A literatura e o leitor em tempos de mídia e mercado

Tânia Pellegrini
é Professora de Sociologia da Cultura
na  UNESP -  Araraquara

1-No Brasil, o experimento de  maior fôlego nesse sentidopertence ao escritor Renato Pompeu. Trata-se do romance 
O terceiro milênio, conforme noticia
O Estado de S. Paulo, 30/03/96. Há também o conto  do autor gaúcho Tabajara Ruas,
O Fascínio.
(Correio Popular, 17/04/96).

Os usuários da 
rede podem decidir livremente sobre os rumos das histórias, de  acordo com chaves binárias deixadas pelo "autor".

Um dos pontos fundamentais a ser levado em conta, quando se enfocam as relações entre literatura e história - e que costuma ser descurado -, é a maneira pela qual a história aparece na literatura também através de suas formas específicas de produção e recepção. Ou seja, cada período histórico produz e difunde sua literatura através dos modos técnicos e das instituições disponíveis, o que lhe confere uma marca particular. Nesse sentido - não só por isso, mas também por isso - são muito diferentes os textos medievais compostos para serem apenas cantados ou manuscritos e divulgados de mão em mão, daqueles já impressos mecanicamente e vendidos em livrarias, desde que Gutemberg inventou a imprensa. Isso sem falar nos atuais computadores, processadores de textos e canais eletrônicos de comunicação, como a Internet, que formam uma fantástica rede de produção/divulgação/consumo, nunca imaginada sequer por Júlio Verne, no cada vez mais distante século XIX. 

Nessa linha, no final dos anos 80 deste século prestes a terminar, começaram a surgir os primeiros chamados hipertextos. São textos escritos em computador, divulgados pela Internet e comercializados em disquete, que podem ser apenas um projeto individual, dado simplesmente a ler aos usuários da rede que por ele se interessem, ou um projeto coletivo, escrito a muitas mãos, com a participação de várias pessoas (escritores, autores, criadores?) e até de várias línguas. Nessa área, caminha-se mais rápido que a velocidade da luz e já se organizam congressos e seminários internacionais sobre o assunto, para discutir as possibilidades desse novo meio e as suas implicações nas já antiqüíssimas (e hoje mais que nunca antiquadas) questões relativas à autoria, estilo, gêneros, categorias, etc. 1 

Como se pode perceber, parece óbvio que o próximo século assistirá a transformações ainda maiores. Mas o que está em jogo não é saber se os livros serão substituídos por fitas, discos óticos ou hipertextos, mas se determinados valores, ancorados em séculos de cultura escrita difundida em livro, continuarão a ter o mesmo sentido, para o bem ou para o mal. É bem provável que não, pois as novas técnicas vêm mudando não só a produção da literatura, mas seus modos de fruição e sobretudo sua definição enquanto prática social e atividade humana.

2-Sintomaticamente,  o jornal Folha de  S.Paulo noticiou,  em 28/12/93:  "Os anos 90 solidificaram uma  estranha inversão  no mercado editorial mundial: o marketing tomou o lugar da  literatura. (...) 
O mercado está  mudando o sentido  da literatura, assim como já mudou o do cinema. Porque, pouco a  pouco, a literatura e vai sendo reduzida a mídia." 

Entretanto, e por enquanto, a maioria dos meios técnicos ainda disponíveis para a produção/divulgação/recepção da literatura está integrada aos mecanismos do que se conhece como indústria cultural, instituição cujo funcionamento bem azeitado implica um casamento feliz entre a mídia e o mercado, com inserções cada vez mais globalizadas 2. Integrado nessa complexa estrutura, o texto literário gradativamente vem perdendo sua já esmaecida aura de "criação do espírito", que o destinava também a outros fins que não apenas entretenimento, para cada vez mais ser produzido e divulgado como mercadoria. E é no interior dessa relação tão delicada que também se pode e deve vislumbrar a história. 

A troca gradativa do estatuto de "puro objeto estético" pelo de mercadoria (que não é de hoje e vem acompanhando toda a história do capitalismo), trouxe como conseqüência inescapável a também gradativa redefinição das relações entre a literatura, o leitor, o autor e a própria crítica, que agora, mais que nunca, circulam no interior de um todo estruturado de acordo com a lógica do dinheiro, denominado mercado editorial. 

A história da literatura, no Brasil das três últimas décadas - é esse o ponto que nos interessa -, mais que nunca vem marcada por esse processo e, nesse sentido, para apreendê-la melhor, é importante observar como tem funcionado, no Brasil, o mercado de livros e quais suas implicações na formação do público e no trabalho dos autores e críticos.

O fato mais evidente (que brota de qualquer pesquisa empírica e também da análise e interpretação dos textos produzidos) é que o funcionamento desse mercado passa a ser elemento constitutivo da produção literária - daí o nosso interesse -, numa época em que sua definitiva modernização (a partir dos anos 70), a reboque do crescimento da indústria cultural, consolida uma incipiente profissionalização do escritor, iniciada em décadas anteriores, e a formação de um novo tipo de público. 

3- "60 milhões de  analfabetos  funcionais; 50%  da população  com no máximo
anos de escolaridade".
A República da Ignorância",  Folha de S. Paulo, 02/09/91.
4-Ver LAJOLO,  Marisa e  ZILBERMANN,  Regina. A leitura rarefeita. São  Paulo, Brasiliense, 1991.

É inegável que a situação do livro brasileiro, em geral, sempre conteve inúmeras peculiaridades, uma das quais é o sempre presente distanciamento entre este e o leitor. Vejamos com alguns números: em 1995 foram publicados 330 milhões de exemplares; em 1989 ,300 milhões, contra os 245 milhões de 1980 e os 44 milhões de 1966. O mercado cresceu bastante ao longo desses anos; entretanto, a proporção de leitores continua estacionada em um para cada cinco brasileiros. Desse total de 330 milhões, pouco mais de 12% são chamados pelas editoras de "literatura", ou seja, aqueles livros conhecidos pelo público como "romances" ou "contos", não importa se nacionais ou estrangeiros, sem mencionar poesia. 

Nessa já restrita fatia, poucos brasileiros frequentam as listas dos mais vendidos: comparados aos estrangeiros, são poucos os best-sellers brasileiros. Além de alguns "fenômenos editoriais" já históricos, como Jorge Amado, Érico Veríssimo, e mais recentemente Rubem Fonseca (deixando de lado os números mágicos de Paulo Coelho), as tiragens médias não ultrapassam os 5 mil exemplares por título, embora o número de títulos tenha aumentado ao longo dos anos, atendendo à demanda de públicos específicos. 

Esses números apontam um crescimento seguro do setor que, contudo, sempre se diz em "crise"; com efeito, tal crescimento não corresponde à duplicação da população do país, nos últimos trinta anos; além de o analfabetismo ter recrudescido 3, a modernização excludente, num país de desenvolvimento tão desigual, aumenta a diferença entre as classes sociais e concentra as riquezas no sul. Portanto, por trás desses números, "forças e fraquezas" do mercado, o que se coloca é a lógica persistente do descompasso entre progresso e atraso, aqui expressa na separação entre livro e leitor, entre a indústria do livro e o público potencial que ela poderia atingir. Isto é, a leitura, no Brasil, continua "rarefeita" 4, devido a problemas histórico-estruturais que ainda não encontraram solução. 

5- "Pesquisa sobre o  hábito de leitura  dos brasileiros,  realizada em 11  capitais, revela que  mais da metade  dos entrevistados (57%) não leu  nenhum livro por  lazer ou cultura,  nos últimos doze  meses. A pesquisa  demonstra ainda  que 85% não leram  nenhum livro para  a escola e 82% não  o fizeram nem por motivos de  trabalho."  In: Folha de S.  Paulo, 11/08/96.

Aqui uma observação é importante: um produto só se torna de fato produto quando consumido; assim, um livro só completa esse caminho nas mãos do leitor. Este sempre é um elemento que, de uma forma ou de outra, envolve-se na (re)construçao do texto contido no livro, sem o que esse texto permanece incompleto. Dessa maneira, a recepção tem um papel relevante e se torna mais um traço da história, assim como da sociologia da leitura: se o país é desigual na distribuição da riqueza, também o é na distribuição da cultura letrada (ou informatizada; nesse ponto, com certeza, os meios importam menos do que se apregoa). 

Além do mais, no quadro contemporâneo, a mediação entre livro e leitor é efetuada por todos os artifícios permitidos pelo casamento entre a mídia e o mercado. Um exemplo: o cuidadoso close na capa do livro, que a atriz famosa da novela de mais sucesso do momento "lê" recostada na cama, vende muito mais exemplares do que o nome do próprio autor, se este já não for uma "marca registrada" que garante o produto, como são, por exemplo, os já citados Jorge Amado e Rubem Fonseca, além de Paulo Coelho, cujo estrondoso sucesso editorial intriga críticos e teóricos da literatura, mas não incomoda nem um pouco sua ávida multidão de leitores nacionais e estrangeiros.

Assim, um traço importante da história social da leitura, no Brasil, ainda se apresenta como defasagem: um sofisticado mercado editorial, inserido numa poderosa indústria cultural, não consegue arregimentar tantos leitores/consumidores quanto gostaria, pelos motivos estruturais mencionados (esqueçamos agora Paulo Coelho). Acrescente-se a essa receita o exorbitante preço médio do livro que, dos 10% do salário mínimo das últimas décadas, hoje saltou para quase 20% (algo em torno de vinte dólares). 5 

6- "The ideology  of production can  be critically  examined, in the  conditions and the  genesis of the work  of art. And the  ideology of reception can also be analysed, to disclose the  origin and  construction of  reader's frames of reference". 

WOLF, Janet.  The social  production of art.  N.York, St. Martin's  Press, 1991, pg. 94.


7-Sartre afirmava 
que a escolha que  um autor faz de um aspecto do mundo é que decide quem será seu leitor e  que, quando ele  escolhe seu leitor,  escolhe seu tema.  In: SARTRE,J.P.  Que és la  literatura?,  Buenos Aires, Ed.  Losada, 1976, p.92. 

Só que, atualmente,  muitas vezes tem  sido difícil chamar  a literatura  produzida de  "obra do espírito"  e, além do mais, muitas vezes não  é mais apenas o  autor quem escolhe  seu público ou seu tema.

8-Essas coleções  despertaram  enorme interesse  do público a que  se destinavam,  estudantes de  segundo grau e  universitários, num período em que a chamada "abertura  democrática"  abriu espaço para que se saciasse a  necessidade de  informações tanto tempo contida pela censura, uma vez que abordava  muitos temas, em  várias áreas,  antes considerados  "subversivos" e/ou " atentatórios à moral". Já no  início dos anos 90,  entretanto, esse  interesse se reduziu drasticamente e  muitas delas  deixaram de ser reeeditadas,  o que é um  sintoma a ser considerado.

9- Cf. CANDIDO,
Literatura e Sociedade. S. Paulo, Companhia Ed.  Nacional, 1980,  p.38.
10- Homens e  Livros, na TV  Manchete, Leitura  Livre, da Rádio e  Televisão Cultura  de S.Paulo, Certas Palavras, pela  Rádio Gazeta AM,  Vamos Ler, da  Rádio USP, Os  Escritores, da TV Educativa gaúcha,  Bibliografia, da  Rádio da Univer- sidade, em Porto Alegre, todas no ar  em 85 (com exceção  de Certas Palavras que saiu em 83),  tentam abrir um  novo espaço  literário em  conjunção com a  mídia.

Se o mercado editorial, nos moldes em que hoje se organiza, coloca outra ênfase na necessidade de se considerar o público como consumidor e não apenas como receptor, justamente por isso é que esse aspecto deve ser sempre usado como pista importante, sem que se perca de vista, contudo, a produção dos textos e o papel do autor. 6 

O objeto livro, que se compra e se vende, contém um texto carregado de sentidos que será recebido e decodificado pelo leitor, embora essa decodificação seja apenas parcialmente feita por ele mesmo. Os códigos culturais, que incluem a linguagem, são sistemas de significação densos e complexos, ancorados na história, que permitem diferentes modos de leitura, com ênfases diversas e com maior ou menor sentido crítico, de acordo com a posição que o leitor ocupa na hierarquia social. Isso significa que não se pode simplesmente discutir o "sentido" de uma narrativa, por exemplo, sem se referir a quem vai lê-lo e como, quando e onde isso vai ser feito. 

É claro que o "leitor médio" (essa abstração tão cara à indústria do livro!) não vai tentar recriar o sentido original produzido pelo autor, muito menos vai apreender a natureza ideológica do texto. O ato de ler, para ele, é teoricamente inocente e analiticamente ingênuo, sendo que cada texto só pode ser entendido dentro de suas próprias condições histórico-sociais de leitura. Vale dizer, cada texto é recebido e julgado de acordo com uma dada experiência de vida e de leituras anteriores. Todavia, isso não exclui o fato de que seu papel, enquanto leitor, é situado na hierarquia social, no interior da ideologia e em algum nicho de mercado. Dito de outra forma, o modo pelo qual o leitor recebe o texto e (re)constrói seu sentido é função de seu lugar na sociedade. 7 

Visto por esse ângulo, o processo de industrialização da cultura no Brasil, acelerado na década de 60 e consolidado na de 70, foi aos poucos ajudando a criar um público leitor que, mesmo encerrado nos limites da classe média, já não se reduz a uma estreita elite, como nos anos 40 ou 50, devido também ao aumento demográfico, ao crescimento das cidades e ao desenvolvimento quantitativo do ensino primário e secundário. O que se tem hoje, então, é um público basicamente urbano, formado pelos estratos mais escolarizados: estudantes, professores, jornalistas, artistas, sociólogos, economistas, etc. 

A própria dinâmica de funcionamento do mercado editorial foi "descobrindo" (e criando, ao mesmo tempo) setores específicos desse público, com lugares demarcados dentro do espectro social, e a eles adequando novos produtos. Por exemplo, o público universitário jovem, a quem, nos anos 80, foram destinadas várias coleções de "divulgação" como Primeiros Passos, Tudo é história, Encanto Radical, Circo de Letras e Cantadas Literárias, pela Editora Brasiliense, com temas, modos e abordagem e linguagens específicas. Dessas, apenas Circo de Letras e Cantadas Literárias eram totalmente dedicadas à literatura, tentando criar/suprir com temas e linguagem "jovens" as jovens necessidades de um público já formado no interior da nossa ainda jovem indústria cultural. 8 

O mesmo se pode dizer da literatura infantil. O mercado detectou e ajudou a criar necessidades específicas na área, tanto que, no início dos anos 90, quase 20% de toda a produção na área de literatura se destinava ao leitor-mirim, o que compreende 60 milhões de exemplares. Em 82, a cifra não passara de 12 milhões. Isso significa que, desde o início do período em questão, o público de literatura, progressivamente educado na estética da imagem e do espetáculo criada sobretudo pela televisão, ponta de lança da indústria cultural, vai aos poucos adequando o gosto a uma crescente especialização do mercado, que divide a classe média em rentáveis fatias, etárias, profissionais, econômicas - seja qual for o critério -, antes não consideradas com tanta ênfase. Tem-se, então, o público "jovem", o "infantil", o "universitário", o "escolar", o "feminino", etc.  

Em suma, a relação entre o leitor e o livro vai aos poucos se sofisticando, no sentido de que não envolve apenas uma falaciosa questão de gosto ou de livre escolha do produto. Nem se pode mais afirmar que o interesse do leitor é incialmente pela obra, "só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contacto indispensável" 9 e primeiro com a essa mesma obra. O que existe agora é uma intrincada rede de produção e consumo de preferências e tendências vinculadas à dinâmica do mercado.  

Tal como o escritor, que vai tendo que se adequar aos novos esquemas de profissionalização, o leitor, num processo paralelo, vai aprendendo a se inserir num universo de leitura em que as coordenadas de escolha e fruição não são estabelecidas apenas "por si", mas por todo um jogo mercantil - cujas regras não conhece - e por um processo de difusão bem distante das letras. 

Se o leitor dos anos 60, período em que a indústria cultural e o mercado editorial não estavam consolidados, ainda escolhe seus livros com base numa preferência pelo gênero e/ou pelo autor, por razões emotivas, políticas, econômicas e às vezes até mesmo estéticas, acreditando encontrar neles uma "obra de arte" compreensível para si, a partir dos anos 70 pode-se detectar uma tendência crescente à escolha como resultado de expectativas geradas pelo mercado, que passa a trabalhar em conjunto com a mídia e até com outras formas artísticas. Os resultados desse processo são bem visíveis nos anos 80. A esse respeito, é interessante, além de esclarecedor, citar o êxito das inúmeras peças teatrais e novelas e/ou mini-séries de televisão montadas a partir de obras literárias. Além desses, surgiram muitos programas literários no rádio que, entretanto, permaneceram pouco tempo no ar, por falta de público. 10 

Esse intercâmbio de meios (que não é novidade no campo das artes), no caso, se não ajuda a despertar uma sensibilidade própriamente literária, é eficiente estratégia de estímulo ao consumo do livro, da peça, "bens culturais" equivalentes aos inúmeros produtos vendidos nos intervalos comerciais da televisão ou do rádio. O importante é que um desperta o interesse pelo outro e, nessa troca de códigos, o leitor/espectador vai formando um tipo de percepção muito mais ligado à imagem, mais imediata (num período em que a televisão aumenta seu poder), que à palavra escrita. 

O público dos anos 80 (e muito mais o dos 90) é diferente do público dos anos 70, formado ainda na década anterior, em meio a aspirações de uma cultura nacional, ideologicamente popular, comprometida com a denúncia, o protesto político explícito, e/ou com a mistura antropofágica de linguagens, as crescentes influências internacionais e a alegoria carnavalizadora proposta pelo Tropicalismo.  

É esse mesmo público, o dos anos 60, na maioria ainda avesso às inovações internacionais "modernizantes", que, anos mais tarde, vai devorar avidamente os depoimentos, as denúncias, os romances-reportagem e as memórias que povoaram os anos 70, década marcada pela pesada censura instituída pelo governo militar. Um público que ainda se debatia entre a letra e a imagem, a guitarra elétrica e o violão, ainda afeito a ler livros, a decifrar as metáforas e alegorias em que se traduzia a literatura-denúncia da década, como Incidente em Antares, de E. Veríssimo, ou A Festa, de Ivan Ângelo, a tentar interpretar a mão dupla de textos como Armadilha para Lamartine, de Carlos Sussekind, a percorrer a história nas saborosas memórias de Pedro Nava, a seguir com interesse até as reportagens de crimes nos livros de José Louzeiro, etc. 

11- Também é  importante citar, como uma espécie  de precursora em  assuntos culturais,  a revista Senhor,  que reunia "a  nata da intelectualidade brasileira" dosanos 60:  "Nela se  encontravam as  principais novi- dades da época  (...) Tudo o que  fosse vanguarda e  inquietasse o  espírito cabia nas páginas magnificamente elaboradas  da revista Senhor". In Nosso Século 1960-1980,  S. Paulo, Abril  Cultural, 1980, p. 52.

Pode-se dizer que, nessa mudança lenta, mas claramente perceptível, desempenharam importante papel as revistas de atualidades semanais ou mensais que, desde os anos 60, começaram a transferir para o Brasil modelos europeus ou americanos (L'Express, Time, Newsweek), adequando-os às expectativas do novo público que se criava: Veja (I968), Istoé (1977) e Visão, esta última surgida bem antes (1952), com uma outra proposta. Ela era basicamente um veículo informativo das tendências do mercado e dos negócios em geral, dedicado aos empresários, e só mais tarde foi se adequando aos novos tempos e aumentando o espaço dedicado às questões culturais. As novas revistas surgiram mais ou menos na esteira de outras, de ampla circulação nacional desde décadas anteriores, como O Cruzeiro e Manchete, cuja fachada modernizante já era a fotografia: acostumava-se o público ao mundo das imagens de homens importantes e seus feitos fundamentais. Não se pode esquecer Realidade (1967), que instaurou novos padrões gráficos e uma temática crítica da realidade brasileira, que lhe valeu muitos vetos da censura . 11 

Principalmente Veja, Visão e Istoé passaram a dedicar uma atenção especial aos aspectos culturais, diferentemente de suas antecessoras, mais ou menos como sempre fizeram os jornais, em seus suplementos dedicados ao tema. A diferença é que a atenção dada a autores e livros incorporava-os aos esquemas promocionais antes só aplicados às grandes estrelas políticas, esportivas, do cinema ou da TV. Pode-se dizer que elas foram um importante instrumento de modernização e hierarquização da atividade literária, pois substituíram as publicações especializadas destinadas ao leitor culto, estabelecendo comunicação com um público bem maior, na imensa maioria de classe média. Esta descobriu então que, para estar bem-informada, deveria incluir, no panorama semanal de novidades, algum livro recém-lançado, possivelmente um novo e "moderno" romance de um talento apenas descoberto ou de algum autor consagrado e até mesmo um texto de "denúncia" do estado das coisas. Tais revistas (além dos jornais), portanto, são importante fonte de pesquisa dos modos de produção e difusão da literatura no período, desde que elas, parte integrante da indústria cultural, além de detectar as tendências do leitor na escolha dos livros, trabalham na conformação do seu gosto, na medida em que elegem uma ou outra obra para ser exaltada ou criticada, por motivos não propriamente ligados à qualidade das mesmas. 

Todos esses elementos estabelecem um campo de forças, com limites e pressões bem determinados, no interior do qual movimenta-se o escritor, adotando atitudes e desenvolvendo formas que constituem suas respostas pessoais a ele. Nesse campo de forças estão em jogo dois tipos de atividade produtiva: a propriamente literária, função do escritor, e a industrial, a cargo das editoras. E os vínculos entre ambas nem sempre são harmoniosos... Melhor dizendo, mesmo que sua atividade produtiva continue a ser pessoal e artesanal, o autor agora é, em definitivo, um produtor trabalhando para o mercado, o que lhe impoe conhecer e, mal ou bem, aceitar suas regras.  

12- "...além da  informação básica  fornecida pela  lista dos mais  vendidos, ela é  também utilizada,  freqüentemente,  como peça publicitária nas lojas ou, no mínimo, como um indicador de quais livros devem ser colocados em  destaque na montagem das vitrines(...)".
Veja, 11/12/96. É o mercado se auto-alimentando.

Viver do próprio trabalho sempre foi uma ambição dos escritores não apenas brasileiros e, mesmo sentida como necessidade, nunca se resolveu muito bem na relação mantida com os "sagrados" valores literários. Hoje, quando o processo de industrialização da cultura parece ter atingido o ponto máximo, dentro dos limites da peculiar modernidade brasileira, a atrofia da "aura" literária já pode claramente ser vista como elogio da mercadoria. 

Não há como deixar de perceber: a atenção excessiva à produtividade e à demanda pode prejudicar os processos de amadurecimento artístico, que não seguem obrigatoriamente os parâmetros da produção industrial. É muito difícil, dentro das facilidades que o mercado oferece, manter uma constante reflexão sobre a própria obra. Daí o risco dos descuidos, das mesmices, chulices e obviedades que vêm permeando a literatura contemporânea, muitas vezes com a esfarrapada desculpa de que se trata de "literatura de entretenimento". Para se relacionar melhor com os virtuais leitores, roubando-lhes algumas horas de televisão e inclusive tentando competir com o código estético dela, o escritor tem muitas vezes optado pelo gosto padrão: um texto que poderia ser de boa qualidade, porém muitas vezes escrito com pressa para um leitor também apressado, não consegue mais escapar das redundâncias e clichês e, muitas vezes, até de erros gramaticais. 

O público, então, insere-se nesse intrincado mecanismo como mola mestra, sem a qual nada funciona. Devido a isso, criaram-se vários sistemas para orientá-lo no labirinto bibliográfico: as colunas, os comentários, as resenhas, as notas, as famosas "listas dos mais vendidos", os suplementos de cultura e cadernos "b" nos jornais - onde se amontoa também todo tipo de apelo ao mais desbragado consumo, ao abuso do fungível e do descartável. 

Nesse sentido, é interessante destacar a modificação que a revista Veja fez, recentemente, na elaboração de sua lista de livros mais vendidos. Publicada desde 1973, essa lista era dividida em dois campos: ficção e não-ficção. Na primeira, agrupavam-se romances e contos; na segunda, biografias, poesia e ensaios. Com o passar do tempo, porém, foram aparecendo no mercado dois gêneros que não se enquadravam nessas divisões: os livros esotéricos e os de auto-ajuda, cujos motivos do surgimento provavelmente estão ligados à criação, pelo próprio mercado, da necessidade de lenitivo para os conhecidos males de uma sociedade por ele governada. Assim, as listas de Veja hoje já contam com três seções: ficção, não ficção e auto ajuda e esoterismo. 12 

13- Há um dado  significativo que  deve também ser observado como  sintoma de que a  literatura vem  perdendo terreno  para outras  "formas de lazer",  provavelmente  mais ligadas à  imagem que à letra:  desde meados dos  anos 90, vem  diminuindo gradativamente o  espaço destinado a autores e livros nacionais nas  citadas revistas.

As listas, de maneira geral, orientam um tipo de comportamento que consiste em apostar no conhecido: o conhecido é o mais famoso e, portanto, tem mais sucesso. Estabelece-se, assim, uma espécie de "marca literária", que funciona como garantia; conquista a confiança como um produto que se consegue impor, bom-bril, gilette, danone, paulo-coelho ou rubem-fonseca: "mais um Paulo Coelho", "o novo Rubem Fonseca", em que o termo "novo" pode não significar necessariamente novidade, apenas "mais um"... 

Por trás da "marca", a figura do escritor, sua imagem pública, pela qual o leitor sempre nutre curiosidade. Nunca a imagem do escritor foi tão importante: veiculada pela imprensa e em menor escala pela mídia, chega a substituir a importância da própria obra. Proliferam as "entrevistas literárias" que versam sobre política nacional, pratos preferidos, manias secretas, concepções artísticas e opiniões sobre o próprio trabalho, sempre ilustradas com fotografias. É a literatura em tempo de espetáculo. 13 

Se, por um lado, para os escritores, isso tem como móvel o desejo legítimo de poder transmitir sua mensagem pessoal e de dar-se a conhecer, a fim de melhor conquistar o leitor para seus textos, para as editoras representa um inequívoco aumento da possibilidade de nortear o gosto do leitor na direção dos produtos que pretende colocar no mercado, suas "marcas" registradas. 

 

Então, "viver da pena" significa, para o escritor contemporâneo, muitas vezes enveredar por estratégias de divulgação, de promoção e de vendas do objeto-livro antes sequer imaginadas, quando, colocado o ponto final, ele se separava do texto e o entregava para publicação. Hoje, ao longo de tardes e noites de autógrafos, muitas vezes em viagens pelo interior do país, ele enfrenta verdadeiras maratonas de entrevistas e palestras, em busca de um público já tradicionalmente arredio. Assim, além de ter que repensar a própria noção de texto literário, em razão das exigências da produtividade industrial e de um leitor afeito a imagens e cores, mais que a letras, o escritor de hoje vem adequando aos novos tempos seu perfil de intelectual e profissional: 

E aqui caímos na questão da crítica, cujo estatuto também se mostra hoje profundamente alterado. Dividida entre a crítica acadêmica, especializada, que funciona como um mecanismo de seleção e hierarquização da literatura mais ou menos de acordo com os critérios do já institucionalizado e, de uma certa forma, às vezes refugiada em suplementos como o antigo Folhetim ou o recente Jornal de Resenhas ( da Folha de S. Paulo) ou Cultura ( do O Estado de São Paulo), só para dar alguns exemplos, e aquela outra feita pelas revistas semanais, cujo objetivo mais e mais foi se reduzindo a fazer propaganda dos novos produtos disponíveis nas livrarias, a crítica literária regular e judicativa, que supõe valoração, mesmo que provisória, para leitores não especializados, foi aos poucos se eclipsando. 
 

14- Entrevista a  Veja, 15/11/75.

Essa crítica valorativa, se podemos assim chamá-la, era a conhecida crítica de "rodapé", dominante nos anos 40 e 50, fundamentalmente marcada pela não especialização dos que a ela se dedicavam, como Álvaro Lins e Sérgio Milliet. Sua linguagem eloqüente, de leitura fácil, visava também fazer publicidade, num diálogo bastante próximo com o mercado de sua época. Mas isso não impedia, como afiança Antônio Cândido, que se produzisse "uma visão competente", ao mesmo tempo formativa e informativa". 14 

O surgimento de uma crítica universitária, através de uma geração formada pelas Faculdades de Letras do Rio e de São Paulo, contribuiu para que o "rodapé", aos poucos, se extingüisse, em virtude das novas exigências do crítico agora especializado, com base em critérios de competência específicos de sua área. 

Se, como afirma Cândido, a crítica em geral se fortaleceu com o conseqënte aparecimento de livros e revistas especializadas, por outro se enfraqueceu, devido ao êxodo dos críticos universitários. Para suprir essa falta, surgiram os Suplementos. Ao contrário do "rodapé", integrado ao corpo do jornal, o "suplemento", no seu formato separado, já indica que forma e conteúdo da crítica que aí se faz não são para qualquer leitor... 

15- O que existe  hoje, final dos anos  90 , é uma ilimitada cumplicidade  entre a mídia e o  mercado, envolvendo inclusive  "elaborados  lobbies que  abrangem desde  grupelhos corporativos até editoras  com 'olheiros'  dentro das redações dos jornais." TREVISAN, João  S.. "O romance  brasileiro e seus fantasmas", in:  Correio popular ,6/07/96.

Assim, não é de espantar que, desde fins dos anos 70, com a industrialização da cultura avançando a largas passadas, as coisas tenham se invertido: se antes eram os críticos acadêmicos que olhavam de soslaio para os críticos de "rodapé", agora são os jornais e revistas que, com exceção dos Suplementos, passam a não aceitar-lhes o discurso, tido como "jargão incompreensível", e o método, que inclui lógica teórico-argumentativa, muitas vezes sem os rasgos de intuição e os brilhos superficiais dos textos jornalísticos. 

O que se tem hoje, como resultado do longo processo de mercantilização da literatura, no Brasil, é, portanto, uma espécie de "colunismo literário", de resenha meramente informativa, escrita por "resenheiros" ( e não resenhistas), escrevinhadores representados, com louváveis exceções, por profissionais do jornalismo, muitas vezes minimamente competentes, movidos por interesses apenas secundariamente literários. 15 

O caminho percorrido pela literatura brasileira, ao longo das três últimas décadas, no corpo a corpo com a maquinaria cultural, configura-se, ao fim e ao cabo, como pista segura e inequívoca a seguir na interpretação de um novo período histórico-cultural-literário, chamado Pós-modernismo, que no Brasil também já imprime suas marcas, entre as quais uma profunda crise naquilo que até então se conheceu como literatura. E a crise da literatura, como se viu, é também a crise do livro e do leitor, ambas provocadas por transformações profundas nos meios técnicos de produção cultural, que se traduzem também por reformulações nos seus modos de produção e consumo. Contudo, é importante assinalar, essas transformações, per si, não excluem (ainda?) a prática de escrever e editar livros, mas têm excluído paulatinamente e cada vez mais qualquer valor relacionado a essas práticas que não esteja intrinsecamente ligado ao giro vertiginoso do mercado. E é isso o que inquieta.