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A arte, a educação e o corpo em movimento

Especialistas destacam a importância da adoção de atividades artísticas desde os primeiros anos da formação escolar

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Parece impossível conceber um olhar sobre a história da arte sem que este caminho aponte também para a história do corpo. Em sua mais vasta fluidez ou mesmo na rigidez material que o limita, o corpo parece o espaço mais palpável onde a arte acontece, onde os sentidos são estimulados e percebidos, e a imensidão de um outro alguém, objeto ou espaço encontra possibilidade real de interação. Embora não haja uma única definição do que é ou de que maneira a arte irrompe, muito menos de quando sua existência toca ou coexiste com o que se convencionou chamar de corpo, o modo como os processos educacionais apresentam essa relação ainda é objeto de diversos questionamentos, tidos por especialistas como fundamentais para se compreender e se projetar caminhos possíveis para a educação.

“Toda educação é uma educação do corpo”. É o que prega Márcia Maria Strazzacappa, docente da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, em seu artigo A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola. “O indivíduo age no mundo através de seu corpo, mais especificamente através do movimento. É o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos”, aponta. Toda essa interação possível parece ligar a corporalidade de forma intrínseca a, pelo menos, duas distintas formas de educação: uma que estimule que o corpo diga, e outra que eduque para o não-movimento, “para a repressão”, preconiza Márcia Strazzacappa. “Em ambas as situações, a educação do corpo está acontecendo. O que diferencia uma atitude da outra é o tipo de indivíduo que estaremos formando”, pontua a professora.

Foto: perri
A professora Márcia Maria Strazzacappa: “Toda educação é uma educação do corpo”

 

Essa projeção parece ter relação direta com o modo como a educação foi concebida nos últimos séculos, com a racionalização do conhecimento, do indivíduo e com uma proposta cartesiana de aprendizado, conforme afirma a professora Alessandra Ancona, do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte (DELART) da Unicamp, ao considerar que a educação, de maneira geral, não pensa o corpo como parte do ser. A pesquisadora ressalta que uma das motivações para esse silenciamento corporal reside no fato de “boa parte das propostas educacionais valorizar o saber cognitivo, o pensamento, o uso isolado da mente, da reflexão, ignorando o corpo completamente”.

 

Alessandra argumenta que essa trajetória colocou a corporalidade em um espaço intocável e de tabu, e tornou o corpo um instrumento de dor para muitas pessoas, especialmente porque o conhecimento expresso de maneira corpórea não é valorizado na maioria das escolas, universidades e mesmo em círculos sociais como a família e os espaços religiosos. Esta associação entre corpo e dor dialoga com a observação da professora Márcia Strazzacappa, que aponta o quanto ainda hoje “professores e diretores lançam mão da imobilidade física como punição e da liberdade de se movimentar como prêmio”, o que evidencia o quanto, naturalmente, o movimento é um prazer, mas utilizado como moeda de troca; e que a imobilidade, ainda que desconfortável, foi recorrentemente se tornando um padrão de bom comportamento associado ao saber cognitivo.

Todas estas problemáticas influem no que Alessandra Ancona aponta sobre a perda progressiva da capacidade de se expressar dos estudantes. “Sabem pouco sobre o movimento, a voz, sobre usar o corpo nas relações. Como posso explorar meu corpo de forma a estabelecer desejos e conexões? Esta seria uma pergunta possível diante de um conhecimento provocado pelo uso e o próprio entendimento da estrutura que nos forma”, ressalta. “É uma imobilização que vem desde o ensino infantil, no qual o trabalho corporal já é mínimo e a valorização das palavras e da cognição é muito forte. Nesta idade as crianças expressam e entendem corporalmente, e o descaso com esta maneira de dialogar com o mundo é muito problemático”, afirma.

Foto: Divulgação
A professora Alessandra Ancona: corporalidade relegada a um espaço intocável

Para a pesquisadora, esta racionalização do conhecimento persiste também no ensino fundamental, no qual boa parte das escolas não compreende o aprendizado como algo que o tempo todo perpassa o corpo, tornando-o restrito às poucas aulas de artes oferecidas aos estudantes. “Do ensino médio à universidade, a estrutura que se tem é aquela em que as pessoas ficam o tempo todo sentadas em cadeiras. Nunca é solicitado um movimento corporal. Não existe um entendimento de que o corpo pode participar e propor. Essa ausência vai fazendo com que as pessoas se desconheçam. Elas internalizam a ideia de domesticar seus próprios movimentos”, observa.

Márcia Strazzacappa vê como um caminho para esse reconhecimento corpóreo e uma possível transformação dos processos educacionais o desenvolvimento de trabalho com os próprios docentes. “Ele teria uma dupla função: despertá-los para as questões do corpo na escola e possibilitar a descoberta e desenvoltura de seus próprios corpos, lembrando que, independentemente das disciplinas que lecionam, seus corpos também educam”.


Políticas públicas

Para os especialistas, esta proposta reflexiva acerca de que tipo de formação os mais distintos espaços institucionais têm promovido é importante para se perceber de que forma o corpo é compreendido ou não na condição de diretamente relacionado às artes, e como esses mesmos processos artísticos, por sua vez, são vistos ou não como fundamentais no que se refere a políticas e práticas de educação.

Embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - Lei 9.394/1996) tenha previsto a obrigatoriedade do ensino de artes para o ensino básico desde o ano de 1996, foi apenas em 2016, com a alteração proposta pela Lei 13.278/2016, que as artes visuais, a dança e o teatro passaram a ser conteúdos obrigatórios nos currículos do ensino infantil, fundamental e médio – o ensino de música já fazia parte da legislação anterior.

As escolas públicas e privadas têm, desde então, cinco anos para se adaptar a esse novo formato que, ao mesmo tempo em que contribui para abrir o leque das possibilidades artísticas dentro dos espaços de ensino, também apresenta problemáticas no que se refere à formação de professores especializados para tais tarefas, como também na possibilidade de estes conteúdos serem tratados apenas transversalmente, e não como disciplinas.  Ainda de acordo com especialistas, é importante apontar o quanto este questionamento de como as artes podem ser tratadas na escola, sem matérias em grade e projetos específicos, ainda se torna maior com a recente proposta de reforma do ensino médio, sancionada em fevereiro de 2017.

A limitação da própria grade curricular do ensino básico como um todo para a inserção de artes visuais, dança e teatro, como também a problemática que há em um professor assumir conteúdos múltiplos para os quais não está especializado, se relacionam diretamente com uma outra questão, apontada pela professora de artes Lucila Andreozzi. “Os espaços escolares estão todos ocupados por mesas e cadeiras, e os locais livres como pátio e quadra não são ideais para um trabalho de corpo e arte, por serem locais de passagem, com muitas informações”, diagnostica Lucila, graduada em Comunicação das Artes com habilitação em Teatro e Performance pela PUC-SP  e hoje professora do Centro de Educação Nossa Senhora das Graças, da cidade paulista de Jacareí.

A professora Milena Pereira, graduada em Dança pela Unicamp, aponta as dificuldades de se estabelecer práticas artísticas em espaços tão reduzidos, especialmente em escolas públicas, como naquelas em que já atuou tanto como professora quanto pelo Programa de Iniciação à Docência (PIBID), no qual há diversos desafios cotidianos, entre os quais o de necessitar “provar para o restante do corpo docente que seus projetos são relevantes”, afirma.

Foto: Divulgação
Milena Pereira durante performance de dança: desafios são diários

Para ambas as professoras, o ideal seria seguir outras possibilidades de formação, nas quais a arte esteja integrada no cotidiano da escola, com locais destinados apenas para essas aulas, professores capacitados com conhecimentos específicos, e encontros que não se limitem a apenas uma vez por semana.

Embora boa parte dos profissionais e professores reconheça a necessidade e importância de disciplinas específicas que não tornem a educação em artes um projeto superficial, a relevância de outras disciplinas abordarem conteúdos artísticos ou mesmo se utilizarem das mais diversas artes para estimular troca e produção de conhecimento, parece de grande impacto quando se trata de construir um ensino humanamente mais aberto e democrático. 

Para Lucila Andreozzi, a utilização de atividades performáticas com os estudantes, tanto nas aulas de artes, quanto em outras disciplinas, serve de estímulo para que o corpo se movimente e se ressignifique. “A performance é por si só uma arte híbrida. Costumo falar para meus alunos que temos essa tendência de trabalhar tudo como se estivessem em gavetas – a gaveta do teatro, a das artes visuais, do audiovisual etc, como se as coisas precisassem sempre se fechar. Mas a performance é como se fosse uma gaveta sem fundo onde cai um pouquinho de cada coisa”, exemplifica.

        Toda essa capacidade educacional que carrega a performance também pode ser vista sob um ponto de vista político, numa compreensão dos corpos, mais uma vez, como espaços onde se inscrevem certas motivações, ensejos e mesmo silenciamentos. A arte, neste sentido, como campo onde a performance normalmente acontece, seria uma forma de vida, conforme preconiza a filósofa Judith Butler.

Em Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, Butler se faz a seguinte pergunta: “se o corpo não é um ‘ser’, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de hierarquia [...], então que linguagem resta para compreender essa representação corporal, esse gênero, que constitui sua significação ‘interna’ em sua superfície?”. Para a autora, a resposta se situa no ato performativo cotidiano, que não está predisposto em algum lugar, mas contingenciado por uma série de relações.

 

Todos os diálogos possíveis

Foto: Divulgação
O professor Roberto Dalmo Varallo: em busca de uma sociedade plural

A performance, neste sentido, se apresentaria como uma das formas na qual o corpo encontraria um caminho próprio de identificação ou mesmo de construção, de ser e se representar no mundo. A arte, neste contexto, seria uma das formas de estimular que este movimento aconteça. Sua relação com os processos educacionais parece necessária em disciplinas que tenham como objetivo fazer um resgate histórico e técnico das mais variadas artes, em suas especificidades, como apontado, mas também em todos os aspectos de fomento ao conhecimento e à interação, conforme pontua o professor Roberto Dalmo Varallo Lima, da Universidade Federal de Uberlândia.

 Ao apresentar uma proposta de estudo que pense os conteúdos de artes nas aulas de ciências, o pesquisador aponta para uma abordagem que permita a outras áreas dialogar com olhares provindos da arte como disciplina ou mesmo dos contextos de vivência e produção dos próprios estudantes. “Essa abordagem que une ciência, tecnologia, sociedade e arte, denominada CTS-ARTE, busca transcender à utilização da arte nas aulas de ciência apenas como uma motivação proporcionada pelo trabalho artístico. Utilizamos a arte para fomentar discussões de caráter político, social, ambiental, ideológico, e também para permitir o diálogo entre as diferentes culturas”, aponta.

 Para o professor, a utilização da arte dialoga com esta possibilidade de tornar os indivíduos conscientes de seus espaços, papeis e ações em sociedade, especialmente porque estimula o fazer criativo, tira o estudante de seu lugar de conforto em termos propriamente físicos, no que considera como “reflexão/ação para uma sociedade plural”. Esta trajetória pode ser capaz, nas artes e nas demais disciplinas, de tensionar um sistema educacional tradicional, “a desnaturalizar sua base monocultural e a discutir o papel da educação escolar na emancipação de sujeitos negados historicamente”, instiga.  

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Em sala de atividade física com piso de madeira, imagem panorâmica de cerca de quinze jovens deitados no chão, de barriga para cima e com braços e pernas abertos. À frente deles há uma mulher em pé, de costas, em plano médio e à direita na imagem, com os braços abertos e erguidos. O local tem paredes de blocos de concreto pintados de branco e barras de ferro afixadas em todo entono para alongamento físico. As pessoas vestem bermuda, camisa de mangas curtas e estão descalças. Imagem 1 de 1.

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