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Aliados no combate ao câncer de boca

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Professor da Unicamp é um dos autores de manual de prevenção da doença elaborado pela OMS

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A ausência de sintomas no estágio inicial do câncer de boca é fator de atraso no diagnóstico (Foto: Antoninho Perri)

A interrupção dos hábitos de beber e de fumar, combinada com um diagnóstico precoce, é a melhor forma de reduzir a incidência do e a morte por câncer oral. Essa é a principal conclusão do IARC Handbooks Volume 19: Oral Cancer Prevention, um manual de prevenção do câncer de boca elaborado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês) da Organização Mundial de Saúde (OMS). O trabalho, que será disponibilizado em 2023, teve seus resultados mais importantes antecipados em um relatório do The New England Journal of Medicine e contou com a coautoria de Alan Santos-Silva, docente da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp.

Santos-Silva é um dos dois pesquisadores latino-americanos selecionados para participarem da produção do Handbook, que contou ainda com a contribuição de Luiz Paulo Kowalski, cirurgião oncológico da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em estomatologia, área voltada a prevenir, diagnosticar e tratar doenças orais, o professor da FOP relata que, embora as conclusões pareçam óbvias, as políticas de saúde pública ainda falham quanto a essas medidas de prevenção. “Imagina-se que uma pessoa que bebeu ou fumou a vida toda não terá o risco diminuído se parar, mas o trabalho mostrou que poucos anos sem consumir esses produtos reduz de modo impactante as chances de ter a ou morrer da doença”, revela.

Para chegar a essa conclusão, a IARC reuniu um grupo de trabalho com 25 especialistas de 14 países que registram uma alta incidência de carcinoma oral, a 16ª neoplasia mais comum do mundo. Ao longo de 24 meses, os pesquisadores realizaram uma metanálise sobre estudos clínicos já publicados na literatura científica envolvendo centenas de milhares de pacientes e, entre outros dados, descobriram que, após quatro anos sem fumar, as chances de desenvolver a doença sofrem uma queda de 35%. Por sua vez, após 20 anos de abandono do tabagismo, os riscos se tornavam semelhantes ao de uma pessoa que nunca havia fumado.

Atualmente, a maior parte dos casos de câncer de boca no Brasil e no mundo é descoberta tardiamente, o que afeta as chances de sobrevida. Enquanto pessoas diagnosticadas no início da doença têm quase 100% de possibilidade de se curar, para aqueles que descobrem a doença no quarto estágio, as taxas são de apenas 25%. Além disso, explica Santos-Silva, mesmo quem responde bem ao tratamento, que inclui radioterapia, quimioterapia e cirurgias drásticas, acaba marcado por uma péssima qualidade de vida. “Falta saliva, elas não conseguem abrir a boca e a capacidade de se comunicar fica reduzida porque a língua também pode ter de ser removida cirurgicamente”, exemplifica.

Foto de um homem em uma mesa de trabalho. Ele é branco, tem o cabelo curto e castanho, barba rala e usa camiseta azul escura
Alan Santos-Silva, docente da FOP: “É hora de inverter os pesos e investir muito mais em divulgar conhecimento” (Foto: César Maia/Divulgação)

Uma doença silenciosa

O principal motivo para o atraso no diagnóstico do câncer de boca é o fato de a doença não apresentar sintomas em seu estágio inicial, como dores ou sangramentos. Adicionalmente, os sinais de que o paciente pode estar em vias de desenvolver um tumor são frequentemente ignorados pelos profissionais da saúde, que não têm o costume de realizar o exame clínico oral mesmo em grupos de risco. De acordo com o docente Santos-Silva, as chamadas desordens orais potencialmente malignas, que só podem ser identificadas por um profissional bem treinado, são frequentes e antecedem quase todos os tipos de câncer de boca.

“É um exame que toma um minuto e que, se fosse feito nos pacientes de alto risco, de modo consistente por todo clínico, dentista ou médico, reduziria as taxas de morte drasticamente”, adverte. “Qualquer alteração de cor e textura na mucosa, como manchas brancas e vermelhas ou feridas que não cicatrizam em um período entre 7 e 14 dias, são sinais de que esse paciente deve ser encaminhado a um especialista”, aponta o docente, ressaltando que a a biópsia dessas desordens é a única forma de detectar o câncer de boca em seu estágio inicial, uma vez que não existem ferramentas de rastreio para esse tipo de carcinoma. 

No caso de países localizados na Escandinávia, América do Norte e Europa Ocidental, embora as políticas contra o comércio e propaganda tenham reduzido o consumo de tabaco e álcool nas últimas décadas, não se verificou uma redução da incidência da doença. O que o estudo da IARC validou é o fato de que o papilomavírus humano (HPV), mesmo tipo de vírus causador do câncer de colo de útero, é o responsável pelas altas taxas de carcinoma de boca nessa população, devido à prática de sexo oral desprotegido. No entanto, como o HPV é uma infecção não detectável, ela não apresenta os sinais potencialmente malignos, o que significa que o tumor é descoberto apenas quando já está em metástase para o pescoço.

Além disso, enquanto a doença quando causada por álcool e tabaco leva uma vida para se desenvolver, atingindo idosos a partir dos 65 ou 70 anos de idade, o câncer causado por HPV é uma doença de jovens, com pacientes com idade média de 40 anos. “E, aí, há outro impacto. Se reconhecemos que dentistas e médicos estão diagnosticando tardiamente mesmo pessoas que bebem e fumam, imagina a dificuldade que é para um clínico pensar que um jovem que não fuma ou bebe possa ter essa doença. Então, são pacientes diagnosticados muito tardiamente e que respondem muito mal em termos de sobrevida”, lamenta.

FERRAMENTA PROFISSIONAL

Os resultados obtidos pela metanálise embasaram a produção do IARC Handbooks Volume 19: Oral Cancer Prevention, que deverá servir como uma ferramenta de apoio a profissionais de saúde. Seu conteúdo traz uma série de protocolos com as melhores formas de intervir na prevenção da doença, incluindo maneiras de orientar os pacientes a reduzirem o consumo de tabaco e de álcool, especialmente o destilado, chamada de intervenção primária. Contém ainda informações sobre a realização do exame clínico oral, considerado a melhor forma de garantir o diagnóstico precoce, também conhecida como prevenção secundária.

A principal conclusão do grupo de trabalho envolvido no manual é que tão ou mais importante que políticas públicas de eliminação das causas é a atuação dos médicos e dentistas. “A indústria do tabaco, o lobby do álcool e a chegada do HPV nos fazem pensar que é hora de inverter os pesos e investir muito mais em divulgar conhecimento sobre a necessidade de examinar o paciente. Porque acabar com esses fatores depende de dinheiro público e de esferas mais difíceis de atuação para nós enquanto profissionais de saúde. Por isso, o exame físico talvez seja muito mais transformador para proteger essas pessoas com risco de câncer”, recomenda.

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