Sobre o autor de O Piolho Viajante,
escreve o professor João Palma-Ferreira:
"Anônimo foi publicado
o livro. É tempo, porém, de lhe chamarmos o autor à convivência dos
seus contemporâneos. Foi-o António Manuel Policarpo da Silva, que, em
1802, propôs à Censura o manuscrito de O Piolho Viajante, porventura
de redacção anterior. Mereceu do censor régio João Guilherme Cristiano
Muller, homem de letras gordas, a ajuizar pela caligrafia, como dele
nos conta José Timóteo da Silva Bastos, na História da Censura Intelectual
em Portugal (p. 287 da ed. de 1926), um dos poucos elogios que conseguiu
ao longo da história da sua sobrevivência. Escreveu o censor: Naõ ha
duvida que os quadros, que ella (a obra) offerece à contemplação de
seus leitores, representaõ frequentemente objectos bem triviais, e rasteiros;
e caricaturas plebeias e feias, mas com um feliz acerto da Verdade,
- com hum geito de expressaõ, que faz esta collecçaõ comparavel a huma
das pinturas de Tenier, Ostade, Collot e Hogarth. Quem entende o que
isto quer dizer, naõ deixará de felicitar o Autor de seu singular Engenho,
e a literatura da Naçaõ, entre a qual elle escreve, d'huma acquisiçaõ
comparavel no seu genero às obras primas das outras. Eu me envergonharia
de hesitar hum unico momento para dar o meu voto a favor da sua publicaçaõ...
São doze as longas páginas em que o censor Muller analisa O Piolho
Viajante, análise que irritou Silva Rastos, o qual, apesar de não
emitir sobre a obra um juizo correcto, a considerou cozinhada,
e borracheira, passando-lhe por cima com a mesma ligeireza que
Policarpo da Silva acusava nos críticos do seu tempo. Ao severo racionalista
autor da História da Censura Intelectual bastaram as primeiras
linhas de O Piolho Viajante para franzir o nariz a uma história
que Voltaire não iniciaria com mais sal. Pouco mais sabemos de Policarpo
da Silva. Era homem liberal e de convicções constitucionalistas, como
se pode ajuizar de outro manuscrito que propôs à Censura, o Manifesto
dos Espanhóis aos Povos da Andaluzia. Foi censor o licenciado Lucas
Tavares, que recusou a obra. Nela se dizia, a páginas tantas, que o
Hespanhol novamente recobrou os seus direitos; povo a quem os tirannos
chamaõ plebe levantou a sua soberana fronte e escreveu com o seu dedo
que todo o poder constitucional delle dimana sem que possa ter outra
origem. Esta implícita negação das origens divinas do poder, latente,
aliás, em numerosas passagens de O Piolho Viajante, anuncia-lhe
as simpatias liberais que certamente não deixou de tornar públicas quando,
mais tarde, a oportunidade se lho deparou. Foi livreiro e editor com loja
permanente, e por muitos anos, desde o início do século XIX, no Terreiro
do Paço, debaixo da arcada da Câmara Municipal, que então ocupava um
dos edifícios onde hoje estão instalados alguns Ministérios. Melhor
poiso não o poderia ter para captar todo o pitoresco da cidade e para
conhecer as tricas da cabala literária. Em 1819, quando anos já levava
a edição de O Piolho, publicou outra obra, sempre sob o disfarce de
tradução de um anónimo, as Leituras Úteis e Divertidas Traduzidas
em Vulgar, em 4 volumes ilustrados. Muito menos audaz do que O
Piolho Viajante e de menor sucesso público, revela, porém, os mesmos
dotes satíricos e a agudeza de espirito que deixara nas 72 carapuças
por onde fez viajar o piolho. Editou ainda uma publicação periódica,
as Variedades, de que foi único redactor D. António da Visitação
Freire de Carvalho.
PALMA-FERREIRA, João. Prefácio. In: SILVA, António Manuel Policarpo
da. O Piolho Viajante: divididas as viagens em mil e uma carapuças.
Ortografia actualizada, prefácio, glossário e notas por João Palma-Ferreira,
Professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Salamanca e Bolseiro
do Instituto de Alta Cultura. Lisboa: Estúdios Cor, 1973.p.9-24. |