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Campinas,
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Uma farinha de cará sem aditivos

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Produto desenvolvido pela Unicamp e Ufam melhora a renda e a nutrição da população de município amazonense

Produtos derivados dos carás branco e roxo (em primeiro plano): sem adição de produtos químicos

Um projeto de pesquisadores da Unicamp e da Universidade Federal da Amazônia (Ufam) possibilita um aumento de renda da população de Caapiranga (AM), por meio da produção local de uma farinha sem aditivos e de maior durabilidade, desenvolvida a partir do cará — tubérculo amazônico rico em carboidratos, fibras e vitaminas do complexo B. Situado a 185 km de Manaus por via fluvial, o município tem pouco mais de 13 mil habitantes. A agricultura familiar responde pela produção de cerca de 4 mil toneladas por ano do cará, mas dificuldades no transporte e muita variação no preço pago pelo alimento.

“O cará é transportado por cerca de seis a oito horas de barco até Manaus, com um gasto de combustível elevado. Na cidade, o produto fica exposto no ‘mercadão’, onde parte acaba brotando, ocasionando perdas”, aponta a professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp Maria Teresa Clerici, responsável pelo projeto. Segundo a docente, o tubérculo é composto de 80% de água e, quando transformado em farinha, sua vida de prateleira se estende por mais de um ano. “Eles poderiam não apenas comer os produtos como também comercializá-los”, aponta Clerici.

A iniciativa surgiu quando o professor Pedro Campelo, da Ufam, realizou pós-doutorado na Unicamp sob supervisão da professora. Os pesquisadores desenvolveram um projeto de extensão denominado “Fibras e amidos de tu- bérculos ainda não comercializados”, que recebeu apoio financeiro da Fundação Cargill.

Gustavo do Nascimento, orientando de mestrado de Clerici, também participa da iniciativa. Sua dissertação, intitulada “Do roçado ao processamento: desenvolvimento de farinhas de cará-de-espinho (Dioscorea chondrocar- pa Griseb) e possíveis aplicações” é um dos resultados do projeto. “A ideia é reconhecer o papel dos carás dentro da soberania alimentar da região. Em Caapiranga, os carás branco e roxo são muito importantes. Trabalhar com esses tubérculos amazônicos mostra o seu potencial nutritivo para a alimentação regional, além de valorizar a ligação da população com a cultura desses alimentos.”

A professora Maria Teresa Clerici e o orientando Gustavo do Nascimento em laboratório da FEA: iniciativa conta com o apoio da população de Caapiranga
A professora Maria Teresa Clerici e o orientando Gustavo do Nascimento em laboratório da FEA: iniciativa conta com o apoio da população de Caapiranga

A farinha

Segundo Clerici, a população recebeu bem a ideia da produção de farinha e aprovou os produtos desenvolvidos, entre os quais biscoitos. Agora, a equipe de pesquisadores busca financiamento para a construção de casas de farinha – locais tradicionais onde os produtos in natura são processados.

A produção da farinha, explica a professora Clerici, é simples e não utiliza nenhum aditivo. Primeiro, o cará é lavado e descascado. Nesse estágio, fica sempre imerso em água e é submetido a um choque térmico em água fervente para inativar a enzima que causa escurecimento – método conhecido como branqueamento. Por fim, está pronto para ir à secagem e ser triturado.

“O único ingrediente é o cará. Algumas farinhas industriais utilizam aditivos. No nosso procedimento, contudo, isso não ocorre. A farinha é obtida sem produtos químicos, pois o branqueamento é feito apenas com água quente. Consideramos fundamental não colocar aditivo em um processo tradicional”, diz Clerici. 

A professora Anete de Souza (à esquerda), do CBMEG: marcadores moleculares atestam a procedência dos tubérculos
A professora Anete de Souza (à esquerda), do CBMEG: marcadores moleculares atestam a procedência dos tubérculos

Identificação geográfica

Outro eixo do projeto diz respeito ao mapeamento genético dos carás de Caapiranga. A professora Anete de Souza, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp, coordena esse trabalho, que envolve a criação de marcadores moleculares para identificar a população de carás do município e, dessa forma, atestar que a farinha é da localidade. “O marcador molecular identifica perfeitamente qualquer indivíduo e isso pode ser feito com todo organismo vivo. Essa ferramenta pode ser utilizada para conhecer uma população e sua diversidade.”

Para a identificação geográfica, foi desenvolvida uma biblioteca de marcadores moleculares das espécies. Souza e sua equipe, no CBMEG, utilizam as folhas do cará para esse fim, inicialmente extraindo delas o seu DNA. “Com procedimentos moleculares, conseguimos pegar pedacinhos de DNA cujas sequências nos permitem identificar rapidamente o genoma. É o mesmo princípio dos testes de paternidade”, elucida.

Na etapa posterior, foi coletado o material de cerca de 50 indivíduos da espécie para a análise da população. “Temos diferentes alelos, bandas, marcadores, e fazemos a frequência de cada um deles. Quando analisamos material de outro lugar, comparamos para ver se cabe nessa população, porque ele pode ter bandas completamente diferentes e, nesse caso, constatamos que não é daquela região.”

Com as diversas frentes de análise do projeto, os pesquisadores salientam a importância dos estudos acerca do tubérculo para a comunidade local. Os cientistas acreditam, também, que os resultados tenham potencial para subsidiar políticas públicas de preservação do meio ambiente e da produção tradicional.

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