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Para que tragédias não se repitam

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Grupo multidisciplinar da Unicamp investiga danos e riscos associados a barragens

Foto de mostra os pés de uma criança enterrados na lama. Ele usa botas, bermuda branca e está segurando uma galinha que aparece de cabeça para baixo.
Morador de Mariana durante resgate depois de rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco (Foto: Pedro Vilela/Divulgação)

Do sal que tempera nossa comida aos me- tais nos smartphones, é inegável que os minerais trouxeram benefícios para a civilização. Mas, se é verdade que eles ajudaram a moldar o mundo contemporâneo, igualmente relevantes são as consequências de sua extração para o planeta. No Brasil, esses efeitos ganharam evidência com sucessivas tragédias envolvendo o rompimento de barragens, que causaram centenas de mortes e impactos ambientais difíceis de mensurar. Pensando em auxiliar na mitigação dos danos causados e na prevenção de novas tragédias, pesquisadores da Unicamp criaram o Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos Associados a Barragens (Criab), do Instituto de Estudos Avançados (IdEA).

As estruturas que armazenam os rejeitos do beneficiamento do minério são muito frágeis porque são construídas com o próprio resíduo. Na medida em que a mineração avança, a em- presa mineradora acrescenta novas camadas ao dique de contenção inicial, processo conheci- do como alteamento, aumentando a pressão na base e gerando desestabilização. “Nos últimos 20 anos, a mineração aumentou muito e barragens que tinham 30 metros, agora, possuem 80. E, quando não há um monitoramento adequado, elas se rompem facilmente”, explica Jefferson Picanço, docente do Instituto de Geociências da Unicamp, que coordena o Criab.

Concebido em 2019 após o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, o grupo trabalha com a perspectiva de que esses rompimentos são consequências de a mine- ração moderna ter se estabelecido em um contexto colonizador, especialmente na América Latina.

Para o professor José Mario Martínez, que preside o Conselho Científico e Cultural do IdEA e integra o Criab, mesmo com regulamentações, temas envolvendo riscos humanos não deveriam ficar sob responsabilidade da iniciativa privada. “Há uma dinâmica diferente, porque as barragens estão nas mãos de mineradoras, cuja lógica é a do lucro, o que gera conflitos. Isso independe das regras, porque leis podem ser violadas, insuficientes ou mesmo uma combinação das duas coisas”, alega.

Segundo Picanço, a construção dessas estruturas representa uma interferência porque trava o curso do rio, impedindo o fluxo de peixes e sedimentos, e provoca efeitos psicológicos negativos nas comunidades ao redor. “A população ribeirinha do Vale do Rio Paraopeba [que banha Minas Gerais] vive com medo de novos rompi- mentos. A relação com a mineradora não é boa e o território foi afetado tanto do ponto de vista ambiental como social. Uma aluna chegou a dizer que o desastre representou um tsunami de tristeza que se alastra pelo Vale”, lembra.

Atuação multidisciplinar

Atualmente, o Criab é um grupo multidisciplinar, com geólogos, matemáticos, jornalistas, antropólogos, biólogos, engenheiros, linguistas, entre outros especialistas, está lançando um livro com uma coletânea de artigos sobre os resultados das pesquisas. De acordo com a linguista Claudia Pfeiffer, que atua no Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp, grupos temáticos foram o meio de construir um lugar comum de trabalho. “No interior dos GTs grande diversidade, porque existem alunos pesquisadores, docentes e técnico-administrativos”, relata.

Os membros do Criab foram divididos em três grupos com autonomia e coordenadores próprios: o GT Meio Físico e Biótico, liderado por Picanço, estuda os impactos do rompimento no meio ambiente; o GT Educação e Sociedade, orientado por Pfeiffer e Sônia Seixas, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp, voltado à divulgação científica, educação e memória na relação com territórios atingi- dos por barragens; e o GT Engenharia e Matemática, que concentra as discussões relacionadas à aplicação da matemática nas barragens, e é conduzido por Martínez, docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc) da Unicamp.

Em 2021, eles participaram do 6th Workshop on River and Sedimentation Hydrodynamics and Morphodynamics, organizado pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa (IST), para a troca de experiências sobre rompimentos de barragens, modelagem matemática e construção de um modelo próprio. “Nossa expectativa é disponibilizar softwares para governos e academia, mas esse é um objetivo de longo prazo”, avalia Martínez.

A pandemia impossibilitou algumas das atividades de campo planejadas, mas manteve o GT Educação e Sociedade ativo com iniciativas de divulgação científica em temas que circundam barragens e suas implicações para a sociedade. “Isso é importante, porque as pessoas ficam comovidas quando acontece um rompimento, mas, com o passar do tempo, elas esquecem. Então, buscamos fazer com que pessoas em locais não afetados pela presença de barragens compreendam que elas também dependem da e são afetadas pela mineração”, esclarece Pfeiffer.

De acordo com a pesquisadora, as atividades do seu grupo estão sustentadas em dois braços: um educativo, envolvendo graduandos, e um de contribuição para a sociedade, por  meio da manutenção de blog, podcast e perfis nas redes sociais. Ademais, em uma parceria com o Fórum Popular da Natureza, foi publicada uma edição da revista A Ponte, analisando as narrativas dos rompimentos em Bento Rodrigues e Brumadinho. “Os alunos escrevem os textos, coletiva- mente, com revisão minha ou de doutorandos. Aprendendo, dessa forma, o que é um texto de divulgação e como se diferencia da textualidade acadêmica, mas com ela guardando similaridades importantes”, relata.

Em 2021, o GT Meio Físico e Biótico iniciou um projeto em Brumadinho, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), para avaliar quais cama- das de sedimentos vieram do rompimento e os impactos para os seres vivos, especialmente os de plâncton e solo. Os resultados preliminares indicam que a biota está retornando aos poucos. “A vida tem essa particularidade, ela reocupa os lugares. Nosso objetivo é investigar isso”, esclarece Picanço.

Além de recursos financeiros, as atividades de campo dependem de uma relação de confiança com as comunidades. “Por isso, nossa participação em estudos in loco acontece em conjunto com grupos que têm uma ligação com a região”, conta o pesquisador. “Existe um clima de desconfiança muito grande em relação à mineradora porque, na visão deles, ela age em seu próprio interesse”, complementa.

O rompimento da barragem em Brumadinho aconteceu em 2019, causando a morte de 272 pessoas, a maior parte delas trabalhadores da empresa responsável pelas operações na mina. O carreamento da lama para o rio Paraopeba gerou uma grave crise ambiental. O termo desastre-crime foi adotado pelo grupo para evocar um desastre socioambiental que poderia ter sido evitado. Conforme publicado no blog* de divulgação científica do projeto: “trazemos ‘crime’ junto a ‘desastre’ para que o caráter político-social dessas construções seja reconhecido, buscando responsabilizar os envolvidos, da esfera pública ou privada, na atividade mineral”.


*https://www.blogs.unicamp.br/%20projetocriab/2021/10/27/por-que-chamamos-os-%20rompimentos-de-barragens-de-desastre-crime/

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