Edição:
679
Campinas,
a
Acesse a íntegra da edição

'A visada política e ética sempre foi presente na atividade de pesquisa e de ensino do Marcos'

Página
8
Edição de imagem

Jeanne Marie Gagnebin escreve sobre trajetória de Marcos Muller

Foto de um homem que aparece da cintura para cima. Ele está de costas, está usando uma camisa escura e chapéu. Ele está caminhando em um jardim.
Marcos Muller em Berlim, em junho de 2014 (Foto: Fábio Nolasco)

Pela intermediação da jornalista Liana Coll, o Jornal da Unicamp me envia algumas perguntas sobre a vida e o trabalho do meu marido, o professor Marcos Lutz Müller, falecido em 15 de setembro de 2020. Para mim, não é fácil responder, mas tento fazê-lo com simplicidade e honestidade.

A decisão de traduzir do alemão para o português a “Filosofia do Direito” de [Georg Wilhelm Friedrich] Hegel foi tomada por Marcos no início dos anos 1990. Ele procurava traduzir um texto cuja importância filosófica não era só incontestável, mas que teve também uma relevância política na história dos Estados europeus depois da Revolução Francesa e na procura por constituições democráticas. Com isso, também desejava dar material de reflexão filosófica e política para a construção democrática brasileira depois da ditadura.

A visada política e ética sempre foi presente na atividade de pesquisa e de ensino do Marcos, que tinha se autoexilado durante a ditadura militar, permanecendo 12 anos na Alemanha, onde concluiu seu doutorado – e onde nos conhecemos. Não tanto em cursos sobre Hegel, mas muito mais em concertos com obras de Bach ou de Mahler. Marcos amava a música e me convidou a escutar com ele. Das universidades de Heidelberg e de Ber- lin, Marcos levou para o Brasil uma recepção muito mais filosófica dos escritos de [Karl] Marx (não só militante ou partidária), interpretação que remetia a uma leitura histórica e crítica de Hegel, apostando no teor emancipatório deste autor.

Essa tarefa (autoimposta) de tradução o ocupou muitos anos, também porque ele acompanhou a tradução com notas filológicas, conceituais e históricas que exigiram muitas pesquisas e que formam, agora, um ver- dadeiro comentário da obra, precioso e único para leitores brasileiros. O trabalho avançou lentamente. Foi auxiliado por numerosos cursos sobre a filosofia de Hegel, com traduções parciais da obra em cadernos do IFCH [Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp]; havia ainda outros cursos e outras tarefas, em particular muitas orientações sobre diversos temas, tanto no mestrado como no doutorado. Esse trabalho de orientação foi levado muito a sério por Marcos, que acompanhava, lia e corrigia com cuidado nas margens dos exemplares entregues pelos orientandos.

Ele foi ainda um verdadeiro orientador, rigoroso e generoso, dando à formação dos orientandos uma importância que, hoje, me parece menos presente, infelizmente, espremidos que somos pela necessidade de “produzir” (muitos artigos que poucos leem) em detrimento do ensino e da orientação/formação.

A dificuldade da empreitada se revelou maior do que ele tinha pensa- do, uma experiência frequente quando se enfrenta uma pesquisa filosófica com profundidade, isto é, não só com admiração e repetição, mas com questões sobre hipóteses, conclusões, afirmações e, eu diria, também sobre lacunas e silêncios. Assim, a “Filosofia do Direito” ocupou muito a vida do Marcos e lançou várias vezes uma sombra nem sempre refrescante sobre a vida familiar, porque tomava muito tempo e muita energia do marido e do pai. Mas também permitiu belas viagens, como quando nos encontramos todos em Veneza [Itália] (em 1998), depois de Marcos ter ficado com uma bolsa em Urbino [Itália], estudando com Domenico Losurdo.

Nesse contexto, devo dizer que a publicação, em maio de 2022, tão cuidadosa e bonita, do volume da “Filosofia do Direito” pela Editora 34, nos encheu, às minhas duas filhas e a mim, de orgulho e alegria. E manifesto mais uma vez minha gratidão a três ex-doutorandos de Marcos Müller: Fábio Mascarenhas Nolasco, Emmanuel Nakamura e Luíz Fernando Barrére Martin; assim como ao amigo e editor Alberto Martins, por terem terminado a revisão das notas escritas pelo Marcos – mas que ele não teve tempo de reler até o fim. Sem eles, nunca esse trabalho poderia ter sido publicado. Formamos uma pequena equipe solidária e sólida: prova da importância deste livro e, igualmente, do afeto e do respeito que todos nós nutrimos pelo tradutor.

Eu, pessoalmente, não sou nada especialista em Hegel, não ajudei na tradução. Às vezes, Marcos me chamava para perguntar sobre dificuldades de sintaxe alemã ou sobre possibilidades alternativas de tradução, mas somente isso. Em compensação, traduzimos juntos o texto póstumo de Walter Benjamin, as teses “Sobre o conceito de história”, tentando nos guiar por uma certa literalidade desse escrito, para prevenir interpretações abusivas. Michael Löwy escolheu nossa tradução no seu livro sobre as teses (Walter Benjamin: aviso de incêndio).

Há uma certa imagem (ficcional) do brasileiro dito típico à qual Marcos nunca correspondeu, respondendo muito mais à outra imagem chavão, àquela do alemão sério e absoluto. Seus ancestrais vieram em 1844 da Alemanha do Sul, eram camponeses pobres cujas batatas congelaram no chão durante dois invernos seguidos. Talvez mais que o samba e a ca- chaça, sejam essas origens difíceis, de pobreza, violência ou mesmo, pior ainda, de escravidão que formam os traços comuns dos brasileiros e que deveriam nos ajudar a lutar por uma democracia verdadeira.

Campinas, outubro de 2022.

twitter_icofacebook_ico