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Do ‘museu do Antropoceno' ao ‘asilo da biodiversidade'

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Mudanças climáticas tornarão a Amazônia andina e a Mata Atlântica principais abrigos para mamíferos terrestres sul-americanos

O professor Mathias Pires: “Precisamos estar conscientes de que, se escolhermos manter tudo do jeito que está, estamos aceitando ir para o pior cenário”
O professor Mathias Pires: “Precisamos estar conscientes de que, se escolhermos manter tudo do jeito que está, estamos aceitando ir para o pior cenário”

Estudo realizado no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp concluiu que as florestas tropicais úmidas localizadas em áreas elevadas serão o principal abrigo para mamíferos terrestres da América do Sul afetados pelas mudanças climáticas. De acordo com pesquisa, até o final deste século, a Amazônia andina atuará como um verdadeiro “museu do Antropoceno”, hospedando uma biodiversidade inexistente em outros locais do planeta, enquanto a região sul da Mata Atlântica funcionará como um “asilo da biodiversidade”, que irá proteger os últimos remanescentes de biotas gravemente ameaçadas.

Realizado pela pesquisadora Lilian Sales durante seu pós-doutorado no IB, em parceria com o docente Mathias Pires, o estudo acaba de ser publicado no periódico Conservation Biology. O objetivo de ambos foi investigar quais regiões da América do Sul se tornarão refúgios climáticos para mamíferos terrestres não voadores, ou seja, locais adequados à sobrevivência de determinadas espécies nos dias de hoje e que continuarão apropriados no futuro, a despeito das previsões sobre as mudanças climáticas. A principal vantagem desses refúgios é o fato de que os grupos ali existentes não precisarão migrar para viverem em um ambiente adequado, o que deve garantir a sua sobrevivência no longo prazo.

Ainda assim, o estudo revelou que algumas espécies não conseguirão chegar a análogos climáticos – climas similares àqueles dos locais onde ocorrem hoje – se precisarem migrar. Esse é o caso dos primatas Callicebus medemi e do sagui-da-serra-claro, presentes na Colômbia e na Mata Atlântica, respectivamente. O problema, explica Pires, é que, para conseguirem colonizar novas regiões, esses animais precisariam enfrentar um grande desafio de acessibilidade. “Às vezes até existe uma região que seria adequada, em um local relativamente próximo de onde a espécie vive, mas o ambiente entre essas áreas foi convertido em plantação de soja ou pastagem, por exemplo. Com isso, os animais que necessitam de florestas não conseguirão atravessar [tais espaços] para colonizar esses novos locais”, afirma.

Abrigos identificados

Não por acaso, a maior parte dos refúgios identificados pela pesquisa se concentra em regiões remotas e altas, que sofrem menor pressão econômica devido à dificuldade de acesso.

Em um cenário moderado de mudanças climáticas, no qual haveria um aumento de até 4,4ºC na temperatura média global, a região amazônica irá proporcionar refúgios para 55% das espécies sul-americanas. Já um cenário extremo – com elevação de até 5ºC na temperatura da Terra – tornaria a Amazônia a casa de 58% das espécies do continente.

Isso significa que, das 612 espécies de mamíferos analisadas na pesquisa, até 356 poderão encontrar condições adequadas para a sua sobrevivência na Floresta Amazônica. Somente a sua porção oeste, onde estão localizadas as florestas de grandes altitudes dos Andes, poderá abrigar 24% dos refúgios, hospedando até 58% das espécies de mamíferos da região.

No caso da Mata Atlântica, serão as áreas da Serra do Mar e da Serra do Espinhaço que fornecerão a maior parte dos refúgios para os grupos locais. Embora apresente uma área pequena de refúgio quando comparada com a região amazônica – cerca de 11% a 14% do total do continente –, esse bioma atuará como refúgio exclusivo para cerca de 41% a 43% da sua biota. Há de se considerar, de toda forma, que, além da previsão de que esses refúgios desaparecerão em um cenário de mudanças climáticas extremas, o longo processo de devastação verificado reduziu o bioma a menos de 30% do seu tamanho original, o que provocou a virtual extinção de muitas de suas espécies.

De acordo com Mathias Pires, algumas estimativas sugerem que, na Serra do Mar inteira, existam no máximo 200 indivíduos de onça pintada. Isso dificulta o processo de busca por um parceiro para reprodução, uma vez que aquele animal precisa percorrer centenas de quilômetros – muitas vezes sem sucesso – até encontrar outro indivíduo e ainda cria um grande problema biológico. “Do ponto de vista genético, as populações desses animais acumulam mutações e doenças porque não há diversidade suficiente. Então, mesmo protegendo essas áreas, talvez o tempo de sobrevida dessas espécies na Mata Atlântica não seja tão longo”, lamenta o professor.

Algumas das 612 espécies de mamíferos analisadas na pesquisa: áreas elevadas serão o principal abrigo
Algumas das 612 espécies de mamíferos analisadas na pesquisa: áreas elevadas serão o principal abrigo

Apelo à conservação

Além da Amazônia, dos Andes e da Mata Atlântica, os autores também avaliaram outras duas regiões biogeográficas sul-americanas: a Diagonal Seca, que vai da Caatinga até a Patagônia – passando pelos biomas do Cerrado, Chaco e Monte – e a Norte Seca, que se localiza no noroeste da América do Sul, onde fica a Venezuela. Apesar de as previsões indicarem que as duas regiões serão extremamente afetadas pelas mudanças climáticas, tornando-se ainda mais secas e quentes, ambas oferecerão refúgios importantes para a biodiversidade.

A Diagonal Seca, por exemplo, proporcionará abrigo para mais da metade dos mamíferos da América do Sul em um cenário moderado e para 27% em um cenário extremo, hospedando 23% da área total de refúgios do continente e proporcionando abrigo exclusivo para até 69 espécies. O Norte Seco, por sua vez, contará com refúgios para até 21% de todos os mamíferos sul-americanos, oferecendo abrigo para até 60 espécies locais. No entanto, enquanto algumas espécies das regiões secas poderão encontrar abrigos em outras regiões biogeográficas, muitos grupos existentes em florestas não encontrarão refúgios em outros locais.

Exemplo disso são algumas espécies endêmicas da Mata Atlântica e da Amazônia, como o macaco-prego-galego e outras espécies menos conhecidas de roedores e marsupiais que só ocorrem nessas regiões. “Muitas espécies que existem na Diagonal Seca entram nas florestas. Então, elas podem encontrar habitats adequados em outros locais. Entretanto, partes da Amazônia Andina e das florestas de altitude da Mata Atlântica têm espécies endêmicas.

Como as espécies não têm para onde fugir, proteger esses refúgios climáticos é essencial para a sobrevivência delas”, constata Lilian Sales.

Uma boa notícia

A boa notícia é que proteger esses refúgios climáticos demandará um investimento relativamente modesto. Como são locais que têm boas condições para a sobrevivência das espécies e contam com uma topografia que diminui o interesse comercial, há menor incerteza em relação às estratégias de conservação, entre as quais a implantação de áreas de proteção ambiental. Por outro lado, a maior parte desses locais encontra-se fora dos limites de unidades de conservação, o que pode ameaçar a sua capacidade de amortecer os futuros efeitos das mudanças climáticas.

Conforme apontou a pesquisa, as áreas protegidas da América do Sul abrigam menos de 6% do total de refúgios para mamíferos terrestres, o que deixará até 237 espécies fora de unidades de conservação. Se nada for feito, a maior parte dos grupos contará com menos de 2% de refúgios protegidos e, mesmo nas regiões da Amazônia e da Mata Atlântica onde os abrigos estão relativamente mais bem resguardados, apenas 5% deles encontram-se dentro de áreas protegidas. “Se as políticas de conservação não começarem a ser implantadas em uma escala regional e nacional, a gente vai perder muito em termos de biodiversidade, linhagens evolutivas e história natural”, alerta a pesquisadora.

Mais do que isso, as mudanças no padrão de distribuição das espécies poderão gerar efeitos em cascata que impactarão a qualidade de vida dos próprios seres humanos, que se beneficiam dos serviços ecossistêmicos proporcionados pela biodiversidade. Grandes carnívoros, por exemplo, regulam o tamanho populacional de suas presas, diminuindo as chances de esses animais transmitirem doenças ou invadirem produções agrícolas. Primatas, por outro lado, dispersam as sementes das frutas que consomem, contribuindo para a regeneração das florestas onde vivem e para a consequente regulação dos estoques de carbono.

Para se ter uma ideia, em um estudo de 2020 produzido em parceria com a professora Laurence Culot, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Sales e Pires concluíram que a redistribuição de espécies de primatas poderá resultar na não dispersão de bilhões de sementes de um tipo de maçaranduba a cada estação frugívora. “É nessa ordem de grandeza o tanto de sementes que esses animais estão ingerindo e dispersando todo ano para uma única espécie de árvore”, comenta Pires. “E aí, sem esses dispersores, quem teria que se responsabilizar pela regeneração da floresta? A gente! Teremos que investir dinheiro para recuperar as florestas quando já existem animais que fazem isso naturalmente em suas atividades diárias”, provoca o docente.

A pesquisadora Lilian Sales: “Proteger os refúgios climáticos é essencial para a sobrevivência das espécies”
A pesquisadora Lilian Sales: “Proteger os refúgios climáticos é essencial para a sobrevivência das espécies”

Cenários do IPCC

A decisão por analisar refúgios climáticos de mamíferos terrestres se deu pelo fato de que esses animais se deslocam por terra, o que torna mais fácil simular a sua distribuição pela paisagem, diferentemente das espécies voadoras e migratórias. Além disso, esse é um dos grupos de animais mais bem estudados da América do Sul, o que facilita a geração de mapas de distribuição, algo que requer uma grande quantidade de informações sobre as espécies analisadas. De acordo com os pesquisadores, existe uma deficiência muito grande de dados sobre a biodiversidade da América do Sul, fruto da ausência de financiamento para pesquisa de campo em locais de difícil acesso.

De outra parte, análises computacionais como a que identificou os refúgios do continente demandam um investimento relativamente baixo: apenas um bom computador para rodar as análises. O que os autores fizeram foi combinar o uso de modelos de distribuição de espécies e mapas de distribuição obtidos na base de dados da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) com filtros sobre o tipo de habitat disponível em cada região a partir de projeções sobre mudanças socioeconômicas.

O primeiro aplica a técnica utilizada para determinar a probabilidade de uma espécie ocorrer em dado ambiente, com base em informações como temperatura, altitude e latitude do local e interações mantidas com os demais organismos. O uso de filtros, por sua vez, visa mapear os potenciais usos do solo no futuro e identificar áreas que se tornarão inabitáveis para os animais devido à conversão de habitats naturais em cidades, plantações ou pastagens.

Para projetar a distribuição das espécies no futuro, os autores utilizaram dois cenários climáticos um moderado e outro extremo elaborados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) que elabora possíveis cenários sobre a emissão de dióxido de carbono (CO2). Para gerar esses cenários – projetados para o período que vai de 2080 a 2100 –, os climatologistas do IPCC criam modelos a partir de certas premissas que podem vir a acontecer ou não, a depender do tipo de comportamento a ser adotado pela humanidade.

No caso do cenário moderado, as últimas décadas do século testemunharão um aumento de algo entre 1,7ºC e 4,4ºC na temperatura média global, fruto de um pico na emissão de gases do efeito estufa seguido pelo equilíbrio entre o uso de fontes de energia fósseis e o de fontes renováveis. Já no cenário extremo, conhecido como business as usual (“tudo como sempre”, em tradução livre), a população mundial continuará em crescimento contínuo, o que, associado ao uso cada vez maior de fontes de energia fósseis, causará um aumento de algo entre 2ºC e 5ºC na temperatura do planeta.

Para o professor Pires, mover-se em direção a um ce- nário mais otimista depende da realização de mudanças em grande escala no comportamento da sociedade, algo difícil de ocorrer, mas factível. Isso inclui a chamada “transição energética”, com uma diminuição da dependência em relação a combustíveis fósseis, um uso mais consciente do solo, evitando a subutilização de grandes extensões de terra, e a recuperação de áreas de vegetação natural, que são importantes drenos de carbono.

“Tudo isso é plausível. Ninguém acha que a gente vai, de uma hora para a outra, parar de comer carne ou de usar carro, mas precisamos estar conscientes de que, se escolhermos manter tudo do jeito que está, estamos caminhando para o pior cenário. E, com isso, estaremos condenando outras espécies, além da nossa própria espécie”, comenta.

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