AS CRÔNICAS DE CLARICE LISPECTOR

 

Thais Torres de Souza

 

INTRODUÇÃO

Clarice Lispector tem uma vasta produção como cronista no Jornal do Brasil entre os anos de 1967 e 1973,reunida no livro A Descoberta do Mundo. Apesar disso, a escritora não é reconhecida como uma grande autora no gênero. Afrânio Coutinho e Jorge Sá sequer a citam entre o grupo de cronistas modernos. O próprio filho e herdeiro de Clarice, na nota introdutória do livro, afirma que os textos ali reunidos “não se enquadram facilmente como crônicas, novelas, contos, pensamentos anotações”. [1] Ele também afirma que ainda há nesta reunião traduções de textos de outros autores, entrevistas, citações e, o que mais nos interessa neste trabalho, esboços de futuros contos da escritora.

Apesar desta particularidade da obra de Clarice Lispector como cronista, nosso principal interesse neste trabalho é o fato de que, através dos estudos das crônicas reunidas em A Descoberta do Mundo, é possível compreender como ocorre aquilo que a própria autora nomeia como um plágio de si mesma. Em carta a seu filho Paulo citada por Nádia Battella Gotlib [2] , Clarice afirma: “As crônicas do Jornal do Brasil não me preocupam porque tenho um punhado delas, é só escolher uma e pronto. Além do mais pretendo me ‘plagiar’: publicar coisas do livro A Legião Estrangeira, livro que quase não foi vendido porque saiu quase ao mesmo tempo que o romance (refere-se a Paixão segundo G. H., publicado em 1964)”.

Para observar este interessante processo de auto-plagiamento, nosso principal alvo de observação são as crônicas publicadas no Jornal do Brasil e reunidas em A Descoberta do Mundo e que posteriormente são reformuladas e reunidas em determinados livros de contos. Há em todo este percurso não apenas alterações no que se refere ao veiculo literário em que o texto se insere, mas também reformulações literárias que indicam um inacabamento que, segundo Ligia Chiappini, [3] pode evidenciar um discurso ainda transparente “anterior ao trabalho de polimento e despojamento, das máscaras e dos mistérios de Clarice em suas versões finais”.

Estudar estas crônicas da autora permite ver a obra literária em movimento na observação do conto em seu estado bruto, ainda em germinação e sem as mudanças que serão feitas pela autora. Para isto pretendo mapear as mudanças realizadas neste trajeto da crônica para o conto e mostrar em que livros estes textos podem ser encontrados e buscar compreender o que estas alterações significam. Ao observar as alterações feitas pela escritora entre o jornal e o livro de contos e do livro de contos para as crônicas jornalísticas pretendo analisar não apenas a mudança de gênero – crônica/conto - como também as escolhas lingüísticas e literárias que determinam o maior status literário tanto do livro em relação ao jornal quanto do conto e em relação com a crônica.

Esta análise visa caracterizar a obra de Clarice como cronista a fim de determinar como a autora constrói este conjunto de textos. Desta forma, tentaremos compreender os textos reunidos em A Descoberta do Mundo [4] não a fim de forjar uma definição para estas; mas para tentar delimitar os territórios por onde transita a Clarice cronista e assim melhor compreender esta parte significativa, porém pouco estudada, da obra da autora. Definindo este material, compreenderemos o lugar em que as crônicas que são nosso principal objetivo de pesquisa – as que são reescritas transformando-se em futuros contos - se inserem.

Observar as diferentes aceitações da crítica de uma Clarice-cronista e de uma Clarice-contista permite analisar como a noção de autoria interfere na compreensão da obra da escritora. Pensar no que Foucault [5] chama de posição-autor no caso de Clarice Lispector através de sua obra cronística pode auxiliar a compreender a leitura que é feita destes textos. Meu primeiro objetivo neste sentido seria analisar como funciona na recepção da obra desta autora o movimento caracterizado por Foucault em que o nome do autor assegura uma função classificativa e delimitadora de um conjunto de textos. Isto permite analisar de que forma o lugar que Clarice ocupava para a crítica literária determinava significativamente a leitura de suas crônicas e como a sua recusa em assinar estes textos marca este trabalho literário numa posição menor em relação a literatura que ela realizava antes. Minha pergunta para este trabalho é a seguinte: o fato da recepção destas crônicas ser determinada pela comparação com os outros textos da autora - a chamada “literatura maior” feita por ela em seus primeiros romances - não prejudica a validade deste juízo?

 

RESUMO

O trabalho que foi feito até o presente momento está estruturado da seguinte maneira:

I – Definição do gênero “crônica”;

II – Comparação dos textos de Clarice Lispector com a tradição do gênero;

III – Mapeamento dos textos reescritos;

IV – Análise das alterações.

 

1. A CRÔNICA

a) Definição:

Para Coutinho, [6] os gêneros literários se diferenciam pela relação direta ou indireta entre autor e leitor. Possuem relação direta com o leitor, os autores que escrevem ensaios; crônicas; discursos; cartas; apólogos; máximas; diálogos; memórias. A relação indireta é estabelecida nos contos; novelas; epopéias; romances; gêneros narrativos, líricos e dramáticos.

Etimologicamente, a palavra crônica remete ao termo grego Kronos (tempo). Segundo o dicionário Morais, [7] a crônica é a história escrita conforme a ordem do tempo; de modo que os fatos narrados se referem diretamente a este. Da mesma forma, o Frei Domingos de Oliveira [8] compreende o tempo como o elemento organizador do gênero. Diferentemente da história, os fatos não são estudados para se estabelecer entre estes causas e conseqüências, mas simplesmente para narrá-los.

Arrigucci [9] introduz outro importante elemento nestas definições sobre a crônica: a memória. Na crônica, o tempo é o centro da narração dos fatos, mas estes não são narrados tal como aconteceram, mas tal como os recorda o cronista.  Este é um “hábil artesão da experiência” e, ao transformar fatos em matéria narrada, resignifica os acontecimentos de acordo com as impressões que obteve destes.

b) Um gênero menor?

Mesmo para os próprios cronistas, a crônica é tida como um gênero menor em relação aos outros gêneros literários. Em Escrever para jornal e escrever livro, publicado em 29 de julho de 1972, Clarice afirma:

(...)num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem compromisso nenhum (...) não há dúvida de que eu valorizo muito mais o que escrevo em livros do que o que eu escrevo para jornais.

Para Antonio Dimas, [10] um dos motivos indiscutíveis para este descaso é a feição financeiramente utilitária do gênero que proporciona aos escritores a possibilidade de um salário fixo e de uma vida financeira estável que não seria possível com os livros. Paulo Mendes Campos, por exemplo, se justifica: Precisava ganhar dinheiro. Só de poesia, só de literatura, não se vive. [11]   O fato é que o autor se sente degradado ao ser obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver, ao mesmo tempo em que necessita deste dinheiro como forma de sustentar suas atividades na “Grande Literatura”.

Clarice Lispector, citada por Dimas, afirma: Talvez nem escrevesse em jornal se não tivesse necessidade. A autora faz uma queixa semelhante a esta na crônica Anonimato, publicada em 10 de fevereiro de 1968: Aliás, eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro.

O cronista sente a necessidade de se justificar pela dedicação a esta necessidade degradante da sobrevivência financeira. Em Ser Cronista de 22 de junho deste mesmo ano, Clarice cita o conselho que recebeu de um amigo, que tenta justificar a venda do trabalho do escritor: Todos seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo honesto de ganhar dinheiro.

Outra causa para o descaso com o gênero é a efemeridade do veículo em que as crônicas se inserem. Jorge de Sá [12] afirma: O jornal nasce envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse contexto, a crônica também assume esta transitoriedade. O fato de que a crônica é destinada a ser lida e esquecida, faz com que os críticos não atribuem ao gênero o status literário do romance ou do conto.

Não apenas o veículo como os assuntos a serem abordados na crônica devem ser efêmeros e esta efemeridade é considerada muitas vezes como característica de uma literatura tida como frívola e superficial. A crônica é entendida como um descanso para o leitor diante das outras notícias do jornal.  Desprovida do rigor jornalístico das reportagens e do rigor literário dos romances, a crônica é desmerecida, portanto, tanto em relação à Literatura quanto ao Jornalismo, tornando-se, nas palavras de Machado de Assis, “uma fusão admirável entre o útil e o fútil”.

Há uma delimitação clara dos temas sobre os quais um cronista pode – e deve- escrever: comentários sobre as notícias em evidência no jornal em que a crônica se insere ou sobre fatos cotidianos que não mereceram a atenção dos jornalistas e do público leitor. A atividade do cronista é narrar estes fatos segundo o seu ponto de vista, sem se deter especificamente em nenhum, dando a estes uma leveza característica do gênero. Machado de Assis ironiza esta condição:

O folhetinista, na sociedade ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal: solta, esvoaça; brinca; tremula; paira; espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política [13] .

A escolha pelo tom menor do bate-papo entre amigos e por assuntos menos relevantes em relação aos outros textos do jornal e aos romances dos cronistas, determina que a crônica se coloque em um território de difícil definição, como será discutido a seguir. Para Antonio Candido, [14] esta é sua maior vantagem em relação aos outros textos jornalísticos ou literários. Para o autor, ao se tornar mais acessível aos leitores, a crônica é capaz de comunicar mais sobre a condição humana e sobre a vida do que os estudos intencionais.

Da mesma forma, para Arrigucci, a crônica ao tratar dos pequenos acontecimentos diários, ao contrário de introduzir em um status literário inferior aos romances e contos, é capaz de atingir a mais alta poesia. Esta despretensão, para Antonio Candido, humaniza o texto permitindo “como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade”. Assim, retirado o status literário e a seriedade jornalística e resignificando os fatos, a crônica se aproxima do leitor sem que para isto seja preciso diminuir a seriedade dos problemas abordados.

Para Dimas, esta aproximação entre leitores e autores permite o “desnudamento do autor perante o público” e, a partir deste desnudamento, seria possível delimitar as matrizes ideológicas do autor, de forma diferente do que seria feito pela observação das  outras produções literárias deste. Há uma marca de pessoalidade que caracteriza o gênero, como se o autor se aproximasse do público, aproximando também, desta forma, o leitor das notícias publicadas no jornal. Leitor e autor tornam-se amigos íntimos e comentam com despretensão os assuntos em pauta não pela importância nacional destes, mas pela forma particular e pessoal com que estes temas os tocaram.

No caso de Clarice Lispector, as crônicas em que a autora fala diretamente sobre si mesma, sobre seus amigos e sobre seus familiares auxiliam também na compreensão sobre o em que contexto se dá a criação de suas obras. Esta aproximação informal entre autor e público permite, por exemplo, que se conheça qual a reação de Clarice das críticas recebidas sobre seu trabalho como cronista. Em 29 de março de 1969 na crônica “Perguntas Grandes” ela mostra sua reação diante do comentário de alguns de seus leitores anteriores a publicação no Jornal do Brasil. É interessante observar neste trecho, a comparação evidentemente valorativa entre a autora de romances consagrada e a escritora que se vende em uma atividade literária menor:

Pessoas que são leitoras de meus livros parecem ter receio de que eu, por estar escrevendo em jornal, faça o que se chama de concessões. E muitas me disseram: “Seja você mesma”.

Há outro conjunto de crônicas interessante para que esta aproximação entre o público leitor e a escritora em questão se estabeleça. São aquelas em que a autora faz reflexões metalingüísticas e metaliterárias, narrando algumas de suas atitudes como escritora, o que não seria claramente definível pela simples observação do conto, por exemplo. Em A explicação que não se explica de 11 de outubro de 1969, por exemplo, Clarice narra ao leitor como foram feitos os contos reunidos em Laços de Família. O fato de que estas informações, tanto em relação a sua vida pessoal, quanto a sua produção literária, tenham sido escritos pela própria escritora e não serem suposições de pesquisador, são importantes para compreensão de sua obra e fazem com que seja possível a reconstrução do processo de criação destes contos.

Reconstruir a biografia da autora e seu processo de criação a partir de suas próprias palavras é imprescindível para a compreensão da obra clariciana. A aproximação entre autor e leitores, característica do gênero, permite que a autora fale de sua vida pessoal e de sua Literatura de forma que possa ser reconstruído para os leitores e para a crítica literária o contexto de criação destes textos. Além disto, a análise das obras que serão alvo de reescrita e de republicação permite observar a gênese da obra literária e observar, senão o ponto de partida da criação, o ponto a que nós, os leitores e críticos, temos acesso.

c) Literatura ou Jornalismo?

Apesar de se encontrar na zona de contato entre estes diferentes veículos de divulgação de textos, Roncari [15] e Dimas recusam a inclusão da crônica em um gênero híbrido entre Literatura e Jornalismo. A função de linguagem jakobsoniana característica na literatura é a função poética e a do jornalismo é a função referencial. Isto determina, para Dimas, que os gêneros sejam entidades distintas, cujo único ponto de contato é a palavra. Para Roncari, a crônica não é um híbrido entre os gêneros, mas um “canal de comunicação ou zona de contato entre as esferas de alta e baixa cultura”.

É difícil delimitar o veículo exclusivo em crônica é lida, já que ela está presente tanto no Jornal quanto no livro. Entretanto, o fato é que ela deve sempre ser compreendida como pertencente ao jornal. Não porque este veículo é o que mais se assemelha a crônica – já que a crônica não possui a seriedade e a impessoalidade dos textos jornalísticos - mas porque é nele em que ela aparece pela primeira vez. Para Roncari, os meios de comunicação em que os textos se inserem são determinantes para sua recepção. O autor considera que, ainda que o autor vise a posterior publicação das crônicas em um livro que as reúna, o fato é que o jornal é o veículo em que a crônica inevitavelmente pertence, sendo o livro o lugar, ainda que de prestígio superior ao do jornal, no qual ela será lembrada como “imagem do que foi um dia”.

Desta forma, as crônicas reunidas em A Descoberta do Mundo precisam ser compreendidas a partir do espaço que ocupavam na imprensa brasileira. Para compreender estas crônicas é preciso definir o contexto em que estas foram criadas e publicadas. Compreender a história do Jornal do Brasil e estabelecer relações entre este periódico e a imprensa da época como forma de caracterizar o veículo em que estas crônicas se inserem.

Não podemos esquecer ainda que há um grupo de crônicas publicadas no Jornal do Brasil, mas que não foram reunidas em A Descoberta do Mundo. Na nota introdutória do livro Paulo Gurgel Valente afirma que “foram subtraídas apenas as anotações que nos pareceram muito circunstanciais”. É preciso fazer uma série de perguntas: quais foram os textos excluídos? Quais foram os selecionados? Quais os pontos em comum entre estes textos que foram reunidos nesta edição póstuma?

d) A Tradição da crônica no Brasil:

O primeiro cronista, na opinião de Jorge de Sá, foi Pero Vaz de Caminha. Ainda que sua responsabilidade na inauguração do processo literário brasileiro seja discutível, o fato é que sua Carta foi o marco inicial na busca pela nacionalidade brasileira. Caminha é cronista ao recriar “com engenho e arte tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva”.

Apesar destes registros de Caminha e de outros cronistas históricos, a crônica propriamente dita aparece na imprensa no século XIX, mas só é incorporada aos hábitos nacionais quando o número de páginas das edições aumenta em decorrência da modernização dos jornais. Neste momento, a crônica era destinada a “condimentar de maneira suave a informação de certos fatos da semana ou do mês, tornando-se assimilável a todos os paladares”. [16]

Dois grandes nomes simbolizam esta fase da crônica no Brasil: João do Rio e Machado de Assis. João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, é apontado por Jorge de Sá como o responsável pela roupagem literária que a crônica adquiriu desde então. Suas seções na imprensa apresentavam pequenos contos, ensaios breves, poemas em prosa e outra série de gêneros destinados a informar os acontecimentos do dia ou da semana sem o rigor jornalístico das outras seções do jornal e sem o rigor crítico e o conteúdo político das crônicas de Machado de Assis.

Machado teve grande importância na imprensa nacional com as crônicas que publicou durante toda sua carreira literária. Mais contundentes e menos literárias do que as de João do Rio, outro cronista muito popular e contemporâneo de Machado, as crônicas de Machado se destinavam a tecer comentários irônicos e muitas vezes divertidos sobre as principais notícias políticas e econômicas da semana. Entretanto, ao contrário desta aparente despretensão, a atividade do autor consistia em conquistar a confiança do autor através do riso para depois rompê-la, ao fazer do leitor uma “vítima do próprio riso do qual compartilha”. [17]

Para Granja, há uma aproximação evidente entre os romances de Machado e suas crônicas que podem ser compreendidas como um “laboratório de ficção do escritor”. Outros estudos postulam esta hipótese sobre outros escritores: o de Vilma Áreas sobre Martins Pena [18] e o de Telê Porto Ancora Lopes [19] sobre Mário de Andrade.

As crônicas de Clarice Lispector que compõem o corpus desta pesquisa também servem a esta função: observar o processo criativo através dos contos, textos e trechos de romances ainda em estado de germinação e não finalizados pela autora.

Anteriormente definimos a crônica como um gênero que precisa sempre ser considerado em suas relações com o jornal. Desta forma, é inevitável que a modernização da imprensa tenha modificado o sentido da crônica no século XX. Para Arrigucci:

A crônica é o próprio fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato e às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do capitalismo industrial.

Jorge de Sá atribui ao ritmo da vida moderna a velocidade com que a crônica atual passa pelos diversos assuntos e a maneira com a qual ela lida com estes. Para o autor, “à pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são extremamente rápidos e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los”.

Para Rubem Braga, este ritmo moderno determina uma nova relação do escritor com o tempo e com a escrita. Essencialmente cronista, o autor determina que os instantes e os assuntos efêmeros são as matérias brutas da poesia. Para ele, “a verdade não é o tempo que passa, a verdade é o instante”. [20] Estes breves momentos, longe de serem banais e merecerem o esquecimento dos leitores e, portanto, não serem dignos enquanto temas literários; representam as dores e as alegrias essencialmente humanas ocultadas por uma aparente máscara de banalidade. Para Antonio Candido é esta a característica da crônica que faz com que as crônicas, segundo ele, digam “as coisas mais sérias através de uma aparente conversa fiada”.

 

2. CLARICE - CRONISTA

É evidente que há profundas diferenças entre os textos de Clarice Lispector publicados na imprensa e a tradição do gênero cujo maior expoente é Rubem Braga, sobretudo pelo fato de que muitos de seus contos são transpostos para o jornal, como irei analisar em outro momento. De qualquer forma, se os textos da autora não são imediatamente identificáveis com a tradição anterior e contemporânea a estes, é preciso compreender o que estas diferenças significam na composição deste material singular e não apenas utilizá-las para excluir Clarice do grupo dos cronistas modernos.

É certo que os textos de Clarice não pertencem a nenhum gênero imediatamente identificável ou a qualquer território demarcado: são cartas, traduções, citações, frases, comentários, laboratório de outros textos. Tudo, incluindo a crônica tida como tradicional.

O fato é que, ainda que as crônicas da autora sejam profundamente diferentes da tradição da crônica no Brasil, estas, muitas vezes, apresentam temas semelhantes àqueles tidos como temas comuns ao gênero em questão.

Para introduzir a caracterização das crônicas de Clarice em comparação a tradição que as antecedem, compararemos duas crônicas, a primeira escrita por Clarice Lispector e a segunda por Fernando Sabino sobre o amigo em comum Érico Veríssimo.

Desculpem, mas não sou profundo [21]

Érico Veríssimo é um dos seres mais gostáveis que conheci: é pessoa humana de uma largueza extraordinária. Foi em Washington onde eu conheci a Mafalda, Érico trabalhando na OEA. Eu fazia ninho na casa e na vida deles. E disse ele que as melhores recordações que guarda de sua estada em Washington D.C. foram as horas que passaram em minha casa. Érico não conseguiu escrever uma linha durante esses três anos burocráticos.

Não se considera um escritor importante, inovador ou mesmo inteligente: acha que tem alguns talentos que usa bem, mas acontecem serem menos apreciados pela chamada critica séria como, por exemplo, o de contador de histórias. Os livros que lhe deram uma grande popularidade como Olhai os lírios do Campo, ele os considera romances medíocres. O que vem depois dessa primeira fase é bem melhor mas os críticos apressados não se dão ao trabalho de revisar opiniões antigas e alheias. Agora há no Brasil vários críticos que o levam a sério, principalmente depois que publicou O tempo e o vento. Mas a idéia de ser querido, digamos amado, agrada-lhe mais do que a idéia de ser admirado. Não trocaria seu público que o adora por uma crítica que lhe fosse mais favorável. E há ainda os grupos. Os esquerdistas o consideram acomodado, os direitistas o consideram comunista.

Seu personagem mais importante é talvez o Capitão Rodrigo. Depois pensa em Floriano, seu sósia espiritual. Prefere dizer que seus personagens mais importantes são as mulheres de O tempo e o vento, como Bibiana e Maria Valéria. Quanto à ausência de profundidade de que alguns críticos o acusam, responde como um escritor francês que “um pot de chambre est aussi profond”. Mas concorda com os críticos: “Não sou profundo. Espero que me desculpem”.

Começou a escrever em menino, na escola, fazendo redações ótimas. Foi ainda em Cruz Alta, atrás de um balcão de farmácia, que escreveu o primeiro conto. Naquele tempo ainda pensava que podia ser pintor.

É péssimo homem de negócios, detesta discutir contratos e quando discute sai perdendo.

A fama de Érico é enorme. O ônibus de turistas tem que, como parte do programa, mostrar a casa aonde vivem os Veríssimo. Para Érico a fama tem um lado positivo: a sensação de que se comunica com os outros. E sua fama não é só como autor, através dos personagens, mas também como uma espécie de figura mitológica. A história do ônibus o encabula muito. Mas ele cultiva a paciência. E detesta decepcionar os que o procuram, os que desejam conhecê-lo em carne e osso. Sua casa vive de portas abertas. Há noites em que os Veríssimo têm de dez a 20 visitantes inesperados. Todas as semanas recebem dezenas de estudantes que o querem entrevistar, e a gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas com os casos sentimentais o procuram para desabafar. Ele ouve, olha, e não raro dá uma afetuosa atenção. Às vezes consegue ajudar realmente um ou outro paciente, e isso o alegra.

Como escritor tem muitas alegrias. E, como homem, a sua maior alegria são os filhos, os netos.

Sobre inspiração, à falta de melhor palavra, não sabe de onde vem, e freqüentemente pensa no assunto.

É sabido que Érico não entraria na Academia Brasileira de Letras. Ele a respeita, e lá vê muito boa gente. Mas não tem, nunca teve, a menor vontade de fazer parte da ilustre companhia; é uma questão de temperamento.

Érico planeja de início a história, mas nunca obedece rigorosamente o plano traçado. Os romances, diz ele, são artes do inconsciente. Quase que se considera mais um artesão – e com isso se explica talvez por que a crítica não o considera profundo.

Viajou com Mafalda a metade do mundo. E o que o impressionou mais foi Mafalda. Sua capacidade de compreendê-lo, de ajudá-lo, acompanhá-lo e, de vez em quando, dirigi-lo sem que ele desse pela coisa. Érico herdou de seu avô, tropeiro, o gosto pelas andanças: quer sempre ver o que está pela frente. Mafalda tem a alma calma, no melhor sentido da palavra; quer logo estabelecer-se, radicar-se. Mas Érico arrasta-a para dentro de trens, ônibus, aviões, e lá se vão eles. Gostou principalmente dos paises latinos da Europa: França, Itália, Espanha, Portugal. Tem uma fascinação enorme pela área mediterrânea. A Grécia e Israel encantaram-no.

Gostaria de voltar a escrever para crianças; elas precisam livrar-se do superman, do batman. Mas que história poderia contar nesta hora desvairada? isto é assunto para discutir. Considera ainda muito pobre sua literatura infantil.

O que é que ele mais quer no mundo? Primeiro, gente. A sua gente. A sua tribo. Os amigos. E depois vêm música, livros, quadros, viagens. Não nega que também gosta de si mesmo, embora não se admite.

Gaúcho em ritmo de tango [22]

Antes de embarcar resolvo passar no César para cortar o cabelo. Convém não chegar descabelado, mas dar uma de escritor que se cuida, bem-penteado e arrumadinho. O cineasta é o David Neves, que vai levando a trapizonga de filmagem e não me deixa mentir. Peço ao César que se apresse, não posso perder o avião.

- O senhor vai a Porto Alegre? Dizem que lá está fazendo um frio desgraçado.

Em casa resolvo meter na mala tudo quanto for roupa de inverno.

Na última hora recebo um telefonema do David:

- Não vou poder ir hoje. Você vai na frente, sigo amanha.

Seja como Deus quiser: em matéria de avião, não se deve contrariar o destino. Embarco sozinho e chego a Porto Alegre.

Ao contrário da previsão costumeira, o avião não caiu. O comitê de recepção, constituído como sempre de Josué Guimarães e Mauricio Rosemblat, me acolhe com o maior calor.

- Quede o David?

Muito mais calor do eu esperava: a roupa grossa me sufoca, o suor percorre pelo corpo.

- Ele vem amanhã. Mas que é isso?

Repórteres, fotógrafos, pessoal do rádio e da televisão. O Royal Ballet, que está para chegar? Não, é comigo mesmo: me esqueci da fama do Érico, o nosso filme sobre ele é notícia de sensação na cidade:

- Um documentário sobre Érico Veríssimo? Quem? Como? Quando?

- Aqui. E em Cruz Alta. David neves. Produção da Bem-Te-Vi Filmes.

- Não é Sabiá?

- Não, Sabiá era a editora. Agora é Bem-Te-Vi.

- Rubem Braga também está nessa?

- Não. Ele disse que só se for como ator.

Suando por todos os poros. Como faz calor nesta cidade! E na mala só roupas de lã – o César cabeleireiro vai ver quando eu voltar.

A caminho do hotel, Mauricio me diz que é assim mesmo, o tempo em Porto Alegre é dos extremos – um calor insuportável e um frio picante. Josué vai me advertindo logo que tome cuidado, Mauricio e Érico estão também insuportáveis e picantes, com mania de trocadilho.

- Você vai no Hotel Lido.

Mauricio não perde vaza:

- Hotel mesmo de escritor.

Os olhos azuis irradiando a um tempo vivacidade e doçura, o semblante claro, o perfil teuto recordado em brasileira e acolhedora simpatia – Mafalda, sempre a mesma:

- Quede o David? O galã está aí dentro te esperando.

Vou me embrenhando pela casa já minha conhecida – encontro o romancista à porta do escritório, estendendo-me graciosamente a mão:

- Rodolfo Valentino. Mucho gusto.

Não mudou nada: a voz suave, o grifo das sobrancelhas grossas, o rosto metreiro de índio, o ar inocente de menino. Mas essa inocência não me engana:

- O negocio é sério, Érico. O primeiro de uma série de documentários sobre escritores contemporâneos.

- Que tal um quimono de seda preta, uns bigodes espanhóis pintados a carvão, uma piteira comprida... Quede o David?

- Eu vim na frente para irmos trocando idéias, planejando o filme.

Trocamos idéia sobre tudo mas não planejamos nada. Honra seja feita: nenhum trocadilho.

Dois dias já e nada do David. Dou com o personagem de nosso filme sentadinho na saleta de entrada, bermuda, sandálias, boné e camisa de meia, diante de uma jovem que mal contém os soluços.

- Olha aí, Fernando. Posso falar minha filha? Essa moça está com problemas.

Não, não é o namorado, graças a Deus! Também não são meus pais, eles sempre foram uns amores. Que é, então? É a fossa. O sufoco. Já pensei em tantas vezes ir procurar o senhor, não tive coragem. Cheguei mais de uma vez até aqui no portão... Hoje tomei coragem. Sei que o senhor é tão compreensivo... E o romancista naquela compreensão além das palavras, ali ouvindo paciente, como doçura e simpatia humana, tentando ajudá-la a enfrentar o misterioso problema de ser jovem. Deixo-o com a moça e vou esperá-lo no escritório.

- Quando não é consultório sentimental, é visita de turista. Tem dias que despejam aí na porta um ônibus inteiro. Aqui neste escritório já recebi de uma vez 64 moças, sentadas nas cadeiras, nas mesas, no chão, nas estantes, empoleiradas como passarinhos.

A uma pergunta minha, ele se põe a falar sobre seu novo romance: tem duas soluções para o final, quer saber minha opinião. Arrisco timidamente um ou dois palpites e me calo, deixo-o falar. Percebo aos poucos que estou participando da intimidade de um momento raro, assistindo à misteriosa gestação de uma obra de arte, testemunhando o movimento secreto da imaginação do romancista em pleno ato de criação. Ele vai falando mansamente, pensando em voz alta, a formular situações na trama latejante de vida que em breve estará desabrochando em mais um grande romance. É o homem entregue docilmente à sua paixão. Nesse instante ele é a um instante o autor consagrado em todo o país e no exterior e o jovem de Cruz Alta, cujo coração se esfrangalhou pela primeira vez ao testemunhar o desmoronamento de um lar. A família veio a constituir um leitmotiv profundo de sua obra, e ele passou a carregar com sua companheira um lar para onde fosse, como o refugio mais seguro da inspiração. Jorge Andrade, em excelente reportagem, viu projetado sobre seu destino criador a presença trágica do Pai. Mas ele me confessa que na figura da Mãe encontra as raízes mais fortes que o ligam à sua terra e à sua gente.

Estamos agora com Mafalda na mesa do terraço, ao ar livre, em torno da qual os netos fazem algazarra, sem nos perturbar. Vai anoitecendo e aos poucos os amigos vão se chegando, mansamente, numa conversa descansada de gaúchos em que parece circular de mão em mão um chimarrão invisível. Está um pouco mais fresco, agora. Voltamos a falar no filme, e já que David não veio mesmo proponho ao Érico a realização de algo absolutamente inédito na história do cinema: um filme sem câmera. Uma tela onde se projeta um facho de luz sem imagens, sem cores, sem nada. E o resto é silêncio.

Empolgado, o gaúcho me abraça, e sentimos ambos no ar os acordes silenciosos de La Cumparsita – não resistimos, saímos dançando um tango pelo jardim.

Ambas crônicas tratam não apenas da mesma pessoa, como também citam os mesmos fatos sobre a vida do escritor Érico Veríssimo: a importância de sua mulher Mafalda, as visitas turísticas à casa do escritor, o escritório transformado em um confessionário sentimental, as primeiras composições literárias durante a infância. Entretanto, enquanto Sabino insere estes fatos em uma narração cronológica a partir de um encontro que teve com o amigo (preparação para o embarque; chegada em Porto Alegre; chegada na casa do escritor; primeiras conversas entre os amigos); Clarice lista esta série de informações sem estabelecer uma relação direta entre estas, fragmentando seu texto de forma que cada parágrafo se destina a esclarecer um ponto sobre o escritor (Quem é Érico Veríssimo e como Clarice o conheceu? Ele se considera um autor importante? Qual seu personagem mais importante? Quando começou a escrever).

É interessante notar que não há diálogos no texto de Clarice e que todas as possíveis conversas entre os amigos estão interiorizadas. Na crônica de Sabino há um trabalho dramático construído não apenas através dos diálogos, mas, sobretudo pela narrativa cronológica, em que as informações sobre o escritor são transmitidas a partir de uma cena que é focalizada no texto. Há um trabalho dramático e textual profundamente diferente entre os cronistas que determina que, ainda que ambos textos contenham as mesmas informações, a crônica de Sabino seja uma narrativa facilmente definível pelo leitor, enquanto o texto de Clarice constitua impressões fragmentadas e fatos sem seqüência cronológica.

Este exemplo define bem a tese que aqui pretendemos defender: o que faz com que Clarice não seja uma cronista tradicional deve-se menos aos temas por ela abordados do que a forma com que estes textos são compostos. O conjunto de crônicas aqui selecionado prova que Clarice é mais cronista do que a crítica costuma supor. Ainda que haja diferenças significativas entre as crônicas de A Descoberta do Mundo e àquelas feitas por Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e Paulo Mendes Campos, Clarice ainda se adequa ao gênero em muitos momentos, mesmo que de maneira profundamente particular.

Como já afirmei anteriormente, estas diferenças não devem ser a justificativa para excluir a escritora do grupo de cronistas modernos, mas o ponto principal para a observação da composição desta obra cronística singular. Sobretudo quando observamos o conjunto de crônicas que será abordado posteriormente neste trabalho - as crônicas que são reescritas e publicadas posteriormente na forma de contos - a importância do estudo desta obra se justifica e adquire outro estatuto: mais do que textos desprovidos de definição, as crônicas de Clarice são o “laboratório de ficção do escritor” através das quais o ato criador pode ser mais bem observado e compreendido.

O corpus aqui apresentado apresenta crônicas que se aproximam, senão na forma, pelo menos tematicamente, dos textos feitos pelos cronistas tradicionais, como Sabino, com quem comparei Clarice anteriormente. Escolhi este conjunto de crônicas como forma de explicitar mais evidentemente as diferenças textuais entre a composição cronística da autora e a dos autores com os quais ela é constantemente comparada pela crítica. Não havendo aqui diferenças temáticas, pode-se notar com mais precisão o que é diferente nos textos publicados em jornal pela autora. Assim, se demarcarão as divergências de gênero entre o texto de Clarice e a crônica tal como é entendida pela crítica literária para que se possa analisar o corpus de análise que é o objeto principal deste trabalho: as crônicas que foram reescritas e republicadas.

GRUPO 1: A “observadora” do cotidiano

Assim como Machado de Assis, Clarice utiliza seu espaço no Jornal do Brasil para comentar temas que estão na pauta dos principais assuntos da época. Entretanto, diferentemente do que faz Machado, as crônicas não discutem os principais temas da semana, havendo normalmente um certo “atraso” nesta discussão, como é comentado pela própria escritora na crônica citada a seguir:

Cosmonauta na terra

Extremamente atrasada, reflito sobre os cosmonautas. Ou melhor, sobre o primeiro cosmonauta. Quase um dia depois de Gagárin, nossos sentimentos já estavam atrasados em contraposição à velocidade com que o acontecimento nos ultrapassava. Agora então, atrasadíssima que repenso no assunto. É um assunto difícil de sentir.

Um dia desses um menino, advertido de que a bola com que brincava cairia no chão e amolaria os vizinhos de baixo, respondeu: ora, o mundo já é automático, quando uma mão joga a bola no ar, a outra já é automática e pega-a, não cai não.

A questão é que nossa mão ainda não é bastante automática. Foi com susto que Gagárin subiu, pois se o automático do mundo não funcionasse a bola viria mais do que transtornar os vizinhos de baixo. E foi com susto que a minha mão pouco automática tremeu à possibilidade de não ser rápida o bastante e deixar o “acontecimento cosmonauta” me escapar. A responsabilidade de sentir foi grande, a responsabilidade de não deixar cair a bola que nos jogaram.

A necessidade de tornar tudo um pouco mais lógico – o que de algum modo equivale ao automático – me faz tentar criteriosamente o bom susto que me pegou:

- De agora em diante, me referindo à Terra não direi mais “o mundo”. “Mapa mundial”, considerarei expressão não apropriada; quando eu disser “o meu mundo”, me lembrarei com um susto de alegria que também meu mapa precisa ser refundido, e que ninguém me garante que, visto de fora, o meu mundo não seja azul. Considerações: antes do primeiro cosmonauta, estaria certo alguém dizer, referindo-se ao próprio nascimento, “vim ao mundo”. Mas só há pouco tempo nascemos para o mundo. Quase encabulados.

- Para vermos o azul, olhamos o céu. A terra é azul para quem olha do céu. Azul será uma cor em si ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.

- Se eu fosse o primeiro cosmonauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.

- O grande favor do acaso: estarmos ainda vivos quando o grande mundo começou. Quanto ao que vem: precisamos fumar menos, cuidar mais de nós, para termos mais tempo e viver e ver um pouco mais; além de pedirmos pressa aos cientistas – pois se nosso tempo pessoal urge.

Clarice publica esta crônica em 19 de agosto de 1967, apesar da viagem de Yuri Gagárin ter ocorrido mais de seis anos antes, em 12 de abril de 1961. Apesar do considerável atraso no comentário deste fato, o assunto ainda estava em pauta já que as conquistas espaciais seguiam acontecendo e sendo maciçamente noticiadas. A chegada do homem a lua, por exemplo, ocorreu em 1969 e, a não ser que esta crônica não tenha sido incluída no livro, não foi comentada por Clarice. A defasagem temporal não é apenas o único ponto que determina as peculiaridades deste texto em relação às crônicas tradicionais destinadas a comentar fatos prosaicos e cotidianos. Há aqui e nas outras crônicas que podem ser incluídas neste grupo algo que poderia ser definido como ressonâncias do cotidiano na consciência hiperinflacionada da autora. A interiorização permanece o ponto temático principal, mesmo quando o tema é algum assunto da pauta de discussões do momento.

Em “Cérebro eletrônico: o que sei é tão pouco”, [23] a autora demonstra interesse pelo tema da inteligência artificial e admite não ter conhecimentos suficientes para falar do assunto. Mesmo com esta dificuldade, a crônica é feita, já que as lacunas de seu texto podem ser preenchidas por alguém “de direito”. Ao admitir a falha em sua tarefa de cronista e assumir que não é capaz de informar o leitor sobre determinado assunto, Clarice determina que sua atividade se destina ao objetivo comum dos cronistas: dar a um fato corriqueiro, o de não saber sobre Inteligência Artificial, uma interpretação não-convencional. Se Clarice não pode ser caracterizada como cronista porque é incapaz de tecer comentários sobre este assunto, ela o é ao transformar a realidade e dar ao cotidiano outro sentido que foge das interpretações comuns.

Cérebro eletrônico: o que sei é tão pouco

Decididamente estou precisando ir ao médico e pedir um remédio contra falta de memória. Ou melhor, uma amiga já me deu dois vidros de umas pílulas vermelhas contra falta de memória mas é exatamente minha falta de memória que me faz esquecer de tomá-las. Isso parece velha anedota, mas é verdade.

Tudo isso vem a propósito de eu simplesmente não me lembrar quem me explicou sobre o cérebro eletrônico. E mais: tenho em mãos agora mesmo uma fita de papel cheia de buraquinhos retangulares e essa fita é exatamente a da memória do cérebro eletrônico. Cérebro eletrônico: a máquina computadora poupa gente. Os dados da pessoa ou do fato estão registrados na linguagem do computador (furos em cartões ou fitas). Daí vão para a memória: que é outro órgão computador (outra máquina) onde os dados ficam guardados até serem pedidos.

Partindo deste princípio, chegamos ao definidor eletrônico: a partir de um desenho feito em um papel magnético a máquina (ou o cérebro) pode reproduzir em matéria de desenho. Isto é: entra o desenho e sai o objeto (cibernética, etc.) Há a experiência plástica, visual e também literária da reprodução (número e quantidade). A sensação é de apoio para o homem. Compensação do erro. Há possibilidade de você lidar com uma máquina e seus sensores como a gente gostaria de lidar com nosso cérebro (e nossos sensores), fora da gente mesmo e numa função perfeita.

Bem. Acabo de dizer tudo, mas mesmo tudo, o que sei a respeito do cérebro eletrônico. Devo inclusive ter comedido vários erros, sem falar nas lacunas que, se fossem preenchidas, esclareceriam melhor o problema todo.

Peço a quem de direito que me escreva explicando melhor o cérebro eletrônico em funcionamento. Mas peço que use termos tão leigos quanto possível, não só para que eu entenda como para que eu possa transmiti-los com relativo sucesso aos meus leitores.

Quando penso que cheguei a falar no mistério, que continua mistério, do cérebro eletrônico, só posso dizer como a gente dizia lá em Recife: Virgem Maria!...

Mas o amor é mais misterioso do que o cérebro eletrônico e no entanto já ousei falar de amor. É timidamente, é audaciosamente, que ouso falar sobre o mundo.

Este comentário é feito da mesma forma que as outras crônicas em que Clarice comenta acontecimentos marcantes para ela e seus leitores. Ao longo destes seis anos de Jornal do Brasil, ela fala tanto da morte de Sérgio Porto (As dores da sobrevivência – 28 de setembro de 1968), da exibição de um filme que lhe parece interessante (De como evitar um homem nu – 16 de outubro de 1971), ou do número de divórcios na Grã-Bretanha (Para os casados – 19 de maio de 1973) marcando sua impressão destes acontecimentos e delimitando sua opinião pessoal sobre estes.

A escolha destes temas é interessante para aproximar a cronista do que é feito por outros autores. Entretanto, a ausência de alguns temas importantes neste conturbado período da história mundial faz com que a autora seja considerada “não-engajada” e centrada apenas em seu universo interior. A crônica que se segue é significativa neste sentido:

Vietcong [24]

Um de meus filhos me diz: “Por que é que você às vezes escreve sobre assuntos pessoais?” Respondi-lhe que, em primeiro lugar, nunca toquei, realmente, em assuntos pessoais, sou até uma pessoa muito secreta. E mesmo com os amigos só vou até um certo ponto. É fatal, numa coluna que aparece todos os sábados, terminar sem querer comentando as repercussões em nós de nossa vida diária e de nossa vida estranha. Já falei com um cronista célebre a este respeito, me queixando eu mesma de estar sendo muito pessoal, quando em 11 livros publicados não entrei como personagem. Ele disse que na crônica não havia escapatória. Meu filho, então, disse: “Por que você não escreve sobre vietcong?” Senti-me pequena e humilde, pensei: que é que uma mulher fraca como eu pode falar sobre tantas mortes sem sequer glória, guerras que cortam a vida das pessoas em plena juventude, sem falar nos massacres, em nome de quê, afinal? A gente bem sabe por que e fica horrorizada. Respondi-lhe que deixava os comentários para um Antonio Callado. Mas, de súbito, senti-me impotente, de braços caídos. Pois tudo o que fiz sobre vietcong foi sentir profundamente o massacre e ficar perplexa. E é isso que a maioria de nós faz a respeito: sentir com impotência revolta e tristeza. Essa guerra nos humilha.

Esta crônica aponta para duas direções determinantes na interpretação da obra clariciana: a introspecção e a função significante do silêncio. Clarice é, por excelência, uma escritora que se centra na investigação interior. Faz isso de tal maneira que os fatos externos não são centrais na composição de romances, contos, ou, neste caso, crônicas.

Entretanto, ao contrário do que muitos contemporâneos da autora acreditavam, isto não se deve a alienação da autora, retratada nestes turbulentos tempos de ditadura militar como uma escritora que pouco se interessa pelos acontecimentos externos a esta busca por verdades íntimas. Se a autora não fala sobre a Guerra no Vietnã, no caso específico desta crônica, não é porque este assunto não a interessa, mas porque ela parece se sentir impotente diante da violência e do terror desta guerra. O silêncio tem uma função importante na obra da autora ao significar por si só aquilo que a escritora considera não ter forças ou coragem para dizer. Nesta mesma crônica, Clarice se classifica como uma “mulher fraca” e, desta maneira, ao silenciar sobre a Guerra, ela reafirma sua impotência diante dela.

A escritora se queixa neste e em outros momentos do sofrimento que lhe causa o alcance que este espaço no Jornal do Brasil adquire, tornando-a popular e, desta forma, fazendo com que ela se exponha mais do que considera interessante. Ao ter como tema principal esta investigação interior é realmente inevitável que a escritora se desnude, sobretudo neste gênero particularmente pessoal que é a crônica. Sobre este fato, a autora narra em crônica publicada no dia 5 de junho de 1971:

Um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: “Rubem não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que eu faço?” Ele me disse: ‘É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal’. Mas eu não quero contar a minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia.”

Ainda que este fato cause angústia na escritora, o fato é que ao resignificar os fatos cotidianos a partir de suas memórias e impressões sobre o mundo, o cronista inevitavelmente torna-se pessoal, mesmo ao falar sobre temas que não lhe digam diretamente respeito. Jorge de Sá afirma, sobre este mesmo assunto, sobre o mesmo Rubem Braga com quem Clarice freqüentemente se aconselhava sobre a atividade de cronista: “Recompor a própria história individual é um jeito de o cronista nos ensinar a compor a nossa história na condição de pessoas ligadas a tantas e tantas heranças culturais”.

Esta exposição adquire um caráter ambíguo na obra de Clarice. Se por um lado ela expõe fatos de sua vida e características de sua personalidade que ela gostaria que permanecessem anônimos, por outro esta popularidade a torna uma pessoa comum, sem os mitos que eram atribuídos a ela. Gotlib caracteriza esta ambigüidade na obra da autora:

Enquanto os fatos do passado discorrem sob o crivo da memória, a escritora resiste a este impulso (...) Como resolver o impasse? Escrevendo coisas pessoais. É o que a narradora faz, apesar de sua indisponibilidade para tal. Embora afirme que quer escapara das memórias, não escapa. E escreve textos autobiográficos exatamente quando afirma que não quer desempenhar este papel.

Na crônica que se segue, ela responde algumas cartas de leitores que lhe fazem perguntas sobre sua vida pessoal, esclarece alguns pontos, desfazendo alguns mitos que o desconhecimento de sua biografia gerava nos leitores, mas contribui para a criação de outros. Faz o que Gotlib determina como o movimento de “ao não querer mitificar, mitifica”, presente em vários textos da autora.

Esclarecimentos – explicação de uma vez por todas [25]

Recebo de vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.

Vou esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa pequena aldeia chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchechelnik para eu nascer e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.

Em alguns momentos, como a crônica anterior, Clarice se coloca como o tema principal da crônica; em outros seus acontecimentos pessoais são narrados a fim de servir de elemento coesivo entre os fatos e as considerações da cronista sobre estes. Em ambos os casos ela faz como os cronistas tradicionais, dando a um fato corriqueiro e pessoal a interpretação poética e filosófica não-convencional. Se neste ponto ela se aproxima do gênero crônica, ela se distancia ao realizar este ambíguo jogo de mitificação e esclarecimento. Para Gotlib, “algo existe que ultrapassa os meros dados biográficos. E que lança novamente um ar nebuloso sobre os fatos que relatou, possibilitando até ... novas mitificações. (...) A narradora-cronista se encontra no texto, ela mesma, flagrada naquilo que quis desmanchar” [26]

No exemplo a seguir, a autora fala sobre o incêndio que a vitimou em setembro de 1962 para tecer consideração sobre os momentos que ela chama de “doação de si para si mesmo”:

Doar a si próprio [27]

Tenho lidado com problemas de enxerto de pele, fiquei sabendo que um banco de doação de pele não é viável, pois esta, sendo alheia, não adere por muito tempo à pele do enxertado. É necessário que a pele do paciente seja tirada de outra parte de seu corpo, e em seguida enxertada no lugar necessário. Isto quer dizer que no enxerto há uma doação de si para si mesmo.

Esse caso me fez devanear um pouco sobre o número de outros em que a própria pessoa tem que doar a si própria. O que traz solidão, e riqueza, e luta. Cheguei a pensar na bondade que é tipicamente o que se quer receber dos outros – e no entanto às vezes só a bondade que doamos a nós mesmos nos livra da culpa e nos perdoa. E é também, por exemplo, inútil receber a aceitação dos outros, enquanto nós mesmos não nos doamos a auto-aceitação do que somos. Quanto à nossa fraqueza, a parte mais forte nossa é que tem que nos doar ânimo e complacência. E há certas dores que só a nossa própria dor, se for aprofundada, paradoxalmente chega a amenizar.

No amor felizmente a riqueza está na doação mútua. O que não significa que não haja luta: é preciso se doar o direito de receber amor. Mas lutar é bom. Há dificuldades que só por serem dificuldades já esquentam o nosso sangue, que este felizmente pode ser doado.

Lembrei-me de outra doação a si mesmo: o da criação artística. Pois em primeiro lugar por assim dizer tenta-se tirar a própria pele para enxertá-la onde é necessário. Só depois de pegado o enxerto é que vem a doação aos outros. Ou é tudo já misturado, não sei bem, a criação artística é um mistério que me escapa, felizmente. Não quero saber muito.

Além de demonstrar como Clarice utiliza dados autobiográficos para compor suas crônicas, este texto é interessante para reforçar um aspecto da obra de Clarice já apontado aqui: a necessidade da investigação interior. Doar a si próprio, aceitar falhas e se perdoar é imprescindível para a sobrevivência humana. É só através desta busca interior e deste auto-aceitamento que o indivíduo é capaz de se doar aos outros ao longo da vida.

No dia 5 de junho de 1971, Clarice se recusa a falar sobre sua vida pessoal , mas relata uma série de viagens que fez ao longo desta vida nômade. Estas experiências, não menos pessoais do que o exercício a que ela se recusa, são o objeto de uma crônica que se estende até a semana seguinte.

Viajando por mar (1ª parte)

(...) Fiz na minha vida várias viagens por mar. À medida que eu for escrevendo vou me lembrando delas.

A primeira foi com menos de dois meses de idade, da Alemanha (Hamburgo) ao Recife: não sei que meio de transporte meus pais usaram para chegar da Ucrânia, onde nasci, para Hamburgo, onde meu pai procurou emprego mas, felizmente para nós todos, não achou. Nada sei sobre essa viagem de imigrantes: devíamos todos ter a cara dos imigrantes de Lazar Segall.

Outra viagem de mar que me lembro foi na terceira classe de um navio inglês: de Recife ao Rio de Janeiro. Foi terrivelmente exciting. Eu não sabia inglês e escolhia no cardápio o que meu dedo de criança apontasse. Lembro-me de que uma vez caiu-me feijão branco cozido, e só. Desapontada, tive que comê-lo, ai de mim. Escolha casual infeliz. Isso acontece.

Estou agora me lembrando de uma viagem que fizemos de Gênova ao Rio, “tomei um Ita no Norte”. Meu primeiro filho já tinha nascido. Espero que hoje os navios do Ita sirvam melhor; a comida era péssima, gordurosíssima, eu fazia o possível para alimentar sem perigo o meu menino de oito meses.

Veio depois a nossa viagem para Nova Iorque, eu esperando bebê, já chorando de saudade do Brasil. Era um navio inglês, primeira classe, e fabuloso. Mas não aproveitei nada: estava triste demais (...)

Acho que forma só essas as viagens por mar. O resto foi tudo de avião, que adoro: voar é bom. E gosto de me arriscar. Fiquei contentíssima ao saber que há agora um avião para Cabo Frio. Pretendo usá-lo um fim de semana.

Viagem de trem

Devo ter viajado de trem da Ucrânia até a Romênia e desta para Hamburgo. Nada sei, recém-nascida que eu era.

Mas me lembro de uma memorável viagem de trem, com 11 anos de idade, de Recife a Maceió, como meu pai. Eu já era altinha, e pelo que se revelou, já meio mocinha. Na viagem de ida – quase um dia inteiro – um rapaz de seus 18 anos, lindo de morrer e que comeu no mínimo uma dúzia de laranjas, e que tinha os olhos verdes pestanudos de preto, simplesmente veio pedir licença a meu pai para ficar conversando comigo. Meu pai disse que sim. Eu não cabia em mim de emoção: namoramos o tempo todo sob o olhar aparentemente distraído de meu pai.

Em Maceió, onde íamos ficar um dia apenas, aconteceu outro milagre. Houve uma festa dada para o meu pai. E lá havia um menino de 13 anos, considerado marginal. Contava-se que, uma vez, à saída de uma festa, acompanhando uma senhora de noite para casa, beliscara-lhe o braço. Pois esse menino me quis. E me pediu para passear com ele. Eu era completamente inocente, mas instintivamente compreendi alguma coisa e disse que não. Tomou meu enderece em Recife e recebi dele um cartão postal todo florido, com palavras de amor. Perdi o cartão, perdi o amor. Ficou-me a lembrança. A volta foi no dia seguinte à festa – todos na estação, inclusive o menino marginal – e sei que alguma coisa aconteceu também bouleversante mas não me lembro o quê.

12 de junho de 1971

Já andei de camelo, a esfinge, a dança do ventre (conclusão)

Numa de minhas viagens a Europa, o avião, não sei porque motivo, teve de mudar de rota. E fui inesperadamente passar três dias no Egito. Vi antes as pirâmides de noite. Fui de carro, a noite estava completamente escura. Saltei e perguntei: mas onde estão as pirâmides? Pois estavam a uns dois metros de distancia. Assustei-me. De dia elas são menos perigosas. De dia vi o deserto do Saara: as areias não são brancas, são cor de creme. E havia o mercador de camelos. Por uma ninharia dava-se uma volta no camelo: sentei-me entre as duas corcovas. É um bicho estranhíssimo: remói a comida sem parar. Disseram-me que tem dois estômagos ou estou inventando? Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou, eu a aceitei. Cada um com seu mistério.

Em Marrocos fui levada a ver a famosa dança do ventre. Fiquei boba. Duvido que adivinhem ao som de que música a dançarina mexeu terrivelmente a barriga. Pois foi ao som de “Mamãe, eu quero, mamãe eu quero mamar”.

Nestas crônicas, ela relata aos leitores não só a impressão que teve dos lugares e os acontecimentos da viagem, mas também narra acontecimentos extremamente íntimos, como as primeiras descobertas amorosas e seu relacionamento com uma babá de seu filho. Assim como o que acontece nos relatos de outros cronistas, o que Clarice fala a respeito de suas viagens passa pela inevitavelmente pela sua memória, que seleciona acontecimentos a serem lembrados e determina a interpretação que será dada aos fatos. Assim como fazem Fernando Sabino e outros cronistas tradicionais ao escrever sobre  cidades e paises visitados. Neste conjunto de crônicas, Clarice não apenas se utiliza de um tema comum do gênero – as viagens – como também torna sua vida pessoal um tema para crônicas, como fazem os cronistas tradicionais.

É preciso lembrar a influência que alguns fatos da biografia da autora têm na composição deste conjunto de crônicas em particular. Errante, Clarice nasce na Ucrânia; muda-se para o Recife. Após seu casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, mora em diversas cidades da Europa e do mundo e em seguida à separação muda-se para o Rio de Janeiro. Em As Pontes de Londres, ela fala sobre a capital inglesa; em Suíte na primavera suíça, sobre Berna; em Nos primeiros começos de Brasília e em Brasília de ontem e de hoje, sobre a capital do Brasil.

Há outro grupo de crônicas significativo para esta aproximação com o leitor através do comentário sobre temas cotidianos; as crônicas em que Clarice fala sobre determinadas datas comemorativas. Nestes textos, a autora se aproxima dos leitores e criando uma relação extremamente afetiva com eles ao falar de uma forma imprevista e íntima sobre as datas que são temas de conversa entre todos seus leitores.

Assim como Carlos Heitor Cony faz uma crônica sobre o Dia dos Pais, [28] Clarice, nos anos de 1971 e 1972, escreve sobre o Dia das Mães. Na belíssima crônica citada a seguir, este dia é celebrado de maneira particular, a partir da criação de uma personagem que simboliza as mães que a autora pretende homenagear:

Dia das mães [29]

- Eu – disse-me a bailarina de baile do Municipal – eu dancei uma vez sem saber que estava grávida. E depois me culpei tanto por isso, mas foi uma dança lenta que não fazia mal. Depois quando desconfiei, mandei fazer o teste. Você não imagina o que eu senti quando o homem me entregou o papel em que estava escrito positivo. Minha alegria foi tão intensa, mas tão doida, que abracei e beijei o homem espantado do laboratório e lhe disse: “Muito obrigada”. Imagine, como se ele fosse o pai (...)

- Mas o médico me avisou logo de saída que eu podia perder a criança. Porque tenho o aparelho genital infantil, sou fértil mas não posso conceber, não tem lugar para o feto: Então eu passei meses na cama para ver se assim eu não perdia a criança. Eu ficava deitada, falando com o bichinho que estava dentro de mim. Eu lhe dizia: “Olha, bichinho, nós dois havemos de vencer e você vai nascer, é assim mesmo, é difícil nascer” (...)

- Foi então que eu comecei a perder sangue. Eu mal acreditava, não queria acreditar. E quanto mais sangue derramava, mais desesperada eu ficava. Até que aconteceu: perdi meu filho. Era um menino. Cheguei a vê-lo, pedi para vê-lo: lá estava ele todo aconchegado dentro do óvulo (...)

Já era o final do crepúsculo: estávamos na sombra mas não acendi nenhuma luz.

- Mas não desisto, disse baixo.

- Não desiste de quê?

- De ter um filho. O médico disse que de novo eu poderia perder. Mas, mesmo que numa segunda gravidez eu perca, não desisto: ficarei grávida muitas vezes e aceito a possibilidade de perder. Até que um dia, lá para um dia, eu com muito cuidado conserve em ele em mim nove meses, dando até então muita coisa boa para ele ir bebendo e comendo através do meu sangue que vou enriquecer. Até que ele nasça. E será uma vitória nossa, minha e dele. Porque eu sei: é mesmo difícil nascer.

Olhei-a quase no escuro. Sofrida, machucada, corajosa. Sim, ela era uma mãe, a dançarina de Degas.

É inevitável não comparar a luta desta mãe em fazer seu filho nascer com a frase de uma amiga anônima de Clarice, citada por ela em As maravilhas do mundo de 16 de maio de 1970: “Ter nascido é um dom, existir, digo eu, é um milagre”. À luta desta mãe, Clarice implicitamente relaciona a sua luta de viver ou de milagrosamente existir. Assim como nas outras crônicas reunidas neste grupo em que a autora se coloca como uma observadora do cotidiano, Clarice se torna pessoal, íntima e expõe sua personalidade de maneira singular, até mesmo ao tratar da comemoração de uma data comercial.

Para Antonio Candido, a aparente despretensão dos temas estabelece “como compensação sorrateira” a profundidade da discussão sobre a condição humana. Esta característica pode ser observada tanto na obra de tradicionais Rubens Bragas e Sabinos quanto na da cronista esquecida pela crítica, Clarice Lispector.

De fato, como Rubem Braga aconselhou Clarice [30] em trecho anteriormente citado aqui, é inevitável que a crônica se torne pessoal, já que a principal característica do gênero é a narrativa sobre episódios, sobre pessoas, sobre fatos ou sobre datas comemorativas segundo o que o cronista entende de tudo isso. Neste ponto, é impossível dizer que a autora não seja cronista, já que seus textos se fundamentam necessariamente nesta interpretação pessoal da realidade. Seja para falar sobre a morte de um amigo, sobre um filme ou apenas para desejar um Feliz Dia das Mães para suas leitoras, Clarice fala sobre si mesma.

É interessante pensar se esta característica se deve ao gênero em que estas crônicas se inserem, ou ao fato de que a investigação psicológica interior é o principal tema da autora. De qualquer forma, o ponto em que a escritora não se adequa a tradição do gênero, neste pequeno grupo de textos analisado, não é a reconstrução do cotidiano através da memória pessoal do cronista, mas a forma profundamente heterogênea com que estes textos se apresentam.

GRUPO 2: Ficcionalização de pessoas reais [31]

a) Personalidades:

Clarice fala não apenas sobre Érico Veríssimo, como na crônica anteriormente citada, mas também sobre outros amigos e personalidades artísticas e literárias. A maior parte destas crônicas se constrói através de perguntas e respostas, adquirindo a fragmentada forma textual de entrevista. [32]

Em todos estes textos, a autora fala sobre estas personalidades sempre a propósito de falar sobre si mesma ou de responder a questões que diretamente lhe interessam. Por exemplo, uma das perguntas mais constantes feitas nas entrevistas se refere ao processo criador, certamente um dos temas que mais interessam a autora. Este tema está presente nas entrevistas feitas com Chico Buarque, Pedro Bloch, Tom Jobim, Millôr Fernandes e Marques Rebelo, apenas para citar as que foram reunidas em A Descoberta do Mundo.

De alguma forma, nestas aqui, Clarice parece buscar as respostas para questões pessoais que não é capaz de encontrar sozinha. Outros cronistas também utilizam o mesmo recurso: Otto Lara Resende, no prefácio do livro Gente de Fernando Sabino, afirma que esta condição também determina a obra de seu amigo: A pretexto de falar dos outros, Fernando Sabino fala de si mesmo (...) Mais do que o autor fala dessa gente, essa gente fala do autor.

Em Quase briga entre amigos [33] , por exemplo, a primeira pergunta que Clarice faz a José Carlos de Oliveira ainda que se referira ao amigo, tem o tom angustiante de pergunta sobre ela mesma: Quem é você, Carlinhos? E, por Deus, quem sou eu?

Na entrevista feita com Alceu Amoroso Lima, publicada nos dias 8, 15 e 22 de fevereiro de 1969, Clarice, faz perguntas sobre questões religiosas que dizem respeito ao entrevistado. Por fim, pede um conselho.

- Dr. Alceu, uma vez eu o procurei porque queria aprender do senhor a viver. Eu não sabia e ainda não sei. O senhor me disse coisas altamente emocionantes, que não quero revelar, e disse que eu o procurasse de novo quando precisasse. Pois estou precisando. E queria também que o senhor esclarecesse o que pretendem de mim os meus livros.

- Você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores, que não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é o personagem maior do autor de seus romances. E bem sabe que este autor não é deste mundo. [34]

b) Empregadas domésticas:

Em Por detrás da devoção, de 2 de dezembro de 1967, Clarice dá ao leitor uma das justificativas sobre a freqüência de um dos temas mais constantes nestas crônicas:

Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e exploradora, piorei muito depois que assistia peça As criadas, dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves. Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio mortal.

As empregadas domésticas, que trabalharam para a escritora ou que ela conhecia eventualmente, aparecem constantemente como temas de crônicas. Clarice faz de si mesma e das pessoas com quem convive as matrizes para personagens e para situações por ela inventadas.

É preciso lembrar que não se pode afirmar nem que os personagens e as situações apresentadas de fato existiram nem que estes são simplesmente ficção. Entretanto, é interessante notar como a matéria-prima da crônica são os elementos presentes no cotidiano e como esta ficcionalização implica necessariamente em fazer com que os personagens, e as situações também de certa forma, digam apenas aquilo que interessa a autora.

Seus temas mais freqüentes estão presentes tanto na fala de suas empregadas domésticas, quanto na dos motoristas de táxi e de seus filhos, como mostraremos a seguir. Novamente a Clarice cronista altera o cotidiano e os personagens reais que o compõem segundo suas próprias impressões e de acordo com sua memória. Aninha, a mineira calada, por exemplo, é uma empregada que aparece em quatro crônicas, todas de 1967, e que demonstra interesse não apenas pelos assuntos que também interessam a Clarice, como pela Literatura feita pela escritora:

A mineira calada [35]

Aninha é uma mineira calada que trabalha aqui em casa. E, quando fala, vem aquela voz abafada. Raramente fala. Eu, nunca tive empregada chamada Aparecida, cada vez que vou chamar Aninha, só me ocorre chamar Aparecida. É que ela é uma aparição muda. Um dia de manhã estava arrumando um canto da sala, e eu bordando no outro canto. De repente – na, não de repente, nada é de repente nela, tudo parece uma continuação do silêncio. Continuando pois o silêncio, veio até a mim a sua voz: “A senhora escreve livros?” Respondi um pouco surpreendida que sim. Ela me perguntou, sem parar de arrumar e sem alterar a voz, se eu podia emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que, continuando a arrumar, e com voz ainda mais abafada, respondeu: “Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar.”

Na semana seguinte, Clarice conta que deu a Aninha um livro policial que havia traduzido. Após a leitura, a empregada responde: “Acabei de ler. Gostei, mas achei um pouco pueril. Eu gostava era de ler um livro seu”. Neste texto pode-se notar que o interesse das empregadas não se limita apenas a obra da escritora famosa, a que elas certamente não tinham acesso. Há uma identificação que supera o limite das diferentes de classes sociais a que pertencem a patroa-escritora e as empregadas-leitoras.

Em suas conversas com elas, identificando-se com elas, a cronista percebe uma sensibilidade para os fatos da vida que se assemelha a dela, como se ambas percebessem o mundo da mesma maneira, apesar das distâncias sociais que as separavam. Outra empregada, retratada em Enigma de26 de abril de 1969, fala de forma simples e direta, um dos temas mais constantes na obra da escritora:

(...) Sabia do incêndio que eu sofrera, imaginava a dor que eu sentira, e disse: mais vale a pena sentir dor do que não sentir nada.

- Tem pessoas – acrescentou – que nunca ficam nem deprimidas, e não sabem o que perdem.

Explicou-me, logo a mim, que a depressão ensina muito.

E – juro - acrescentou o seguinte: “A vida tem que ter um aguilhão, senão a pessoa não vive.” E ela usou a palavra aguilhão, de que eu gosto.

A utilização de empregadas domésticas como tema das crônicas também faz com que Clarice utilize outro recurso dos cronistas tradicionais, como Fernando Sabino e Sérgio Porto: a criação de tipos. Entretanto, isto é feito de maneira profundamente diferente em Clarice do que nas crônicas dos escritores citados. Além do fato de que as empregadas normalmente têm a mesma percepção da realidade de Clarice, há a necessidade da autora em buscar além do que o que é simplesmente visível e cotidiano nas pessoas/personagens que apresenta em suas crônicas.

Esta tentativa de humanização ou de busca de sentidos interiores nas personagens fica evidente em O Lanche de 7 de março de 1970. Nesta crônica Clarice começa imaginando como seria “uma festa só de olhar” entre os amigos de quem ela eventualmente tinha se afastado, mas acaba mudando o rumo da crônica narrando como seria seu encontro com suas antigas empregadas, muitas das quais foram retratadas em crônicas anteriores:

O Lanche

(...) Preferi outra imaginação. Começou misturando carinho, gratidão, raiva; só depois é que se desdobraram duas asas de morcego, como o que vem de longe e vai chegando muito perto; mas também brilhavam as asas. Seria um chá – domingo, Rua do Lavradio – que eu oferecia a todas as empregadas que já tive na vida. As que esqueci marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão dentro de mim. As outras sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas – até o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas.

- Pois te desejo muita felicidade – levanta-se uma – desejo que você obtenha tudo o que ninguém pode te dar.

- Quando peço uma coisa – ergue-se outra – só sei falar rindo muito e pensam que não estou precisando.

- Gosto de filme de caçada. (E foi tudo o que me ficou de uma pessoa inteira.)

- Trivial, não, senhora. Só sei fazer comida de pobre.

- Quando eu morrer, uma pessoas vão ter saudade de mim. Mas só isso.

- Fico com os olhos cheios de lágrimas quando falo com a senhora, deve ser espiritismo.

- Era um miúdo tão bonito que até me vinha vontade de fazer-lhe mal.

- Pois hoje de madrugada – me diz a italiana – quando eu vinha para cá, as folhas começaram a cair, e a primeira neve também. Um homem na rua disse assim: “É a chuva de ouro e prata.” Fingi que não ouvi porque se não tomo cuidado os homens fazem de mim o que querem.

- Lá vem a lordeza – levanta-se a mais antiga de todas, aquela que só conseguia dar ternura amarga e nos ensinou tão cedo a perdoar crueldade de amor. – A lordeza dormiu bem? A lordeza é de luxo. É cheia de vontades, ela quer isso, ela quer aquilo. A lordeza é branca.

- Eu queria folga nos três dias de carnaval, madame, porque chega de donzelice.

- Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Lá vem a lordeza: te desejo que obtenhas tudo o que ninguém pode te dar, só isso quando eu morrer. Foi então que o homem disse que a chuva era de ouro, o que ninguém pode te dar. A menos que tenhas medo de ficar toda de pé no escuro, banhada de ouro, só na escuridão, mas só na escuridão. A lordeza é de luxo pobre: folhas ou a primeira neve. Ter o sal do que se come, não fazer mal ao que é bonito, não rir na hora de pedir e nunca fingir que não se ouviu quando alguém disser: esta, mulher, esta é a chuva de ouro e prata. Sim.

c) Motoristas de táxi:

Em Teosofia, do dia 13 de dezembro de 1969, Clarice também se justifica, mas agora para falar de outro tema freqüente em suas crônicas, afirmando que “O que já aprendi com motoristas de táxi daria um livro. Eles sabem muita coisa: literalmente circulam”. Menos freqüentes do que o tema das empregadas domésticas, os taxistas marcam presença nas crônicas pela intromissão, pela inconveniência e por, muitas vezes, apresentarem teorias e opiniões interessantes quando confrontadas com as de Clarice. Em Lição de Moral de 23 de junho de 1973, Clarice relata mais uma das diversas conversas que teve com motoristas de táxi:

Lição de Moral

Um dia desses um chofer de táxi, e eu entrevisto muitos, foi quem se encarregou de me entrevistar. Fez-me várias perguntas indiscretas e, entre elas, uma bastante estranha: “A senhora se sente uma mulher igual a todo mundo?” (...) Respondi sem saber ao certo o que respondia: “Mais ou menos”. “Pois eu”, continuou ele, “me sinto igual a todo mundo. Já fui mendigo, minha senhora. E hoje sou chofer. E, mesmo tendo sido mendigo, me sinto igual a todo mundo. É por isso que lhe estou dando uma lição de moral.” Merecia eu esta lição? Não sei porque despedimo-nos com a maior efusão, um desejando felicidade ao outro. Na certa estávamos precisados.

Tanto as empregadas quanto os motoristas de táxi indicam o interesse da escritora pela criação de tipos, não pela exposição de pessoas estereotipadas como este recurso poderia supor, mas pela composição de personagens – ou pela ficcionalização de pessoas reais – através da investigação psicológica interior demonstrando características particulares não só dos personagens, mas de si mesma.

Todas estas personagens ensinam algo a escritora e, talvez por isso sejam aqui retratadas. A busca pelas verdades e pelos temas que mais lhe instigam, a discussão sobre os temas que mais lhe interessam, sobretudo a necessidade da busca pelo auto-conhecimento, é de tal forma intensa que Clarice coloca o signo desta busca em todas as crônicas reunidas em A Descoberta do Mundo.

d) Filhos:

Outro grupo de pessoas reais ficcionalizadas nestas crônicas são os filhos da escritora. Ora, ela transcreve diálogos entre mãe e filho não nomeados, mas que podemos deduzir que se tratam de Clarice e suas crianças; ora, fala diretamente que se trata de sua família. A crônica que se segue, pertence ao primeiro grupo:

Dez anos [36]

- Amanha faço dez anos. Vou aproveitar bem este meu último dia de nove anos.

Pausa, tristeza.

- Mamãe, minha alma não tem dez anos.

- Quanto tem?

- Acho que só uns oito.

- Não faz mal, é assim mesmo.

- Mas eu acho que se deviam contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com 20 anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com 70 anos de corpo.

Mais tarde começou a cantar, interrompeu-se e disse:

- Estou cantando em minha homenagem. Mas, mamãe, eu não aproveitei bem os meus dez anos de vida.

- Aproveitou muito bem.

- Não, não quero dizer aproveitar fazendo coisas, fazendo isso e fazendo aquilo. Quero dizer que não fui contente o suficiente. O que é? Você ficou triste?

- Não. Vem cá para eu te beijar.

- Viu? Eu não disse que você ficou triste?! viu quantas vezes me beijou?! quando uma pessoa beija tanto outra é porque está triste.

A inocência infantil dizendo verdades dolorosas sobre a vida dos adultos é o principal tema deste grupo de crônicas. Como Clarice, seu filho sabe que não se vive a vida apenas “sendo contente”, mas que muito tempo é perdido em sofrimentos. Entretanto, aquilo que a autora percebe com a experiência e com os acontecimentos da vida adulta, a criança percebe pela intuição infantil. Diante disso, o sofrimento da mãe é duplo: sofre por si mesma e sofre por saber que o mesmo ocorrerá a seus filhos, então inocentes e protegidos pela mãe.

Em Lição de filho de 21 de dezembro de 1968, fica evidente como Clarice aprende com estas verdades intuitivas do universo infantil e como elas solucionam, muitas vezes, dúvidas para as quais a mãe adulta e experiente não tinha encontrado solução. Nesta crônica está explícito que se trata da família de Clarice:

Lição de filho

Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conhecia ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão, mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era extremamente suave, com voz de criança e de um feminismo-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? (...)

Começou. E, Deus, ela possuía força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E, ele:

- Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? você está tendo uma emoção.

Entendi, aceitei, e disse-lhe:

- Não vou tomar nenhum calmante.

E vivi o que era para ser vivido.

Não queremos dizer que esta ficcionalização de pessoas e de acontecimentos implica necessariamente que estes não tenham acontecido ou que aquelas sejam personagens fictícios. O fato é que é provavelmente porque se referem à temas realmente são caros à escritora é que um assunto pode se tornar tema de uma crônica.

Este grupo de textos mostra que, quer seja como cronista, quer seja como escritora, Clarice marca seus textos com sua impressão do mundo e da vida e procura, através destes, responder questões que lhe interessam diretamente. É interessante notar que em todos estes conjuntos de crônicas – das entrevistas às sobre os assuntos em pauta na época, das que tem como tema seus filhos ou as empregadas domésticas que trabalham em sua casa – um dos temas mais constantes é a própria composição do texto: seus romances e livros são comentados por amigos, leitores, empregadas. O ato criador é o tema que perpassa pela maior parte dos assuntos, sendo sempre aquilo que se pode considerar como o objetivo dos textos ou o ponto aonde a escritora quer chegar. A metalinguagem aqui transcende a simples discussão sobre a língua ou sobre o ato de escrever. Nestas crônicas, Clarice busca as suas respostas de maneira profundamente particular buscando não apenas responder a questões literárias ou lingüísticas, mas compreender os assuntos que são os temas de sua literatura.

impressões pessoais com os quais o percebe, a autora se difere profundamente dos cronistas tradicionais, compondo uma obra marcada pelo signo da fragmentação, sem gênero definido e sem se adequar à narrativa tradicional.

3. A REESCRITA E A REPUBLICAÇÃO

Para Gotlib, a produção literária de Clarice surge simultaneamente à sua atividade jornalística. O próprio filho da escritora [37] lembra que sua mãe foi uma das primeiras jornalistas mulheres no Brasil. Esta intensa atividade se dá de forma particular. Paulo Francis, amigo e editor da autora define como estas crônicas acontecem:

“Ela de repente precisou sobreviver como jornalista. Suas crônicas eram um desastre, ilegíveis. Claro, ela não era jornalista. Continuou fazendo literatura”. [38]

Há neste depoimento uma série de elementos interessantes para o desenvolvimento deste trabalho: a necessidade – ao que parece comum a todo cronista - de fazer crônicas como um modo de sobrevivência financeira do escritor, a tentativa de uma distinção de gênero entre jornalismo e literatura e a especificidade da escrita de Clarice Lispector.

É improvável que a autora faça literatura dentro do espaço do jornal, como acredita Paulo Francis, já que o próprio espaço em que o texto se insere determina em grande parte de que forma será feita a leitura deste texto, como já foi dito. Além disso, como tentei demonstrar, em muitos momentos a autora se aproxima da tradição do gênero, o que não permitiria sua exclusão absoluta deste. O fato é que, o estilo da escritora e seu modo de criação particular não tornam estas crônicas simplesmente um “desastre”, mas especificam e delimitam um texto particular. Gotlib comenta este depoimento de Paulo Francis corroborando esta tese:

“De fato, Clarice não deixa de ser escritora nem quando escreve nos jornais na qualidade de jornalista-escritora. Talvez esse dado pudesse explicar não propriamente o seu defeito enquanto jornalista, mas a especificidade da qualidade literária de tais crônicas ou fragmentos”. [39]

Clarice tinha consciência da particularidade dos textos que publicava na imprensa. Em 1965, antes, portanto, de sua participação no Jornal do Brasil, ela afirma a revista Jóia que gostaria de escrever crônicas, mas tem dificuldades nesta atividade porque sabe escrever apenas com seu estilo particular, entretanto a linguagem comum necessária para a realização das crônicas “ah, isso não sei”. Neste depoimento [40] , ao afirmar que não é capaz de fazer textos com uma determinada linguagem, entendida por ela como particular aos textos publicados em jornais, Clarice colabora para que uma delimitação do gênero seja feita.

Há, em muitas crônicas uma reflexão sobre a atividade do cronista que consiste em uma constante reafirmação de sua incapacidade como tal. Em “Ser Cronista” de 22 de junho de 1968, ela afirma:

“Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha e ver se chego a entender”.

Crônica é um relato? É uma conversa? é o resumo de um estado de espírito. Não sei (...)”

Esta tentativa de “tatear” o que é a crônica define indiretamente a imagem que a autora tem sobre o gênero através de uma série de negativas. Crônica parece ser, na opinião de Clarice Lispector e de alguns de seus críticos, o oposto do que ela publica nos jornais. A questão deste trabalho aparece neste aspecto da crítica sobre as crônicas de Clarice de forma evidente: até que ponto seus textos simplesmente não se adequavam ao gênero e até que ponto há uma recusa da autora consagrada em pertencer a este gênero literário menor? Há uma definição precisa de crônica que torne possível a simples exclusão destes textos do gênero?

Mais do que isto, cabe aqui perguntar o que são estes textos, se não podem ser classificados nem como crônica, nem como romances (ou trechos de romances) ou como contos (ou “contos em gestação”). Definir os textos é de tal forma importante que o simples estado de indefinição em que estas crônicas (?) reunidas em A Descoberta do Mundo se encontram permite a exclusão desta obra em relação a “Grande Literatura” ? Enfim, porque a crítica silencia sobre estes textos?

A distinção entre escrever para jornal e escrever romances e contos é determinante para responder a estas questões.  Em “Escrever para jornal e escrever para livro” publicada no dia 29 de julho de 1972, a autora tenta “tatear” as definições sobre estes espaços literários:

“Um jornalista de Belo Horizonte disse-me que fizera uma constatação curiosa: certas pessoas achavam meus livros difíceis e no entanto achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados (...) Respondi ao jornalista que a compreensão do leitor depende muito de sua atitude de abordagem em relação ao texto, de sua predisposição, de sua isenção de idéias pré-concebidas. E o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isso simplesmente porque ‘jornal é para ser entendido”.

Ainda que nesta crônica o motivo pelo qual a recepção dos textos de Clarice é profundamente diferente quando se passa de um meio de veiculação para outro esteja definido com precisão, a autora permanece auto definindo-se como romancista e desmerecendo as atividades literárias na imprensa. Na mesma crônica, ela afirma: “não há dúvida porém, que valorizo muito mais o que escrevo em livros do que o que escrevo para jornais”.

Há uma valoração textual evidente na forma como Clarice compreende sua própria literatura. Na crônica “Ser cronista”, já citada, este menosprezo em relação ao que é publicado em jornais para o trabalho literário necessário para a publicação de um romance fica claro:

“Basta eu saber que estou escrevendo para jornal, isto é, para algo aberto facilmente por todo mundo, e não para um livro, que só é aberto por quem realmente quer, para que, sem mesmo sentir, o modo de escrever se transforme (...) mas mudar só porque isto é uma coluna ou uma crônica? Ser mais leve só porque o leitor assim o quer? Divertir? fazer passar uns minutos de leitura? (...) Vou dizer a verdade: não estou contente.” (grifo meu).

Clarice não estava contente. Mais do que por sua incapacidade formal de realização de crônicas reconhecidamente pertencentes ao gênero, ela não gosta da popularidade que adquire com estes textos publicados em um dos jornais de maior circulação da época. Esta insatisfação se deve também à exposição excessiva decorrente da circulação do jornal e ao modo como se tornou pessoal através destes textos.

Há também a vergonha da autora ao se ver obrigada a vender sua mão-de-obra publicando crônicas como forma de sobrevivência. A correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino [41] em 1953 mostra a discussão dos escritores sobre esta recusa “vergonha” - característica de todo cronista ao que parece – e anuncia a infelicidade que escrever estas crônicas causará no futuro. Clarice pretendia publicar, a partir do intermédio de Sabino, na revista Manchete. Hélio Fernandes, o editor da revista, exige que as crônicas sejam assinadas, mas a autora não aceita. O interesse desta imposição da revista é evidente: a posição-autor que Clarice Lispector ocupa pode dar uma notoriedade importante para a revista, em ascensão naquele momento. Sabino sabe disso e utiliza este fato como forma de convencer a amiga a assinar as crônicas: “Sei que fazem questão de seu nome – e foi nessa base que se conversou: não sei se você sabe que você tem um nome”.

Estas cartas são interessantíssimas, tanto pela negociação que ali é estabelecida, como pela confluência de argumentos de que Sabino se vale para convencer a amiga a assinar as crônicas. Ora, determinando que esta necessidade financeira aparentemente vergonhosa pouco influi na obra e na imagem do escritor, ora apelando para argumentos financeiros incontestáveis:

 “Tem que ser assinado, mas não tem importância, nós todos perdemos a vergonha e estamos assinando. Ele quer pagar 750 cruzeiros por crônica, mas estou convencendo a ele que é um desaforo, mínimo 100 cruzeiros por crônica (...) Não se incomode muito com a qualidade literária porque é assinado – um título qualquer como Bilhete Americano, Cartas da América [42] ou coisa parecida se encarregará de dar caráter de seção e portanto sem responsabilidade literária. O pagamento é pontual, em cheque, e você deve autorizar alguém por carta a receber em seu nome e depositar ou entregar a quem você quiser”.

Diante da insistente recusa de Clarice em assinar as crônicas, Sabino parece que busca, mais do que tentar convencê-la, uma justificativa para si mesmo, escritor marcado com o vergonhoso estigma de escritor comercial de textos para a imprensa:

“(...) acho que você deve assinar o que escrever: como exercício de humildade, é muito bom. E depois, você leva a vantagem de estar enviando correspondência do estrangeiro, o que sempre exime muito a pessoa da responsabilidade propriamente literária. No fundo tudo isso pode ser sofisma de quem se vê também obrigado a assinar e está querendo ver os outros no fogo também”. (grifo meu)

Outro ponto interessante nas cartas em que este assunto é discutido, é ver como Sabino “ensina” Clarice a fazer crônica. Isto determina não apenas como este cronista concebe o gênero em que se insere, como também reverbera muitas conceituações tidas como definitivas da teoria da crônica que já expus neste trabalho, a carta que se segue é significativa neste sentido:

“Não leve a sério demais senão a pontualidade; seções como esta sempre acabam se firmando por si mesmas, depois de duas ou três vezes. Só lhe aconselho a fazer, pelo menos nas primeiras, o mais variado possível: vários assuntos de cada vez para despertar logo o interesse”.

Mas porque este modo de escrever tão particular do estilo de Clarice determina tão profundamente a composição destas crônicas? O modo de criação da escritora, não apenas para a composição de crônicas, mas também dos romances, é determinante para a compreensão desta especificidade. Segundo Renand Perez [43] , em seu primeiro livro Perto do Coração selvagem, a autora descobre aquele que seria seu método definitivo de escrita a partir de então: a anotação imediata em folhas e notas soltas que posteriormente são organizadas por ela para a composição do romance. Além disso, escreve normalmente sem revisões.

A reescrita é significativa para a obra da escritora, ainda que constantemente afirme sua recusa em cumprir esta atividade, como na carta a Lúcio Cardoso [44] em que afirma: “detesto recopiar, sempre que copio transformo”. Entretanto, sobre a escrita de A maçã no escuro, único de seus romances considerado por ela como bem-estruturado, a autora afirma: “Eu copiei onze vezes pra saber o que eu estava querendo dizer. Porque eu queria...quero uma coisa, não sei o que é ainda ao certo. Copiando eu vou... vou me entendendo (...)” [45]

A republicação dos textos é marcada tanto por esta necessidade de reformulação e de resignificação quanto por uma necessidade mais concreta e menos literária: a cronista precisava de assunto. Para Gotlib, “Clarice simplesmente encaixava aí o que tinha a mão. Às vezes eram trechos de romances, como de Água Viva: ‘eu estava escrevendo o livro, então eu detestava fazer crônica. Então eu aproveitava e botava – não era crônica não, era um texto que eu publicava”. [46]

Estes depoimentos podem esclarecer alguns aspectos da fragmentação das crônicas de Clarice Lispector. A necessidade de entregar os textos semanalmente para o Jornal do Brasil fazia com que a escritora aproveitasse algum dos textos no qual ainda estava trabalhando e enviasse para a publicação. Clarice parece tentar escrever crônicas apenas nos primeiros anos de participação no JB, como será discutido a seguir. Na maioria dos momentos, o que ela parece fazer é publicar fragmentos de textos ainda em processo de composição. A observação deste panorama de textos reescrito, no tópico que se segue, parece esclarecer alguns pontos sobre este possível método de composição destes textos.

 

4. UM PEQUENO PANORAMA DE TEXTOS REESCRITOS E REPUBLICADOS

Esta parte do trabalho consiste de um pequeno panorama de alguns dos textos que foram publicados no Jornal do Brasil, reunidos em A Descoberta do Mundo, e que foram republicados posteriormente em algum dos seguintes livros de contos: Felicidade Clandestina, A Legião Estrangeira e Para não esquecer, Onde estivestes de Noite e A Via Crucis do Corpo. [47]

A referência adotada será sempre a ordem cronológica de publicação. Em relação aos livros de contos serão elencados os textos do Jornal do Brasil e o das publicações posteriores, em outros livros organizados pela autora ou por seus herdeiros.

Este corpus está organizado em duas partes:

  1. Contos republicados: São os contos publicados primeiro em livros e que depois são republicados no Jornal do Brasil. Estão presentes nos livros A Legião Estrangeira de 1964 e na segunda parte deste Fundo de Gaveta (republicado como Para não esquecer), períodos anteriores ao inicio da participação de Clarice neste jornal.
  2. “Contos-ensaios”: a republicação destes contos é posterior aos textos no JB. É interessante notar quais as alterações que são feitas para a “versão definitiva” publicada nos livros. Estão presentes em Felicidade Clandestina de 1971, Onde estivestes de Noite de 1974 e A Via Crucis do corpo também de 1974.

i) Contos republicados

a) A Legião Estrangeira (1964) [48]

As primeiras edições do livro são de 64, primeiro pela Editora do Autor e depois pela Editora Ática. É preciso verificar se houve alterações entre as duas edições. Estas primeiras edições possuíam uma segunda parte chamada “Fundo de Gaveta”, reeditada e republicada com o título de Para Não esquecer em 1978.

1. “A repartição dos pães”

Publicado no JB em 21/06/69, com o título de: “Olhava longe, sem rancor”

2. “O Ovo e a Galinha”

Publicado no JB em três partes nos dias 5, 12 e 12 de junho de 69, com o título de: “Atualidade do ovo e da galinha”

3. “A quinta história”

a) Publicado no JB em 26/07/69, com o título de: “Cinco relatos e um tema”.

b) Outra versão desta crônica é publicada no Jornal Comício na página feminina “Entre mulheres” em que Clarice Lispector escreve com o pseudônimo de Teresa Quadros [49] .

4. “A legião estrangeira”

Publicado no JB em cinco partes nos dias 03, 09, 16, 23 e 30 de agosto de 69 com o título de: “A princesa (Noveleta)”

5. “Os desastres de Sofia”

Publicado no JB em cinco partes: nos dias 03, 10 e 17 de janeiro de 70 com o título de “Travessuras de uma menina (Noveleta)” e nos dias 24/01 e 07/02 do mesmo ano como o título de “Noveleta”.

6. “Evolução de uma miopia”

a) Publicado no JB em duas partes nos dias 1º e 8 de agosto de 70 com o título de “Miopia Progressiva”.

7. “Os obedientes”

Publicado no JB em duas partes nos dias 2 e 9 de dezembro de 72 com o mesmo título

8. “Uma amizade sincera”

a) Publicado no JB em 10/02/73 com o título de “Os grandes amigos”

b) Publicado em “Para não esquecer” com o título de “Esvaziamento”.

b) Fundo de gaveta (1964) e Para não esquecer (1978) [50] :

Gotlib afirma que o título “Fundo de gaveta” foi sugestão de Otto Lara Resende para Clarice e que alguns destes textos foram também publicados na coluna “Children’s corner” que a autora mantinha na revista Senhor. A autora cita “uma espécie de miniprefácio” em que Clarice Lispector analisa o motivo da publicação destes textos:

“Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão”.

É preciso verificar, como já afirmei, se há alterações entre essas duas edições, entretanto, considerando que a maior parte destes textos faziam parte de A Legião Estrangeira em 1964 apresento aqui estes textos e suas republicações, como forma de manter a ordem cronológica:

1. “Como se chama”

Publicado no JB em 19/07/67 com o título de “Brincar de pensar” e em 07/06/69 como “O que é o que é?”

2. “Crônica social”.

Publicado no JB em 03/05/69 com o mesmo título.

3. “Esperança”

Publicado no JB em 10/05/69 com o título de “Uma esperança”

4. “O líder”

Publicado no JB em 31/05/69 com o título de “Esboço do sonho do líder”.

5. “Mas já que se há de escrever”

Publicado no JB em 07/06/69 com o mesmo título.

6. “A ceia divina”

Publicado no JB em 07/06/69 com o título de “Amor à terra”.

7. “A explicação inútil”.

Publicado no JB em 11/10/69, com o título de “A explicação que não se explica”.

8. “Desenhando um menino”

a) Publicado no JB em 18/10/69 com o título de “Menino a bico de pena”.

b) publicado em Felicidade Clandestina (1971) com o título de “Menino a bico de pena”.

9. “Futuro de uma delicadeza”

Publicado no JB em 09/05/70 com o título de “Menino”.

10. “O chá”

Publicado no JB em 07/03/70 com o título de “O lanche”.

11. “A vez da missionária”

Publicado no JB 04/07/70 com o título de “Encarnação voluntária”.

12. “A posteridade nos julgará”

Publicado no JB em 26/09/70 com o mesmo título.

13. “Aniversário”

São duas crônicas com este mesmo título. São publicadas juntas no JB em 26/09/70 como “Dez anos”.

14. “Por não estarem distraídos”

Publicado no JB em 12/12/70 com o mesmo título.

15. “Perfil de seres eleitos”

Publicado no JB em 13/11/71com o título de “Perfil de um ser eleito”.

16. “Mas é que o erro...”

Publicado no JB em 27/11/71 com o título de “O erro dos inteligentes”.

17. “Esboço de um guarda-roupa”

Publicado no JB em 18/12/71 com o título de “Estudo de um guarda-roupa”.

18. “Na manjedoura”

a) Publicado no JB em 24/12/71 com o título de “Hoje nasce um menino”

b) Publicado no livro infantil póstumo Como nasceram as estrelas. 12 lendas brasileiras em 1984. Estas histórias foram escritas no ano da morte da autora (1977) para integrar um calendário patrocinado pela fábrica de brinquedos Estrela.

19. “Notas sobre dança hindu”.

Publicado no JB em 22/01/72 com o título de “Tentativa de escrever sutilizas”.

20. “A geléia viva”.

Publicado no JB em 29/01/72 com o título de “A geléia viva como placenta”.

21. “Era uma vez”.

Publicado no JB em 19/02/72 com o título de “Ainda impossível”.

22. “A cozinheira feliz, a grandeza da sinceridade”

Publicado no JB em 04/03/72 com o título de “A cozinheira feliz”.

23. “Estilo”

Publicado no JB em 22/04/72 com o mesmo título.

ii) “Contos-ensaios"

a) Felicidade Clandestina (1971) [51]

1. “Felicidade Clandestina”

Publicado no JB em 02/09/67 com o título de “Tortura e glória”.

Sobre esta transição Gotlib afirma: “a forma do conto, mais extensa, lhe permite deter-se em pormenores que transformam o episodio numa história terrível de inveja e sadismo”. [52]

2. “Cem anos de perdão”

Publicado no JB em 25/07/70 com o mesmo título.

b) Onde Estivestes de Noite (1974) [53] :

1. “Silêncio”

Publicado no JB em 24/08/68 com o título de “Noite na montanha”.

2. “Tempestade de almas”

Publicado no JB com o título de “Brain Storm”.

3. “Um caso complicado”

a) Publicado no JB em 03/02/73 com o título de “Um caso para Nelson Rodrigues”.

b) Publicado em A Via Crucis do Corpo [54] como ”Antes da ponte Rio-Niterói”.

4. “Vida natural”

Publicado no JB em 05/05/73 com o mesmo título.

5. “É para lá que eu vou”.

Esta crônica aparece em dois momentos no JB, em 28/02/70 e em 12/05/73 com o título de “Futuro improvável”.

6. “As águas do mar”

Publicado no JB em 13/12/73 com o mesmo título.

 

5. ANÁLISE DAS ALTERAÇÕES

Esta análise será feita a partir das quantidades de alterações que foram feitas nos textos e da data de publicação destes, como foi feito no item anterior.

GRUPO 1: Textos sem nenhuma alteração ou com alterações mínimas, como o formato da letra – maiúscula ou minúscula - ou a separação de frases reunidas em um mesmo parágrafo em um texto em parágrafos diferentes em outros.

GRUPO 2: Textos com alterações que não alteram significativamente o sentido do texto.

GRUPO 3: Profundas alterações no sentido do texto ou nos aspectos lingüísticos que o caracterizam.

É interessante observar como estes textos “auto-plagiados” se distribuem ao longo dos seis anos em que Clarice trabalha no Jornal do Brasil. Em 1967, ano de estréia da cronista, aparecem apenas dois textos pertencentes ao corpus deste trabalho [55] : No ano seguinte, há apenas uma crônica que será republicada posteriormente. [56] Destes três textos apenas um pertence ao grupo de textos republicados, sendo que os outros dois são “contos-ensaios”.

Em 1969, entretanto, há a presença de 16 crônicas que são alvos de republicação ou que serão republicadas posteriormente, além de duas entrevistas [57] feitas pela autora para as revistas Manchete e Fatos e Fotos e reaproveitadas aqui. Estas republicações preenchem 21 dias deste espaço da autora no jornal. O período mais significativo é o que vai de 05 de julho até 30 de agosto deste ano, em que são republicados 3 contos presentes em A Legião Estrangeira: o conto-título, “O ovo e a galinha” e “A quinta história”. Neste período Clarice fica quase dois meses sem publicar textos inéditos. Separar os que são republicados depois e os que são reaproveitados.

Será possível pensar que isto indique uma crise criativa da autora? Um período em que cansada de buscar inspiração ou envergonhada pelo fracasso na tarefa de cronista, que ela tenta nos anos iniciais cumprir com eficiência, a autora desiste de tentar e apenas preenche o espaço com textos já publicados?

Outra questão interessante que pode ser pensada diante dos dados que serão aqui apresentados é de que forma seu filho Paulo Gurgel Valente se apoiou no crivo literário da mãe para compor o livro póstumo A descoberta do Mundo. A presença destes textos republicados indica, sem dúvida, como o herdeiro afirma um interesse em “identificar o trânsito de situações e personagens entre o texto do jornal e estes livros”. Entretanto, pode-se questionar se o fator determinante para a seleção destes textos indica uma ancoragem no crivo literário da escritora, já que o filho opta por escolher os textos já escolhidos pela mãe antes da morte. Evidentemente, seria preciso realizar uma entrevista com Paulo Gurgel Valente para confirmar esta hipótese.

De qualquer forma, o fato é que em A descoberta do Mundo aparecem 53 textos que são alvo de republicação em algum momento da carreira literária de Clarice, o que é um número significativo dentro do livro e fora dele. Dentro do livro porque a seleção dos textos para este volume privilegia os textos que são republicados em algum momento da carreira literária de Clarice e as razões desta predileção precisam ser investigadas. Fora dele porque a opção por reescrever e republicar determinado texto demonstra uma atenção da escritora sobre aquele texto. Este interesse pode indicar, através das alterações que são feitas, o que a autora determina que o texto esteja finalizado ou como ela compreende que devem ser escritas crônicas e qual a diferença destas para os romances e contos.

GRUPO 1: Textos sem alterações

Os textos pertencentes a este grupo são os seguintes:

TÍTULO DO CONTO

TÍTULO DA CRÔNICA

  1. “A Legião Estrangeira” (em LE)

“A princesa (noveleta)”

  1. “Os desastres de Sofia” (em LE)

“Travessuras de uma menina (noveleta)”

  1. “Evolução de uma miopia” (em LE)

“Miopia progressiva”

  1. “Uma amizade sincera” (em LE)

“Esvaziamento” (em OEN)

“Os grandes amigos”

  1. “A ceia divina” (em FG)

“Amor à terra”

  1. “A explicação inútil” (em FG)

“A explicação que não se explica”

  1. “Desenhando um menino” (em FG)

“Menino a bico de pena” (em FC)

“Menino a bico de pena”

  1. “Futuro de uma delicadeza” (em FG)

“Menino”

  1. “O chá” (em FG)

“O lanche”

  1. “Aniversário” (em FG)

“Dez anos”

  1. “Mas é que o erro...” (em FG)

“O erro dos inteligentes”

  1. “A geléia-viva” (em FG)

“A geléia-viva como placenta”

  1.  “A posteridade nos julgará” (em FG)

Mesmo título.

  1. “Por não estarem distraídos” (em FG)

Mesmo título.

  1. “Estilo” (em FG)

Mesmo título.

  1. “Vida natural” (em OEN)

Mesmo título.

  1. “As águas do mar” (em OEN)

Mesmo título.

  1. “Cem anos de perdão” (em FC)

Mesmo título.

Estes textos se apresentam de maneira praticamente idêntica nos livros e no jornal, ainda que os título sejam alterados na maior parte das vezes. [58]

É interessante pensar que mesmo que a única diferença entre estes textos seja o título, a leitura que é feita e a recepção destes não é a mesma. Em primeiro lugar, a presença de um texto em determinado veículo literário direciona a leitura que é feita. A própria Clarice constata isto na crônica já citada em que ela acentua a importância da predisposição do leitor e sua abordagem em relação ao texto para a leitura que é feita de sua obra.

Além disso, há o fato de que as crônicas são publicadas em diferentes momentos, ou seja, o fato de que há um texto anterior que sirva de referência a esta republicação é significativo para a leitura que é feita destes. Isto ocorre tanto em relação às crônicas que antecedem ao livro (no caso, as crônicas reunidas em Felicidade Clandestina de 1971, Onde estivestes de Noite de 1974 e A Via Crucis do Corpo) como o livro que antecede as crônicas (no caso, as crônicas reunidas em A Legião Estrangeira e em Fundo de Gaveta). 

Para Eduardo Guimarães [59] , há uma pontuação temporal constante nos textos que não permite que o mesmo texto seja lido em dois momentos diferentes da mesma maneira. Assim, ainda que não haja alteração significativa entre as duas publicações do conto “A Legião Estrangeira”, por exemplo, é impossível acreditar que a leitura feita seja a mesma no livro e no jornal, mesmo porque a publicação do conto feita na imprensa divide o texto em 5 partes apresentada ao longo de 5 semanas.

Outro ponto importante é a alteração que é feita entre títulos herméticos dos contos [60] e a simplicidade dos títulos das crônicas. [61] Baseando-se nesta aparente simplicidade seria possível afirmar que há uma tentativa de adequação de gênero nas alterações dos títulos dos textos publicados em livros e republicados no jornal? Esta busca por uma simplicidade aparece também no uso da indicação “noveleta”, dada pela autora a propósito dos contos longos que são republicados em série. O uso deste diminutivo, aparentemente pejorativo, seria uma tentativa de apagar a possível hermeticidade destes textos, escritos para serem publicados em livros de contos, e inseri-los em outro contexto que se pressupõe ser mais informal e menos complexo?

Nas “crônicas-entrevista”, escritas para a revista Manchete e republicadas no JB, também parece acontecer este mesmo esforço de adequação de um assunto literário para a descontração que o espaço do JB parecia exigir. A entrevista feita com o poeta Pablo Neruda – que ocupa dois dias no espaço da crônica da autora - e com o compositor Tom Jobim – que ocupa três dias - são publicadas, respectivamente, em 1969 e 1971 e recebem os títulos de “Entrevista relâmpago com Pablo Neruda” e “Conversa meio a sério com Tom Jobim”. O que estes títulos pretendem? Para que eles são alterados e a que função eles cumprem?

GRUPO 2: Textos com pequenas alterações

Os textos pertencentes a este grupo são os seguintes:

TÍTULO DO CONTO:

TÍTULO DA CRÔNICA:

1. “O ovo e a galinha” (LE)

“Atualidade do ovo e da galinha”

2. “Na manjedoura” (FG e Como nasceram as estrelas)

“Hoje nasce um menino”

3. “Esboço de um guarda-roupa” (FG)

“Estudo de um guarda-roupa”

4. Notas sobre dança indu (em FG)

“Tentativa de escrever sutilizas”.

5. “A repartição dos pães” (FG)

“Olhava longe, sem rancor”

6. “Era uma vez” (FG)

“Ainda impossível”.

7 “A cozinheira feliz, a grandeza da sinceridade” (FG)

“A cozinheira feliz”

8. “Os obedientes” (LE)

 Mesmo título.

9.“Silêncio” (OEN)

“Noite na montanha”.

10. “Um caso complicado” (OEN)

”Antes da ponte Rio-Niterói” (VCC)

“Um caso para Nelson Rodrigues”.

11 “Felicidade Clandestina” (FC)

“Tortura e glória”

12. “Tempestade de almas” (OEN)

“Brain Storm”

O conto “A cozinheira feliz, a grandeza da sinceridade” é republicado no dia 4 de março de 1972 com apenas uma frase acrescentada. Antes da citação de uma carta amorosa recebida pela cozinheira indicada no título, aparece a seguinte indicação: “Não sabia ler, eu li alto a para ela a carta”. Será esta pequena contextualização uma maneira de adequar o texto ao veículo em que se insere, já que as crônicas de jornal pressupõe um conteúdo mais narrativo? Com esta contextualização muitos pontos ocultos no conto são esclarecidos. O leitor compreende que a cozinheira é empregada da autora, que esta carta foi lida por ela para a empregada analfabeta, dando a crônica um conteúdo autobiográfico e realista que o conto não possuía.

GRUPO 3: Profundas alterações

Os textos pertencentes a este grupo são os seguintes:

TÍTULO DO CONTO:

TÍTULO DA CRÔNICA:

1. “Como se chama” (FG)

“Brincar de pensar”

O que é o que é?”

2. “Crônica social” (FG)

Mesmo título

3. “Esperança” (FG)

“Uma esperança”

4. “O líder” (FG)

“Esboço do sonho do líder”.

5. “Mas já que se há de escrever” (FG)

Mesmo título.

6. A vez da missionária” (FG)

“Encarnação voluntária”.

7. Perfil dos seres eleitos” (FG)

“Perfil de um ser eleito”.

8. “É para lá que eu vou” (OEN)

“Futuro improvável”.

O menor número de textos republicados que sofreram grandes alterações em relação àqueles que sofreram pouca ou nenhuma mudança, corrobora a carta já citada de Clarice Lispector a Lúcio Cardoso sobre sua recusa em recopiar e revisar os textos. De fato, quando ela o faz, o texto é profundamente transformado restando muito pouco dos sentidos de seu ponto de partida.

Um caso significativo neste sentido é o da frase-crônica-conto “Mas já que se há de escrever”. A primeira versão deste texto é “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas” (grifo meu) determina as palavras como o agente da ação de esmagamento e a valorização do silêncio em relação às palavras – e a Literatura, certamente – é muito maior do que na frase publicada no JB: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem as palavras nas entrelinhas” (grifo meu). Nesta reescrita, altera-se completamente o sentido do primeiro texto, já que as palavras passam de agentes ativos do esmagamento a passivas a esta violência. As entrelinhas não são mais o ponto que precisa ser preservado, mas o lugar simbólico no qual ocorre este movimento de esmagamento de sentidos pelas palavras. A literatura permanece consentida, como um mal inevitável e necessário, mas a função das palavras e das entrelinhas é profundamente alterada nesta reescrita.

Analisarei a seguir três crônicas do JB que são reescritas de textos de Fundo de Gaveta. Todos estes textos possuem profundas reformulações sendo até mesmo difícil determinar com certeza que foi feita uma reescrita de algum texto. As semelhanças quanto ao assunto tratado ou a inserção de trechos dos contos nas crônicas permitem que se estabeleçam pontos de contato, ainda que

1) “Como se chama” X “Brincar de pensar” / “O que é o que é?”:

O texto “Como se chama” é publicado em Fundo de Gaveta e republicado duas vezes no JB. A primeira republicação recebe o título de “Brincar de pensar” e é feita no primeiro ano de participação da autora no jornal, (1º dia? É o 1º registro presente em A descoberta do Mundo). Este texto parece inserido em uma crônica que parece preparar o leitor para as perguntas que fizeram parte do texto original. Em 1969 o texto é republicado novamente em versão idêntica a que aparece em Fundo de Gaveta.

 A 1ª republicação está citada a seguir com os trechos coincidentes em destaque. É interessante notar que este texto desvia o assunto do texto original de tal forma que os pontos centrais das publicações não são os mesmos: em Fundo de gaveta a discussão gira em torno dos modos possíveis de nomear o desconhecido, enquanto que na 1ª republicação da crônica o ponto central são os riscos da atividade que a autora nomeia como “brincar de pensar”.  Entretanto, ainda que os o texto tratem de assuntos diferentes, a crônica parece contextualizar o momento em que o conto de Fundo de gaveta foi escrito: em uma atividade cotidiana doméstica, a autora, abandona a tarefa de fazer um rol de roupas sujas e faz um rol de sentimentos, deparando-se assim com os sentimentos humanos de impossível nomeação. Os questionamentos feitos na crônica parecem decorrer das perguntas feitas pela narradora neste momento, de modo que o conto apresenta os resultados finais do que foi pensado 

O primeiro texto será uma preparação para o assunto que será tratado no segundo? Quais são os pontos em que as temáticas de cada um destes textos se cruzam? Até que ponto estes trechos podem ser considerados coincidentes se estão sendo utilizados para falar de assuntos diferentes? Até que ponto há uma tentativa de construção de uma narrativa para que se justifique a inserção das perguntas do texto original em um texto a ser publicado em um jornal?

“Como se Chama”/ O que é o que é?”

Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente – como se chama esta mágoa e este rancor? Estar ocupado, e de repente parar por ter sido tomado por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota – como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? E este é o nome.

Brincar de pensar (DM)

A arte de pensar sem riscos. Não fossem os caminhos da emoção a que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir. Não se convidam amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar. O melhor modo é convidar apenas para uma visita e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.

Isso, enquanto jogo leve. Pois para pensar fundo – que é o grau máximo do hobby – é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande,amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar. Exige-se tanto de quem houve as palavras e os silêncios – como se exigiria para sentir. Não, não é verdade. Para sentir exige-se mais.

Bom, mas, quanto a pensar como divertimento, a ausência de riscos o põe ao alcance de todos. Algum risco se tem, é claro. Brinca-se e pode-se sair de coração pesado. Mas de um modo geral, uma vez tomados os cuidados intuitivos, não tem perigo. Como hobby, apresenta a vantagem de ser por excelência transportável. Embora no seio do ar seja ainda melhor, segundo eu. Em certas horas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto acidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa mas ninguém sabe – nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma oficina de consertos ou uma sala de costuras – nessas horas: pensa-se. Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde; só de noite é que não aconselho.

Uma vez, por exemplo – no tempo em que mandávamos roupa para lavar fora – eu estava fazendo o rol. Talvez por hábito de dar título ou por súbita vontade de ter caderno limpo como em escola, escrevi: rol de... e foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar – como – hobby. E escrevi esperta: rol de sentimentos. O que eu queria dizer com isto tive que deixar pra ver depois – outro sinal de se estar no caminho certo é o de não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender.

Então comecei uma listinha de sentimentos dos quase não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem agente não gosta mais,essa mágoa e esse rancor – como se chama? Estar ocupada – e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?

Mas devo avisar. Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco. Não é bom. É apenas infrutífero.

2) Esperança X Uma esperança:

A única semelhança entre estes dois textos é o fato de que ambos tratam das impressões humanas sobre o inseto popularmente chamado como esperança. Em Fundo de Gaveta o texto é escrito por uma narradora que ao se deparar com o inseto faz considerações filosóficas acerca da fragilidade, do amor e do destino a partir da observação da condição natural do inseto observado. Já no JB, o texto é fundamentalmente narrativo e conta os incidentes ocorridos quando o inseto entra na casa da narradora. Um de seus filhos faz comparações entre a esperança/inseto e a esperança/sentimento que são compartilhados silenciosamente por sua mãe.

Entretanto o último parágrafo da crônica (trecho assinalado) anuncia uma outra situação de contato com o inseto. Seria uma referência ao conto de Fundo de gaveta? Considerando-se que o tema da delicadeza do inseto é comum a estes dois possíveis registros da mesma situação, será possível cogitar a existência de uma referência do conto na crônica escrita posteriormente?

Esperança (FG)

Custei um pouco a compreender o que estava vendo. Estava vendo um inseto pousado, verde, de pernas altas. Era uma “esperança” verde, o que sempre me disseram que é de bom angúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde-claro, com pernas que mantinham seu corpo em plano alto e solto, um plano tão quebradiço quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a própria superfície. Parecia com um raso desenho que tivesse caído do papel e, verde, andasse. Mas andava, se sonâmbulo, determinado. Sonâmbulo: uma folha mínima de árvore que tivesse ganho a independência solitária dos que seguem o apagado traço de um destino. Ela, a esperança, andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim. Sem temor ela andava. Seu mecanismo interior não era trêmulo, mas tinha o estremecimento regular do mais frágil relógio. Como seria o amor entre duas esperanças? Verde e verde, e depois o mesmo verde, que, de repente, por vibração de verdes, se torna verde. Amor predestinado pelo seu próprio mecanismo aéreo. Mas onde estariam nela as glândulas do seu destino, e as adrenalinas de seu seco e verde interior? Pois era um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes. Eu? Eu. Nós? Nós. Nessa magra esperança de pernas altas, que caminharia sobre um seio sem nem sequer acordar o resto do corpo, nessa esperança que não pode ser oca, pois não existe linha oca, nessa esperança a energia atômica sem tragédia se encaminha em silêncio. Nós? Nós.

 

Uma esperança (DM)

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a classe que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima da cadeira! – emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa concreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não em acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo – queixei-me.

- Ela só tem alma –explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve de retroceder o caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha – comentou o menino.

- Sei disso – respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que a esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei – continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo do fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar – estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia a aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também a queríamos e, oh! Deus, queríamos menos do que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! – respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros – falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faça o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu, que gosto de pegar nas coisas nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor que esta pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “E essa agora? que devo fazer?” em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. É, acho que não aconteceu nada.

3) A vez da missionária X Encarnação involuntária

Encarnação involuntária

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.

Um dia no avião...ah, meu Deus- implorei- isso não, não quero ser essa missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida da missionária já haviam me tomado. É com curiosidade , algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço - mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar o chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.

Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.

Vamos Ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. Ela cora mal o rapaz se aproxima.

Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.

Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma - então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.

Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava ficando hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance da minha visão intencionada. Mas o homem gordo que euolhara para experimentar e Ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais.

Falhou tudo.

 

A Vez da missionária

Quando o fantasma de pessoa viva me toma. Sei por vários dias serei essa mulher do missionário. A magreza e a delicadeza dela já me tomaram. É com algum deslumbramento, e prévio cansaço, que sucumbo ao que vou experimentar a viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora ocupada demais com meus deveres para poder arcar com o peso dessa vida nova que não conheço, mas cuja tensão angelical já começo a sentir. Percebo que no avião mesmo já comecei a andar com esse passo de santa leiga. Quando saltar em terra, provavelmente já terei esse ar de sofrimento físico e de esperança moral. No entanto quando entrei no avião estava tão forte. Estava, não, estou. É que a minha força está sendo usada para eu conseguir ser fraca. Sou uma missionária ao vento. Entendo, entendo, entendo. Não entendo é nada: só que “não entendo” com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida. Já sei que só daí a uns dias conseguirei recomeçar minha própria vida, que nuca foi própria, senão quando o meu fantasma me toma..

 

BIBLIOGRAFIA

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ASSIS, Machado de: A semana. São Paulo, Editora Hucitec, 1996.

CANDIDO, Antonio (org.): A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 1992.

CHIAPPINI, Ligia: Mulheres, galinhas e mendigos: Clarice Lispector, contos em confronto. In: revista on line Mulheres e literatura, volume 2.

COUTINHO, Afrânio: Ensaio e crônica; in: A literatura no Brasil. Rio de Janeiro; José Olympio Editora, 1986.

DIMAS, Antonio: Ambigüidade da crônica: literatura ou jornalismo? In: Littera, nº 12, ano IV – set. dez.

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_________________ : Para Não esquecer. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 1999.

_________________ : Onde Estivestes de Noite. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 1999.

_________________ :Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 1998

_________________ : A Legião Estrangeira: Rio de Janeiro. Editora Rocco, 1999.

_________________ : A Via Crucis do Corpo. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 1999.

___________ e SABINO, Fernando: Cartas perto do coração. Editora Record, Rio de Janeiro, 1999.

RONCARI, Luis: A estampa da rotativa na crônica literária, in: Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mario de Andrade, vol. 46, nº 1 – 4, jan. dez. 1985.

SÁ, Jorge de: A crônica. São Paulo: Editora Ática, Série Princípios, 1985.

SABINO, Fernando: Gente. Rio de Janeiro, Record, 1996. 4ª edição.



[1] A edição de A Descoberta do Mundo que será utilizada é a da Editora Rocco, de 1999.

[2] Gotlib, Nadia Battella: Clarice: Uma vida que se conta. Editora Ática, São Paulo, 1995.

[3] Chiappini, Ligia: Mulheres, galinhas e mendigos: Clarice Lispector, contos em confronto. In: revista on line Mulheres e literatura, volume 2.

[4] Neste momento do trabalho nossa atenção principal está nos textos jornalísticos reunidos em publicação em livros, no caso A descoberta do mundo, entretanto meu objetivo é perpassar por todas as publicações de Clarice Lispector na imprensa nacional.

[5] FOUCAULT, M: O que é um autor?

[6] Coutinho, Afrânio: Ensaio e crônica; in: A literatura no Brasil. Rio de Janeiro; José Olympio Editora, 1986.

[7] Apud Coutinho, op. cit.

[8] Idem.

[9] Arrigucci, Davi Jr: Fragmentos sobre crônica, in: Enigma e comentário: ensaios sobre Literatura e experiência. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

[10] Dimas, Antonio: Ambigüidade da crônica: literatura ou  jornalismo? In: Littera, nº 12, ano IV – set. dez. 1974.

[11] Apud Dimas, op. cit.

[12] Sá, Jorge de: A crônica. São Paulo: Editora Ática, Série Princípios, 1985.

[13] Assis, Machado de: A semana. São Paulo, Editora Hucitec, 1996.

[14] Candido, Antonio: A vida ao rés-do-chão, in: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 1992

[15] Roncari, Luis: A estampa da rotativa na crônica literária, in: Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mario de Andrade, vol. 46, nº 1 – 4, jan. dez. 1985.

[16] Coutinho, A: op. cit.

[17] Granja, Lucia: Machado de Assis: escritor em formação (à roda dos jornais). Campinas, Mercado de Letras, 2000.

[18] Em torno do cronista Pena.in: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações. Op. cit.

[19] A crônica de Mario de Andrade: impressões que historiam. In: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações. Op. cit.

[20] Apud Jorge de Sá: op. cit.

[21] Crônica publicada em 16 de dezembro de 1972. in: A Descoberta do Mundo, pp. 440 – 442.

[22] In: Gente. Rio de Janeiro, Record, 1996. 4ª edição.

[23] Crônica publicada em 13 de julho de 1968.

[24] Publicada em 25 de abril de 1970.

[25] Crônica publicada em 14 de novembro de 1970.

[26] Gotlib. P. 115.

[27] Crônica publicada em 15 de agosto de 1970.

[28] O crime sem cadáver, in: Quinze anos.

[29] Publicada no dia 13 de maio de 1972.

[30] Crônica publicada em 5 de junho de 1971.

[31] Este termo é utilizado por Jorge de Sá como um dos elementos fundamentais na composição da crônica tradicional. Utilizei-o aqui como forma de evidenciar o fato de que Clarice Lispector também se apropria dos mesmos recursos da crônica assim como esta é entendida pela crítica literária.

[32] Algumas destas crônicas foram posteriormente reunidas em De corpo inteiro.

[33] Publicada no dia 27 de janeiro de 1973.

[34] Este trecho está na crônica que foi publicada em 22 de fevereiro.

[35] Publicada em 25 de novembro de 1967.

[36] Publicada em 10 de outubro de 1970.

[37] Em entrevista concedida a Gotlib para a biografia já citada.

[38] Citado por Gotlib. P. 317.

[39] Gotlib. P. 317.

[40] Apud Gotlib.

[41] Cartas perto do coração. Editora Record, Rio de Janeiro, 1999.

[42] A escritora está morando nos EUA na ocasião desta correspondência.

[43] Perez, Renand: Escritores brasileiros contemporâneos. Citado por Gotlib.

[44] Citada por Gotlib. P 204.

[45] Apud Gotlib

[46] Gotlib. P 375.

[47] É importante lembrar novamente que há uma série de crônicas publicadas no JB e uma produção de Clarice em outros órgãos da imprensa que não estão presentes neste livro. Estes textos precisariam ser estudados em uma parte posterior do trabalho para que se componha um real panorama da republicação destes textos.

[48] Doravante LE.

[49] Esta crônica é citada por Nadia Battella Gotlib, sem as referências da data em que foi publicada ou do título da crônica (ver p. 279)

[50] Doravante PNE.

[51] Doravante FC

[52] Gotlib: p. 106.

[53] Doravante OEN

[54] Doravante VCC

[55] “Felicidade Clandestina” que será republicado posteriormente e “Como se chama” transposto de Fundo de Gaveta

[56] Texto que daria origem a “Silêncio” publicado em 1974 em Onde Estivestes de noite.

[57] com Alceu Amoroso Lima e com Pablo Neruda

[58] Excetuando-se “A posteridade nos julgará” (em FG), “Por não estarem distraídos” (em FG), “Estilo” (em FG), “Vida natural” (em OEN), “As águas do mar” (em OEN) e “Cem anos de perdão” (em FC).

[59] Guimarães, E: Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas, Pontes, 2002.

[60] como “A legião estrangeira” ou “Esvaziamento”

[61] Estes contos são reintitulados respectivamente como “A princesa” ou “Os grandes amigos”.