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Entre a insegurança e a esperança

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Indígenas e parceiros se mobilizam para a proteção do Vale do Javari; liderança da região e antropólogos analisam a conjuntura atual

Na sequência de fotos, cenas da cidade amazonense de Atalaia do Norte, no Vale do Javari, em junho de 2022: manifestação de indígenas, nas duas primeiras imagens; movimentação no porto à espera dos corpos de Bruno e Dom; e a chegada de Amarildo da Co
Na sequência de fotos, cenas da cidade amazonense de Atalaia do Norte, no Vale do Javari, em junho de 2022: manifestação de indígenas (imagens acima); nas imagens abaixo, movimentação no porto à espera dos corpos de Bruno e Dom; e a chegada de Amarildo da Costa, o "Pelado" (no interior da lancha), um dos acusados pelo homicídio 

##Em uma noite do início de junho de 2022, uivos e latidos pouco usuais chamaram atenção dos moradores de uma chácara na zona rural de Atalaia do Norte, no extremo oeste do Amazonas. No dia seguinte, enquanto tomavam café da manhã, eles trocaram impressões sobre a noite perturbadora que haviam passado. Todos sentiam que alguma coisa tinha acontecido, incluindo Adriana Ribeiro. Ela havia se mudado poucos meses antes para o local, junto com o companheiro, Jaime Mayuruna, e o filho, Tumi, a convite do indigenista Bruno Pereira. Pouco tempo depois, correria o mundo a notícia de que Pereira e o jornalista Dominic Phillips haviam desaparecido.

“Foi um sentimento coletivo. Quando, infelizmente, anunciaram o desaparecimento, a genteassociou aquela noite com o triste ocorrido”, rememora Ribeiro, que fez graduação, mestrado e doutorado na Unicamp e é funcionária da Companhia de Saneamento do Amazonas.

Os corpos de Bruno e Dom foram encontrados no dia 15 de junho, depois de dez dias de buscas. Eles haviam sido emboscados por pescadores ilegais quando retornavam de uma viagem pela Terra Indígena Vale do Javari (TIVJ) no dia 5 de junho, Dia do Meio Ambiente. O indigenista acompanhava Dom em uma série de entrevistas que este realizava para um livro que escreveria sobre a Amazônia.

Cenário agravado

Um ano depois do crime que atraiu a atenção mundial para a grave situação dos povos originários e da floresta amazônica no Brasil, os desafios em relação à segurança permanecem. Indígenas e parceiros se mobilizam para a proteção do Javari, cobiçado por invasores dispostos às mais diversas atividades ilegais. A morte encomendada é um medo que ainda ronda as lideranças da área – segundo o que se escuta pelas ruas de Atalaia do Norte, o prêmio pela cabeça de um único deles pode chegar a R$ 80 mil.

Sem trégua na luta contra os grupos que os ameaçam, ativistas oscilam entre a angústia e a esperança quando têm em mente o novo governo federal, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pela primeira vez na história do país, representações indígenas compõem o primeiro escalão do Executivo e conduzem uma pasta que trata exclusivamente dos interesses dos povos originários – o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Contudo, essa composição está sob ataque. No dia 25 de maio, avançou no Congresso Nacional a tentativa de retirar do MPI a atribuição de demarcar terras indígenas como avançou a tentativa de reduzir o escopo de atuação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

A caminho de uma reunião, no dia 15 de maio, Eliésio Marubo, assessor jurídico da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), atendeu a uma chamada de vídeo para conceder uma entrevista ao Jornal da Unicamp. Logo no início da conversa, Marubo vira a câmera para mostrar, ao seu lado, o segurança privado que precisou contratar por conta das ameaças que vem sofrendo. “Agora mesmo estou em deslocamento em um carro com um segurança para poder cumprir minimamente aquilo a que me proponho no movimento indígena”, relata.

“Não há outra alternativa a não ser bancar essa despesa, e isso tem sido extremamente oneroso. Isso vem da ineficiência e do descompromisso do Estado com a garantia da segurança não só minha, mas de outras pessoas que estão sob ameaça. Se não tivéssemos feito essa movimentação, acredito que já teríamos um resultado muito negativo”, afirma.

Marubo e outras dez pessoas ameaçadas da região do Javari aguardam para entrar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). O grupo também demanda ações do governo federal na TIVJ, onde, em um dos mais recentes episódios de invasão, homens armados entraram na aldeia Kanamari Irari 2 ameaçando o cacique. Um dia antes do ocorrido, o líder indígena havia denunciado a extração de madeira ilegal à Polícia Federal (PF).

A professora Artionka Capiberibe
Os professores Artionka Capiberibe e Antonio Guerreiro (Fotos: Felipe Bezerra e Antonio Scarpinetti)

Desafios para o Estado

Em março, o governo federal realizou uma operação para destruir dragas utilizadas para o garimpo no Javari, e foi instalada uma base da PF no porto de Atalaia do Norte, município que concentra mais de 70% da Terra Indígena. No entanto, o assessor da Univaja, bem como ativistas de organizações indigenistas, considera essas medidas como meramente paliativas e reivindica um plano efetivo para conter as ameaças às comunidades indígenas, análise compartilhada por Helena Ladeira, da coordenação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

Ladeira atua no Javari desde 2008. O CTI trabalha com as demandas dos povos indígenas, dando um enérgico apoio, por exemplo, nas atividades de ensino e formação. Entre suas atribuições, a entidade realiza oficinas em parceria com a Univaja e outras organizações indigenistas e de direitos humanos. A última foi em maio. "Fizemos uma oficina com o tema Análise de Risco e Plano de Proteção para Defensores de Direitos Humanos na Amazônia, junto com a Univaja, a Front Line Defenders e a Justiça Global. Foi uma oficina com as lideranças e as associações. Ainda estamos muito preocupados porque, por mais que haja esse esforço para dar teoricamente uma segurança para os indígenas que lá estão, o que temos visto é que isso não está acontecendo e as ameaças ainda são constantes.”

A indigenista analisa que há vontade política do governo federal e uma sinalização de que recursos serão liberados e esforços para a proteção do Javari e suas comunidades serão empreendidos. “Enquanto isso, são pequenos fundos, auxílios financeiros pontuais importantes [que obtemos], mas que não tiram os invasores dali”, conta. As receitas são utilizadas para a compra de equipamentos essenciais, como telefones via satélite, que permitem a comunicação entre os indígenas nos pontos mais remotos do Javari. Esses recursos também contribuem para as missões em que são identificadas as ameaças, para a realização de censos e para o mapeamento da situação da saúde e das escolas nas aldeias.

Ladeira lembra que, em 2021,  frente à ausência  do Estado na região, aprofundada no governo de Jair Bolsonaro, foi criada a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU). A EVU foi uma iniciativa dos indígenas e de parceiros como Bruno Pereira, que se desligou da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) devido ao papel que vinha sendo obrigado a desempenhar sob o governo Bolsonaro. “Ocorre que, ainda hoje, eles estão fazendo o papel do Estado no monitoramento e nas expedições de vigilância”, afirma.

A reportagem tentou contato com o MPI a fim de questionar o órgão sobre a atuação do Estado na região do Javari. Não houve resposta até o fechamento desta edição (30 de maio). 

Eliésio Marubo (ao centro, de camisa azul), assessor jurídico da Univaja, durante coletiva de imprensa depois do desaparecimento de Bruno e Dom: advogado foi obrigado a contratar segurança
Eliésio Marubo (ao centro, de camisa azul), assessor jurídico da Univaja, durante coletiva de imprensa em Atalaia do Norte depois do desaparecimento de Bruno e Dom: advogado foi obrigado a contratar segurança

Violência e sabotagem

Antropólogos e professores da Unicamp, Antonio Guerreiro e Artionka Capiberibe avaliam que os assassinatos de Bruno e Dom explicitaram o desmanche de uma política de garantia constitucional dos direitos indígenas pelo governo Bolsonaro. Foram sabotados os órgãos responsáveis pela política indigenista, assinalam. “Os desafios agora são enormes. É preciso colocar de pé uma política que foi desmontada e avançar”, diz Capiberibe.

Embora o governo Bolsonaro tenha sido devastador, Guerreiro salienta que a violência contra os povos indígenas perpassa a história do país. “Infelizmente [os assassinatos] revelam uma triste história, de longa duração, de ataques aos direitos e à segurança de indígenas e não indígenas que trabalham pela defesa desses direitos. Foram dois assassinatos brutais e que não são fatos isolados. São parte de uma série histórica de assassinatos em diferentes regiões do Brasil.”

Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram registrados 176 assassinatos de indígenas em 2021, 170 em 2020 e 113 em 2019. Além disso, durante o governo Bolsonaro, aumentou o número de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. Foram 263 casos em 2020 e 256 em 2019, ano que registrou um aumento de 141% desse tipo de ocorrência quando comparado a 2018.

Na avaliação do antropólogo, as políticas anti-indígenas e antiambientais dos últimos anos promoveram um aumento da violência. Ademais, no plano ideológico, de acordo com Guerreiro, “recuperaram um velho projeto colonial segundo o qual o único destino para os povos indígenas é a assimilação pela comunhão nacional, essa velha expressão que apavora o Brasil desde o fim do Império e o início da República e que significa o desrespeito sistemático à diversidade étnico-racial e linguística do Brasil”.

Recuperar a política de gestão territorial, mobilizando os recursos necessários para tanto, defende o antropólogo, é fundamental. “Precisamos de uma política de gestão dos territórios indígenas que seja sólida em termos da disponibilidade de recursos humanos e de verbas para a vigilância dos territórios. E que sejam políticas elaboradas pelos povos indígenas que habitam esses territórios, porque são eles os grandes conhecedores da região”, afirma.

A retomada da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (Pngati) é vista como um avanço pelo professor, que considera haver sinalizações positivas no governo federal. “Ao mesmo tempo, a gente não pode se iludir que vai ser tudo muito simples e fácil, porque o lado contrário joga pesado. O principal exemplo é o projeto de lei [PL 490/07] que oficializa a tese do marco temporal e tramita no Congresso”, pondera.

Em 25 de maio, um pacote de medidas desfavoráveis para o meio ambiente e para os povos indígenas avançou no Congresso Nacional.

Frente aos desafios, analisa Capiberibe, organizações do movimento indígena sempre fizeram a proteção dos territórios da forma que puderam. “Isso tem  a ver com sobrevivência. Eles entenderam que, se não protegessem o território de alguma forma, iam desaparecer. Um exemplo, durante o governo Bolsonaro, foi o da etnia Uru-eu-wau-wau, que passou a monitorar as invasões utilizando tecnologias, entre as quais drones. A própria comunidade cerca o local e expulsa os invasores. Mas não deveriam ser eles, arriscando suas vidas, a fazer isso. O Estado precisa garantir a vida dos povos indígenas, seja o governo que for. Isso é um direito constitucional.”

Cenas da manifestação de indígenas em Atalaia do Norte
Cenas da manifestação de indígenas em Atalaia do Norte , em junho de 2022 

Para a antropóloga, uma das ações mais urgentes é o enfrentamento dos grupos armados, ligados ao narcotráfico, que circulam nas fronteiras do país. A dificuldade em combatê-los torna-se evidente na Terra Yanomami, onde há dificuldade em remover os garimpos ligados a facções criminosas.

O endurecimento das regras sobre o porte de armas de fogo e as recentes demarcações de Terras Indígenas pelo governo federal são elencados como medidas importantes. Capiberibe afirma que é preciso, com urgência, reativar a base etnoambiental e criar uma rede de proteção para que as pessoas não sejam vitimadas.

Enquanto os povos indígenas cobram do novo governo federal a recomposição dos órgãos responsáveis pela política indigenista, as audiências e o julgamento dos acusados pelo homicídio de Bruno e Dom prosseguem. Amarildo da Costa Oliveira ("Pelado"), Oseney da Costa de Oliveira ("Dos Santos") e Jefferson da Silva Lima ("Pelado da Dinha") estão presos na condição de suspeitos e devem ir a júri popular.

Ruben Villar ("Colômbia"), acusado de ser o mandante do crime, também está preso. Ele chegou a ser solto em dezembro de 2022 após o pagamento de uma fiança de R$ 15 mil, mas voltou à prisão por descumprimento das medidas impostas para a liberdade provisória. “Colômbia” também é suspeito de ser o mandante do assassinato de Maxciel dos Santos, servidor da Funai morto a tiros em 2019.

Marcelo Xavier, presidente da Funai no governo Bolsonaro, de 2019 a 2022, foi indiciado pela PF por homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Houve o entendimento de que o então responsável pelo órgão indigenista não tomou providências após diversas notificações sobre as ameaças a líderes e ativistas da região.

Para Marubo, é preciso aguardar a conclusão dos julgamentos para fazer comentários sobre o assun to. Afirma, entretanto, que a investigação precisa ser aprofundada. “Foi muito fácil identificar o 'Colômbia' e encontrar o 'Pelado'. Já era público e notório. Mas e o núcleo político que mantém toda essa estrutura? E os empresários que lavam dinheiro para o crime organizado? Nós queremos falar sobre isso, queremos que as autoridades entendam que há todo um sistema ilícito e sujo que precisamos descortinar.”

No dia 5 de junho, ocorrem atos no Brasil, no Reino Unido e nos Estados Unidos em homenagem a Dom e Bruno. As manifestações também chamam atenção para a situação dos povos indígenas no país, alertando para desrespeito a direitos e para recentes ataques, como o PL do marco temporal. O campus da Unicamp no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, é um dos sete locais onde ocorrerão as manifestações. O ato será no Teatro de Arena, às 13 horas.

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