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Nativos do Javari na Unicamp evocam a memória e compartilham expectativas

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O Vale na perspectiva de três estudantes indígenas da Universidade

Main Matis, aluno do curso de História: “A gente cresceu na aldeia com nossos pais e até hoje lutamos para não perder o Vale do Javari”
Main Matis, aluno do curso de História: “A gente cresceu na aldeia com nossos pais e até hoje lutamos para não perder o Vale do Javari” (Foto: Antonio Scarpinetti) 

No dia em que a União dos Povos do Vale do Javari (Univaja) anunciou o desaparecimento de Bruno e Dom, 6 de junho de 2022, Main Matis estava em viagem pela Terra Indígena (TI) e sem acesso ao noticiário. Ele trabalhava  na Prefeitura de Atalaia do Norte (AM), dando apoio aos professores do Javari, e estava entregando materiais nas escolas do território. “Quando cheguei à minha aldeia, vi os alunos fazendo desenhos e perguntei o que estava acontecendo. Falaram que estavam homenageando Bruno, que ele tinha desaparecido com um jornalista”, rememora Main.

Após a confirmação do assassinato, o povo Matis, que chegou a ter um conflito com Bruno em 2016, prestou reverência ao indigenista, conta Main. “Tivemos muitas homenagens porque o povo Matis conheceu muito o Bruno. Ele viveu junto conosco, esteve um tempo aqui, dialogando. Mesmo tendo brigas, ele tinha amizade com os povos indígenas, era respeitado.”

Main é um dos cinco estudantes da região do Vale do Javari que estudam na Unicamp. Marta Marubo Comapa também integra o grupo. Ela estava em São Carlos (SP), onde fazia sua primeira graduação, quando recebeu um telefonema da mãe contando do desaparecimento. Com os assassinatos revelados, seu pai, que trabalhava na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), deixou o órgão. “Quando recebemos a notícia do assassinato do Bruno, ele ficou com medo e também saiu porque queria fazer curso de Enfermagem, que era o sonho dele.”

Para a estudante, os crimes revelaram uma grave situação na TI. “O Vale do Javari é uma região muito esquecida pelo poder público. A Funai estava sucateada e a Frente Etnoambiental não tinha verbas para vigiar. As pessoas estavam trabalhando com medo. Desde que [Jair] Bolsonaro se elegeu, a gente sabia que não ia ser fácil e vimos o que vimos.”

Ela, que atuou junto a Bruno em um projeto da Funai, espera que o trabalho do indigenista possa inspirar outras pessoas. “Os Marubo, nós que trabalhamos com ele, ficamos sem chão. Foi um momento muito triste, complicado e revoltante. O Bruno foi um exemplo, um homem que sempre manteve a esperança e determinação de lutar conosco até seus últimos momentos. Ele lutou incansavelmente pelos direitos dos povos indígenas e pela preservação do território. Que ele possa ser lembrado e eternizado.”

O Vale do Javari é a segunda maior área demarcada dos povos originários do Brasil. É também a TI com a maior presença de povos em isolamento voluntário do mundo. Das 26 etnias, apenas sete têm contato com a sociedade não indígena: Marubo, Matis, Matsés/Mayoruna, Kanamari, Kulina Pano, Korubo e Tsohom-dyapa, sendo as duas últimas constituídas de povos de contato recente. A vida no território, a luta por educação, a percepção sobre o assassinato de Bruno e Dom e sobre a situação dos povos na região são motivo de preocupação de Main e Marta, que, atualmente, realiza a graduação na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp.

Marta Marubo Comapa, estudante da FOP: “O Vale do Javari é uma região muito esquecida pelo poder público"
Marta Marubo Comapa, estudante da FOP: “O Vale do Javari é uma região muito esquecida pelo poder público" (Foto: Divulgação)

Bases de proteção

“Para mim, o Vale do Javari foi um ambiente muito bom, tranquilo, com natureza, muita caça e animais diferentes, onde a gente podia conhecer muitos rios e lugares”, conta Main. Até os 17 anos, ele viveu na aldeia Aurélio, uma das duas aldeias do povo Matis. Depois, foi para Atalaia do Norte (AM) a fim de seguir com os estudos. Main conta que antes da demarcação do Javari – concluída em 2001 – a situação era muito perigosa, problema que se tornou menos grave com a instalação de bases de proteção. “A gente cresceu na aldeia com nossos pais e até hoje lutamos para não perder o Vale do Javari, para que não seja como antigamente, quando tinha muitos madeireiros, pescadores, seringueiros e caçadores.”

Marta, por sua vez, conta que nasceu na aldeia São Sebastião, que mudou de local, mas permanece com o mesmo nome. Como Main, ela também sentiu a hostilidade da população de Atalaia quando se mudou para a cidade aos 4 anos. Era comum ouvirem frases como “volte para a sua aldeia”. Ambos foram para a cidade em razão dos estudos, trajetória que muitos jovens percorrem, já que o ensino nas aldeias vai até o quinto ano do ensino fundamental. No caso de Marta, ainda não havia escola indígena na aldeia quando o seu pai decidiu levar a família para Atalaia. “Fui em 1999. Lembro de sofrer preconceito porque era indígena. As crianças faziam bullying. Comecei a não querer mais ir para a escola, porque era um local que me dava medo”, relata. Segundo a estudante, sua mãe, assim como ela, não falava português e tinha receio dos não indígenas. “Quando meu pai saía para procurar emprego, ou mesmo saía para caçar, lembro que a gente tinha que ficar trancada dentro de casa, porque minha mãe tinha muito medo.”

As dificuldades também permeiam a experiência de Main na busca por seguir os estudos, que ele passou a enxergar como uma possibilidade apenas na adolescência. “Eu nasci na aldeia mesmo, onde meus pais vivem. Naquele tempo não tinha professores, nem parcerias como a do CTI [Centro de Trabalho Indigenista]. Eu viviaaprendendo com nossos pais, caçando, pescando e não tinha interesse em estudar porque nem sabia o que era estudo.”

Em 2013, chegaram os primeiros professores à aldeia e, quando Main terminou o quinto ano do fundamental, foi para Atalaia. “Quando nós chegamos à cidade, não nhamos onde morar. Tinha uma casa de apoio e era lotada.” Main relata que morou por um tempo em um quarto, obtido com o apoio da Univaja. “Meus pais ficaram na aldeia e eu conseguia visitá-losno final do ano. É difícil chegar e tem que comprar gasolina. Mesmo assim a gente se virava. Mesmo tendo dificuldade, a gente não desistia.” Main projeta que, ao concluir o curso de História, será possível retornar ao Javari e atuar como professor.

Para Marta, por sua vez, a ideia também é trabalhar na sua região de origem. “Eu moro aqui, mas lá é o meu lar. Um dia vou terminar [o curso] e vou voltar. Eu sei que é muito longe, quando chove falta energia, não tem acesso a internet, então muita gente que vai de fora tem dificuldade para ficar e vai embora. Mas tenho esse sonho, esse objetivo grande dentro de mim: desenvolver projetos para a população, tanto na área da educação como na da saúde”, aponta. O fortalecimento dos órgãos de proteção aos direitos indígenas, segundo Marta, é fundamental.

May Costa em comunidade da etnia Matis: para doutoranda, Estado deve estar mais presente no Javari
May Costa em comunidade da etnia Matis: para doutoranda, Estado deve estar mais presente no Javari (Foto: Divulgação) 

Assim como ela, May Costa, da etnia Tikuna e doutoranda em Antropologia na Unicamp, também espera ver uma maior presença do Estado no território após o crime. Ela desenvolve pesquisa no Javari junto aos Matis e vive em Tabatinga (AM), cidade próxima à TI e local do julgamento do caso Bruno e Dom. “A partida de Dom e Bruno nos traz a reflexão de que, como eles, pessoas que estão trabalhando na causa indígena podem ter o mesmo fim. O governo, o Estado e o poder público deixam a desejar na questão de dar tranquilidade para quem mora e trabalha no Javari. Muita gente teve que desviar suas pesquisas, seu trabalho, com medo de sofrer. Que o Estado faça alguma coisa o mais rápido possível, que não espere mais mortes”, aponta.

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