que permitam a uma organização social ser capaz de reproduzir-se materialmente, mas também de engendrar instituições em que a gestão, as normas, e os valores que regem as estratégias de sociabilidade se desloquem do atual sistema de racionalidade capitalista para outras racionalidades, com possibilidade de se sobreporem ou então de coexistirem com a atualmente vigente.

Essa questão não é apenas de ordem epistêmica, mas se refere ao domínio das experiências concretas, isto é, de como são construídas alternativas políticas e culturais autônomas. A modernidade periférica, com seu processo de modernização econômica e tecnológica e a consequente segmentação de classes sociais, conduz esse processo aos limites da injustiça ambiental, uma vez que combina elementos de herança colonial com uma crescente mercantilização da natureza, em diversas modalidades: produção e expansão do espaço do capital pelo agronegócio, pelo neoextrativismo e pela apropriação dos territórios pertencentes aos povos indígenas e às populações tradicionais.

A produção de uma nova semântica pelos sujeitos sociais subalternos, historicamente invisibilizados e silenciados só é possível pelo trabalho de ressemantização de sua condição identitária, cultural e política, em uma perspectiva plural. Esses novos-antigos sujeitos se redefinem ao politizar seus agenciamentos frente ao modelo hegemônico de desenvolvimento periférico e ressignificam suas estratégias em busca de alternativas ao desenvolvimento, no lugar de reafirmar as propostas de alternativas de desenvolvimento.

Mudanças climáticas: teoria conspiratória dos globalistas?

Com a grande onda neoliberal dos últimos anos, o que se observa por parte de governos populistas de direita no Brasil e nos EUA, até o fim do mandato de Trump, é o negacionismo em relação às mudanças climáticas – o aquecimento global junto com a referência a gênero tornaram-se palavrões ideológicos –, ou seja, uma aposta para enfraquecer os mecanismos das agências multilaterais de negociação sobre políticas de mitigação dos danos provocados pelas mudanças climáticas e de recusa de novos tipos de cooperação em pesquisa para gerar a produção de energias alternativas, por exemplo, frente à matriz fortemente apoiada na exploração de combustíveis fósseis.

Provavelmente, com a crise do Covid19, se a humanidade aprender alguma coisa com ela e se a aventura neoliberal for derrotada, poderão abrir-se novos cenários para a prevenção de um futuro mais seguro e o combate às mudanças climáticas entrarão na linha de mira das prioridades, bem como as políticas de prevenção sanitárias frente às pandemias.

Considerar medidas relativas à crise mundial atual é buscar então associar a estreita relação que existe entre a coevolução do sistema natureza e o sistema societal, e que merece ser abordada sob uma ótica integradora. Não há como abordar a natureza sem levar em conta a forma de como tem sido apropriada na modernidade pelos mecanismos econômicos, tecnológicos e culturais impostos pela lógica do mercado. A tarefa dos pesquisadores e dos agentes políticos é de buscar identificar os impasses criados pelo frenético sintoma de Sísifo de produzir, consumir e explorar os recursos da natureza para então desviar buscar evitar o ponto de não retorno.

Para resumir os propósitos do texto: é possível aproximar alegoricamente o alerta feito pelos gregos antigos e pelos indígenas contemporâneos sobre a questão da transgressão aos limites da natureza pelos humanos, muito mais visíveis no antropoceno do que em outras eras; essas violações representam sérios desafios para a manutenção e reprodução das condições de vida no Planeta. Exemplo disso é a atual pandemia e os reflexos das mudanças climáticas sobre o ambiente, tornando inviáveis as situações de vida para imensas parcelas da população.

Vivemos restrições dramáticas, oriundas de contextos pouco favoráveis, para a manutenção de um padrão de diálogo democrático entre as diversas forças políticas e ideológicas que disputam a condução dos destinos das nações. Mas existe a possibilidade de que a inteligência prevaleça sobre a ignorância deletéria que contaminou os espíritos e as mentes dos defensores da morte.

* Dimas Floriani é professor titular sênior – PPGMADE e PPGSOCIO – UFPR. Pesquisador CNPq e Coordenador Acadêmico da Casa Latino-americana (CASLA) de Curitiba. 

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