Audiodescrição: Imagem colorida de uma gota de água projetando uma planta no fundo.

A coluna Ambiente e Sociedade é um espaço de discussão crítica e analítica sobre as questões ambientais contemporâneas, dando ênfase às problemáticas concernentes às transformações para sociedades sustentáveis. Dentre outros, são abordados temas como mudanças climáticas, políticas públicas ambientais, biodiversidade, degradação ambiental urbana e rural, energia e ambiente, Antropoceno, movimentos ambientalistas, desenvolvimento e sustentabilidade, agricultura sustentável e formação de quadros na área.

O Ecologismo e as configurações do bem e do mal na sociedade contemporânea

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Como entender e projetar a influência do ambientalismo e dos ecologistas nas últimas décadas e no futuro, notadamente após a ocorrência no Rio de Janeiro da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, alcunhada de Rio-92? Têm eles uma proposta ética diferente? Caso exista, tem ela pontes de diálogo com os valores presentes na sociedade brasileira?

Valho-me, para as hipóteses que levanto e às conclusões que chego, do estudo longitudinal de minha autoria, intitulado "O que o Brasileiro Pensa do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável", em formato de enquete nacional (pesquisa quantitativa) e de entrevistas com lideranças(qualitativas), desenvolvido e aplicado de quatro em quatro anos, de 1991 a 2012, completando 20 anos de sondagem e análise de como evoluiu, no País neste período, a agenda ambiental e o ideário de militantes e simpatizantes do ambientalismo. (**)

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Ambientalismo e ecologismo

Embora usados indistintamente para denominar tanto o movimento quanto a ideologia, sociologicamente são coisas diferentes.

O ambientalismo se apresenta hoje como um movimento histórico global e universalizante e extrapola em muito o que poderíamos chamar de “defesa do meio ambiente”, reforçado por agendas governamentais e internacionais orquestradas por organismos internacionais bem estruturados (ONU Ambiente, Banco Mundial, BID, União Européia e um corolário de ONGs com atuação global). Seu “framework” é o desenvolvimento sustentável, termo cunhado em 1987 pelo Relatório Brundtland, preparatório à Rio 92.

As conferências que se seguiram à primeira em Estocolmo, há 50 anos, não são chamadas de Earth Summit por mero caso. Seus documentos, tratados e derivações desenham uma nova geopolítica: ricos ou pobres, democráticos e não democráticos, desenvolvidos ou não desenvolvidos, todos são afetados pela lógica e demandas globalizantes da pauta ambiental, exponencialmente catapultada ao topo da lista dos governos devido à problemática das mudanças climáticas.

O ambientalismo se apresenta como a ideologia que junta num tripé o desenvolvimento socialmente justo economicamente responsável e ambientalmente equilibrado. Sua evolução posterior à Rio 92 demonstra que se trata de um movimento extremamente pragmático que busca revestir seus argumentos de teses e aplicações técnico-científicas, bem como de retórica no plano político.

Já o ecologismo pode ser definido como a dimensão mais utópica do ambientalismo, uma fração deste, nicho ocupado por uma ideologia crítica radical ao capitalismo, ao marco civilizacional ocidental cristão, que divulgaram e reforçaram, durante séculos, a superioridade do se humano sobre todas as outras espécies, colocando-a (a natureza) como objeto de sua vontade, um Éden ao seu dispor.

É interessante observar que o ecologismo está na origem do movimento ambientalista mundial- que remonta ao conservacionismo norte- americano, ao movimento pacificista e anti-nuclear, e ao comunitarismo hippie, todos movimentos de contestação do pós-Guerra, e muitas de suas características “contraculturais” ainda permanecem entre os adeptos.

Esta autoatribuída consciência antecipatória produz um imaginário de caráter trágico, dramático, porque não lida com um problema qualquer, mas com a possibilidade de extinção da vida humana, com a inviabilização das formas de vida como as conhecemos hoje no planeta Terra. Trata-se pois de um drama total: uma vez chegada a situação-limite – ultrapassado o turning point, toda a humanidade será afetada e a sobrevivência da espécie estará em cheque.

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Tal perspectiva coloca não só para os ambientalistas ou ecologistas, mas igualmente para toda a sociedade as velhas e conhecidas questões de ordem ontológica, tais como “quem somos?”, para “onde vamos?”, qual o nosso papel na Terra? Qual o sentido da vida?

Encontramos no ideário eclético do ecologismo vestígios de sistemas filosóficos diversos tais como, no plano político os ideais autogestionários dos anarquistas e humanistas do socialismo utópico; no plano científico a ressurgência do holismo que havia perdido terreno para o reducionismo analítico e para o objetivismo científico; uma concepção organicista do mundo e do seu funcionamento como alternativa ao homem-máquina unidimensional, do modelo produtivista industrial.

Uma hipótese chamada Gaia, surgida nos anos 70’com o cientista James Lovelock, oferece nas décadas seguintes, e com o avanço das pesquisas do próprio (com muitas publicações para divulgar sua hipótese), a sugestão teórica e poética “perfeita” sobre uma nova ética, biocêntrica ou ecocêntrica, que pervade e influencia decisivamente o movimento mais radical.

Este ideário afasta-se do ânimo reformista do ambientalismo pragmático e volta-se com mais força para a utopia de uma revolução verde tout court, que prega o esverdeamento das idéias, da política e das cidades, uma nova maneira de comer, vestir, morar, deslocar-se e se relacionar com os seres cientes e senscientes (animais e plantas).

A Hipótese Gaia, de Lovelock, sustenta que a Terra é um organismo dotado de racionalidade própria, um ser-vivo capaz de “sentir” bem como de reagir às agressões humanas. Segundo Lovelock, o ser humano poderá desaparecer da face a Terra, mas Gaia sobreviverá pois tem recursos para autoregenerar-se e eliminar o que ameaça a sua integridade. Eventos sísmicos das camadas magmágticas da Terra e eventos externos como queda de meteoros e a destruição massiva da biodiversidade em eras geológicas passadas, comprovariam a resiliência de Gaia.

Evidentemente, o ser humano é visto aqui como um predador, uma “praga”, espécie egoísta orientada ou desorientada por um desvio crucial: a sua própria separação da natureza.

A pergunta que redime ou condena: Afinal, todos os seres humanos são maus?

Quem são os “homens de boa vontade” na perspectiva do ecologismo radical e ético, muitas vezes também denominado de “ecologia profunda” (deep ecology)?

Primeiramente são os homens e mulheres num suposto “estado de natureza”, comunidades que vivem uma intensa relação com ela, daí a valorização dos povos tradicionais ou originários; os quilombolas, os índios e os “povos da floresta”, assim denominados também os seringueiros, castanheiros, ribeirinhos e grupos extrativistas. Caciques e lideranças indígenas são convocados para nos municiar desse saber que foi esquecido ou corrompido pelas relações capitalistas com os bens naturais. O fenômeno editorial recente de Ailton Krenak e de seu livro “Idéias para Adiar o Fim do Mundo” são um exemplo disso.

Ailton Krenak autor do livro “Idéias para Adiar o Fim do Mundo”
Ailton Krenak autor do livro “Idéias para Adiar o Fim do Mundo”

Em segundo lugar são os homens e mulheres que conseguem, por meio da crítica ecologista, libertar-se do modo produtivista e utilitarista de pensar do capitalismo e portar uma consciência de que tudo está ligado a tudo e que existe um “efeito boomerang” na relação predatória com os recursos naturais. Homens e mulheres de todo o mundo e de todas as classes sociais são convocados a aderir a esta consciência e proclamá-la, numa nova mentalidade e novas práticas.

Estes critérios ou fundamentos éticos então, podem ser resumidos no seguinte: a) o respeito e defesa da vida (como milagre, dom, o que dá sentido a tudo), uma espécie de bioética, se quisermos, onde cada ser vivo tem um papel a cumprir, uma função vital, ecológica importante; b) a crença na interdependência de todos os seres vivos, uma visão interacionista e holista dos fenômenos, incluindo o que entendemos por social; é comum referir-se a um planeta doente “porque a humanidade está doente”; c) a crença num razão cósmica e uma razão natural que se comunicam e interagem para garantir a integridade da vida. Vida que se manifesta na natureza que por sua vez integra o ser humano, que ao fim e ao cabo tem apenas a ilusão de que dela se independentizou.

Muitos autores tendem a ver nestes enunciados uma negação da modernidade e uma volta a um ilusório passado edênico. Pessoalmente acho que são na verdade valores pós-materialistas, e que este “reencantamento da natureza” tem muito mais a ver com a pós modernidade do que com a pré-modernidade. Um fator determinante nesta minha conclusão é o fato de que a crítica feroz ao capitalismo não se estende à ciência. Esta última cada vez mais é a ferramenta potente para solucionar os problemas e apontar caminhospara a regeneração do Planeta.

O mal despersonificado

Na ideologia dos ecologistas não há uma tematização explícita do mal, menos ainda uma versão religiosa do mal: seu mundo não é assombrado por demônios. Assim como não personifica o mal, também não personifica o bem, não tem deus nem diabo.

Os ecologistas que analisei, por meio de entrevistas e escritos não são irreligiosos no sentido forte do termo. Consideram-se portadores de uma “espiritualidade”. Espiritualidade essa, no entanto, administrada individualmente, sem subordinação a qualquer instituição.

Pode-se dizer, portanto que espiritualidade entre os ecologistas é uma espiritualidade livre, avessa a dogmatismos e à institucionalização do sagrado. Pode ser definida como uma disposição essencial, individual, para viver uma experiência intensa de sentimento de pertença à natureza e ao Cosmo.

Na natureza não existe o mal: existem razões biológicas, evolutivas e ecológicas que justificam o comportamento de animais e plantas, lembrando que somos parte disso.

Não se encontra nas narrativas ecologistas uma explicação moral para o fato de que os seres humanos, justamente os mais dotados em termos de raciocínio e cultura, tenham se desviado do caminho certo, ou seja, se separado da natureza. A explicação para o desvio é cultural. Na cultura o problema surgiu, não na natureza, e na cultura deve ser resolvido.

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Para os ecologistas, embora não haja o mal como entidade autônoma, ou personificada, nem a maldade como um atributo inerente à condição humana, é reconhecida uma série de males em “atos praticados” pelos seres humanos contra seus semelhantes contra a natureza.

Todo ato de crueldade contra o próximo, e contra animais e plantas; todo ato violento – a guerra, o terrorismo, a destruição em massa – são vistos sempre como resultado da ética instrumental, aplicada e aperfeiçoada pelo sistema capitalista de produção. Os males são produto da cultura, e se manifestam em atos de soberba, na ilusão da autosuficiência, no desconhecimento de sua “animalidade” e da sua dependência da natureza e de suas leis.

O desperdício, o consumo predatório do recursos não renováveis, as práticas biocidas se devem à ignorância – deficit de consciência ecológica – e aos “maus conselheiros”: modelos mentais e de comportamentos, opções culturais que em algum momento da história os seres humanos fizeram.

À guisa de conclusão

Ao identificar a crise ambiental como uma crise planetária, na qual estão imersas todas as sociedades, mesmo aquelas que não a causaram, o ecologismo também afirma um projeto total. O que o coloca numa posição bem peculiar no universo de movimentos sociais e religiosos ditos pós-modernos. De modo geral, os projetos pós-modernos, e por conseguinte suas ideologias, não têm pretensão de realizar uma nova síntese da cultura, bem ao contrário, não raro afirmam identidades de minorias, da diversidade cultural e dos direitos individuais. A pós- modernidade é assim a afirmação da possibilidade da consciência fragmentada, do relativismo ético e moral.

Ao promover a crença de que tudo está ligado a tudo, ao proclamar a totalidade como a medida do ser humano, o ecologismo se diferencia dos movimentos de cultura fragmentários, característicos do pós- modernismo, conforme estabelecido em ampla bibliografia (Bauman, Lapouge, Domenico De Masi, Umberto Eco, Giddens). Nesse sentido, é preciso prestar atenção ao discurso do ecologismo sobre si mesmo e sobre a afirmação de que o movimento nasceu na “crise de paradigmas” – e na necessidade de constituir um outro, o paradigma ecológico.

Em que se resume este novo paradigma? À primeira vista, uma série de rupturas e de “costuras” inusitadas para um herdeiro da cultura moderno- iluminista: a) a ruptura com a razão dicotômica que opõe religião e ciência, racionalidade e intuição, afirmando em seu lugar o princípio da complementaridade; b) ruptura com o modelo mecanicista do mundo, substituindo-o por um modelo organísmico, onde cada uma das partes carrega informações do todo, não constituindo qualquer delas uma entidade autônoma; c) ruptura com o reducionismo analítico que privilegia as partes e não o todo, necessidade de envidar esforços para compreender as realidades complexas.

Para os ecologistas, a ciência ocidental passou por três estágios: o do infinitamente pequeno, o do infinitamente grande, tendo chegado o momento do infinitamente complexo. Complexidade que está em todos os seres em todos os fenômenos. Lovelock, Lyn Margulis, Maturana, Rachel Carson e outros que se seguiram em propostas mais ousadas são vistos como a “nova ciência”.

Em termos de ocupar um espaço no “mercado das almas” (expressão utilizada pelo historiado José Murilo de Carvalho para descrever o embate concorrencial das religiões no Brasil), o ecologismo não ameaça, muito ao contrário, atrai simpatizantes em todas as alas religiosas, exceto entre as mais antidarwinistas (negaciocinistas em geral).

Não é por acaso que se tornou bem vinda e aliada de peso a Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, primeiro aceno consistente da Igreja Católica para condenar o desenvolvimento econômico socialmente injusto e às custas da destruição do meio ambiente.

Com os argumentos listados neste artigo e as pistas de pesquisa apontadas, posso afirmar que o ecologismo tem muitos mais embates dramáticos nas frentes e arenas políticas no futuro próximo, do que no plano religioso. Os males da civilização por ele identificados requerem uma mudança não cosmética, mas bastante radical do nosso modo de reproduzir a vida e de sustentar uma população que vai somar nove bilhões em breve.

Terão ambientalistas e ecologistas sucesso? É uma história fascinante em curso, e todos somos, de certa forma, protagonistas.

Samyra Crespo
Samyra Crespo: Com os argumentos listados neste artigo e as pistas de pesquisa apontadas, posso afirmar que o ecologismo tem muitos mais embates dramáticos nas frentes e arenas políticas no futuro próximo, do que no plano religioso  

(*) Samyra Crespo é doutora em história social pela USP (1999) e pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins desde 1987. Também atuou como diretora do Programa Meio Ambiente e Desenvolvimento do ISER (1993-2000), como Secretária Nacional de Relações Institucionais do Ministério do Meio Ambiente (2008-2013) e como presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (2013-2016). Atualmente escreve regularmente sobre o ambientalismo no Brasil nos sites jornalísticos Envolverde\Carta Capital e Revista Eco21.

(**) esta é uma segunda versão de artigo orginalmente escrito em 1997, para a coletânea “O Mal à Brasileira”, organizada por mim e pelas antropólogas Patricia Birman e Regina Reyes Novaes, editada em dois volumes pela EduUerj, 1997.

Bibliografia de Referência:

  • Crespo, Samyra: Survey Nacinal: O que o Brasileiro Pensa do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (Relatórios de Pesquisa), MAST\CNPq, MCTI, Ministério do Meio Ambiente, 1991, 1997, 2001, 2006,

2012)

  • Crespo, Samyra: Sincretismo ou Ecletismo Religioso? Notas para um Estudo sobre a Espiritualidade Ecologista, Revista Comunicações do ISER, ano 13, Rio de Janeiro, 1994.

  • Devall, B. Deep Ecology and Radical Environmentalism, in: Dunlap R.E. & Merting A.G.(eds.). American Environmentalism, NY, Taylor & Francis, 1992.

  • Thompson,W.I. (org.) Gaia, Uma Teoria do Conhecimento. Ed. Gaia, São Paulo, sd.

Observação: Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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