Editora Luzeiro - Um estudo de caso

Ana Raquel Motta de Souza

 

A Editora Luzeiro é uma grande editora de São Paulo que tem toda sua publicação voltada para o público popular. Trata-se de métodos para o estudo de violão, livros de modinha cifrados e não cifrados, métodos para datilografia, modelos de cartas para todos os fins - inclusive de amor - , livros de interpretação de sonhos, de piadas classificadas, livretos pornográficos e literatura de cordel. A maior parte da produção é de literatura de cordel. Este fato desperta um grande interesse com relação a essa Editora, pois ela publica, em São Paulo, um grande número de folhetos de cordel que, pela tradição, são feitos e publicados nos estados do Nordeste.

A pesquisa sobre a Editora consistiu em entrevistar seus donos- primeiramente Arlindo Pinto de Souza, seu fundador e proprietário até 1995, e também o atual dono, Gregório Nicoló - em visitar a sede da Luzeiro no bairro do Brás e analisar documentos relativos ao número de tiragens, títulos mais vendidos e contrato de venda das histórias. Foi também feito um estudo de campo através de uma viagem ao Nordeste, às cidades de Aracaju-SE e Maceió-AL, onde entrevistei revendedores da Luzeiro e familiares do poeta Manoel D’Almeida Filho, que foi, até o seu falecimento em 1995, revisor e selecionador de textos da Editora. As entrevistas têm um papel central em minha pesquisa pois foi através delas que eu pude reconstituir o histórico da Luzeiro e analisar a estrutura de relações que estão presentes em sua constituição dos últimos anos.

Cabe ressaltar que a Editora Luzeiro, além de ser importantíssima no universo popular é também de grande expressão no cenário editorial geral do Brasil. Arlindo Pinto de Souza me relatou, em uma de suas entrevistas, que:

...no último levantamento feito pelo Sindicato Nacional dos Editores, do Rio de Janeiro, nós estávamos classificados em vigésimo lugar em número de tiragens. E não foi, por exemplo, o ano melhor do cordel. Melhor ano do cordel, para nós, foi um milhão e seiscentos mil exemplares.

Estas tiragens tão altas são só o começo das surpresas com essa tão curiosa e peculiar Editora.

- HISTÓRICO DA EDITORA -

O histórico da Editora Luzeiro confunde-se com a vida de seu proprietário até 1995, Arlindo Pinto de Souza. Na década de vinte, o pai de Arlindo, José Pinto de Souza, vindo de Portugal, estabeleceu-se em São Paulo com a Tipografia Souza, que imprimia, em folhas soltas, modinhas musicais de sucesso da época para crianças e cegos venderem nas ruas. Depois passou a juntar várias modinhas e vendê-las no formato de livrinhos, nos moldes do folheto de cordel português, que ele já conhecia por ter sido leitor em Portugal. Notemos que, nesta fase, José Pinto de Souza apenas utilizava a forma do livreto de cordel português. Até que, em seguida, passou também a publicar as histórias que eram vendidas em Portugal. Este foi o primeiro passo da Tipografia Souza rumo à outro universo editorial, que não o das letras de música (modinhas).

A partir do momento em que a Tipografia Souza passou a publicar, com sucesso de vendagem, histórias em verso, José Pinto de Souza começou a perceber que poderia investir mais neste tipo de publicação. Conhecia a literatura de folhetos nordestina no Brasil ,que já vinha sendo trazida na bagagem dos migrantes dos estados do Nordeste que, cada vez mais vinham tentar a vida em São Paulo. Sabia também que, embora o cordel português e o folheto nordestino coincidissem por ser literatura em verso e fossem parecidos na materialidade dos livretos, eram diferentes formas poéticas. Decidiu publicar as histórias brasileiras, que já eram conhecidas e lidas por essa população que então chegava em São Paulo. Publicou, inicialmente, as histórias de domínio público, sem autor individual. Com isso evitava pagar direitos autorais.

Vejamos a história nas palavras de Arlindo:

Então ele (José Pinto de Souza) teve a idéia de importar os originais portugueses. Um deles Zezinho e Mariquinhas, José do Telhado e outros que me fogem à lembrança agora. E o desenvolvimento das estrofes em Portugal é, era em quadras. No Brasil é que depois se adotou o sistema de sextilha e septilha, né. Seis e sete versos. E então ele por muito tempo continuou a lançar os originais portugueses. Até que depois resolveu também publicar os brasileiros, que já estavam em domínio público, como Peleja de cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum e etc.

E Arlindo conta como se envolveu com o negócio:

Bom, e depois, ali por volta dos doze, treze anos é que eu comecei a gostar, ler e gostar. Não sei porque, acho que de datilografar...

Arlindo assumiu, desde muito cedo, a parte editorial e um de seus irmãos ficou com a parte comercial, quer dizer, era Arlindo que lidava com os aspectos "literários" da Editora, por exemplo com a seleção de títulos a publicar, revisão de textos, apresentação dos livros (capa, ilustrações, etc.). Por outro lado, seu irmão (que o era somente por parte de pai) lidava com os aspectos financeiros da Editora. Com a morte do pai, Arlindo separa-se deste seu irmão e funda, em 1952, com seu outro irmão, Armando, a Editora Prelúdio.

A Editora Prelúdio publicava principalmente livros de modinha musical, cifrados e não cifrados. Arlindo não queria fazer concorrência com a Tipografia Souza, da qual seu irmão paterno continuara a cuidar. Por isso não lançava títulos repetidos, que já fossem publicados pelo irmão Souza. A Prelúdio publicava também folhetos de cordel nordestino que já fossem de domínio público - títulos diferentes dos da Tipografia Souza - e introduziu a impressão em duas cores. Mas havia poucos títulos a oferecer e Arlindo, percebendo o grande mercado que havia para este tipo de publicação em São Paulo, teve a idéia de lançar, em terras paulistas, os folhetos de cordel com autor identificado que faziam sucesso no Nordeste.

E foi assim que, sem fazer contato prévio com os autores, a Editora Prelúdio passou a publicar folhetos de Manoel D’Almeida Filho, Rodolfo Coelho Cavalcanti e outros consagrados. Essas publicações foram feitas sem o conhecimento dos poetas nordestinos. Arlindo conta que previa a reação que isso iria provocar, mas diz ter sido esta a maneira encontrada para publicar estes livros em São Paulo e conseguir algum contato com os autores, que viviam no Nordeste, publicando seus trabalhos em tipografias pequenas. E a reação não tardou. Logo apareceram os poetas na sede da Prelúdio, reivindicando o direito sobre suas histórias. Levaram advogados para a negociação.

Arlindo explicou aos autores que estava interessado na publicação daqueles folhetos e que aquele havia sido o modo encontrado para estabelecer contato. A Prelúdio então pagou um valor sobre o que já fora publicado e comprou a propriedade de alguns folhetos. Como a absoluta maioria dos poetas é também vendedor, eles preferiram - e preferem até hoje - receber em exemplares do folheto a receber em dinheiro. Enquanto as editoras do Nordeste pagavam de duzentos a trezentos folhetos em troca da propriedade, a Prelúdio ofereceu mil exemplares. A Editora firmava com os autores um contrato escrito, lavrado em cartório, com um valor estipulado em dinheiro pela venda dos títulos, mas, na verdade o pagamento se dava em exemplares do livro.

Arlindo, em sua entrevista, explicou:

E no Nordeste eles faziam assim. O autor tinha um livro, então ele procurava um editor, (...) ele publicava e dava duzentos, trezentos exemplares - quando tinha muito sucesso trezentos exemplares - e tinha o pagamento dos direitos, da compra dos direitos. Bom, quando eles vieram a São Paulo, achou muito pouco trezentos, então fizemos na base de mil livros. Eles ficaram satisfeitíssimos (...) porque geralmente o poeta, ele é vendedor também.

O poeta João Firmino Cabral, de Aracaju, também revendedor da Luzeiro, assim se refere à Editora:

A mesma Luzeiro que comprou todos os meus direitos autorais, hoje eu compro a ela os livros para revender.

(figura 1)

Além destas vantagens, a Prelúdio publicava o folheto com uma qualidade técnica superior a que eles vinham sendo publicados no Nordeste. Esta qualidade técnica - folheto maior, ilustrações coloridas na capa, papel melhor - foi citada em muitas das entrevistas como um fator que auxilia a venda de folhetos. Por exemplo, Arlindo:

E eu tenho assim, já aconteceu com o Manoel D’Almeida, na banca, lá em Aracaju, procurarem, por exemplo, Pavão Misterioso. Então ele olha aquele colorido e o que publicavam no Nordeste. Que publicavam, não publicam mais. Ele perguntava qual era o... ele não falava autêntico... qual era o verdadeiro. O Manoel D’Almeida dizia: ‘os dois são verdadeiros’. ’Então eu quero este, de capa colorida.’ Que era mais bonitinha, atraía mais, etc, era um pouco mais caro mas, atraía mais.

Também o poeta João Firmino Cabral:

A Luzeiro foi a... foi a única razão da literatura de cordel continuar viva. Porque sem ela a literatura de cordel já tinha morrido há muito tempo. Pelo seguinte: uma coisa que você lê e todo público sabe, que nós não estamos mais no tempo do... só do carro de boi. Lá no sertão temos o carro de boi, lá no sertão já temos alguma coisa que mantém tradição, mas você chega hoje no sertão, no alto sertão, você já encontra casa com televisão, com vídeo. (...) Antena parabólica, você vê muito. Então, jovem, por este motivo as coisas vão evoluindo. E a Luzeiro fez com que os seus trabalhos também evoluíssem, porque você veja: muitas vezes eu mostro um livro desses aqui ao freguês, com a capa em xilogravura, e mostro um desses aqui, aí o freguês... É claro que o freguês se interessa mais pelo que é mais bonito, mais acabado, material melhor. Porque nós passamos do tempo do atraso pro tempo do adiantamento. Nós não estamos mais num país atrasado, nosso país é um país superdesenvolvido.

(figura 2)

Como estratégia na conquista do mercado nordestino, Arlindo optou por adaptar-se a algumas estruturas do sistema editorial de lá, o que inclui relações de compadrio e contratos verbais, por exemplo. No depoimento do revendedor da Luzeiro em Maceió-AL, José Artur Pereira, ele diz que soube da existência da Prelúdio por intermédio de seus compadres. E além disso, conta que da primeira vez que foi a São Paulo, Arlindo pagou toda a despesa.

Na década de setenta, a Editora Prelúdio passa por uma crise financeira e vai à falência. Os irmãos Arlindo e Armando retomam o negócio, agora com o nome de "Luzeiro Editora". É importante ressaltar que a mudança de nome de Prelúdio para Luzeiro denota uma mudança no rumo editorial, agora mais voltado para a literatura de cordel do que para os livros de modinha. O nome "Prelúdio" remetia a prelúdio musical e o nome "Luzeiro" remete a um termo usado comumente no Nordeste, que tem o sentido de "algo que ilumina", "foco de luz". A Luzeiro veio da Editora Prelúdio. Arlindo explica assim seu surgimento:

Bom, a Luzeiro é o seguinte. A Prelúdio, nós pedimos concordata. Foi numa época de crise muito grande, ali por volta de setenta. De vez em quando, nosso setor, é, a literatura de cordel ela vai de acordo com a época, com a situação econômica do país. Num estado normal vende muito bem. Do contrário ela é atingida, sabe, é o pessoal de menor poder aquisitivo que compra. Então atinge muito. (...) Houve uma crise. Surgiu uma crise porque nós tínhamos assim o privilégio na compra de papel, o governo subvencionava 50% do valor do papel. Jânio Quadros cortou. E aí fomos obrigados a aumentar o preço do livro. Em 1970, nós havíamos adquirido um prédio, importamos máquinas automáticas, já tinha toda essa parafernália, um negócio super moderno, a máquina com seis cores. E na primeira crisezinha não deu pra suportar e nós pedimos concordata. Pedimos concordata e Armando, meu irmão, ele achava, tinha medo de mudar o nome. Veja bem, Prelúdio surgiu, com esse nome, a editora, porque nós intensionávamos publicar partituras de música. Bom, depois então ele não achava que nós deveríamos mudar o nome porque, ‘já fomos concordatários, o crédito pode ficar abalado’, e não abalou nada, viu.

Em 1981 a Luzeiro Editora se transforma em Editora Luzeiro. Durante estes anos a Editora passou por muitas mudanças que englobam um período de expansão seguido por um auge, no início da década de 80. Atualmente encontra-se em declínio. Vejamos o depoimento de Arlindo, em 94:

Arlindo Pinto de Souza: As tiragens, o normal de Pavão Misterioso, a média seria vinte e dois mil exemplares por ano, Pavão Misterioso e A Chegada de Lampião no Inferno. Oscilava, num ano fazia vinte mil, no outro vinte e cinco mil. Agora depois dessas crises todas, principalmente de 86 pra cá, caiu muito. Aliás caiu muito todas as publicações populares, não foi só o cordel não, todas as publicações populares caíram muito, muito.

Ana Raquel: E como era a média de todos os folhetos num ano?

APS: Quinze mil era a tiragem normal, numa média. E por isso que eu disse a você, aquele que se mantinha com dez mil exemplares eu reeditava no ano seguinte, do contrário não.

AR: E hoje em dia isso...

APS: Hoje em dia eu perdi o controle. Porque nós diminuímos também as tiragens. E, então, nós tiramos quarenta títulos de lista esse ano. Eu intensionava deixar somente sessenta títulos mas o Manoel D’Almeida protestou e outros poetas também, revendedores, achavam que era muito pouco e, você vê, o livro que eu tirei O ABC do Amor, ele está lá vendendo até hoje. Acontece que ele fala pela praça dele mas no geral caiu muito. A coisa firmando nós voltaremos com esse livro e outros também, e outros também.

Esta decadência é considerada, pelos poetas e revendedores, como geral da literatura de cordel. Nas palavras de João Firmino Cabral:

E, quanto à pergunta que você me fez sobre a venda do cordel, nós sempre tivemos uma época melhor, foi a época... a época áurea da literatura de cordel, nos anos de 60 a 70. Havia muitos vendedores da literatura de cordel e era muito propagada. Os vendedores chegavam nas feiras, armavam seu serviço de alto-falantes, cantavam, o povo ria e comprava muito, porque ouvia a propaganda do mesmo. Mas, com o tempo, alguns desistiram, outros morreram, outros mudaram de ramo, e hoje existem poucos cordelistas, e a divulgação da literatura de cordel é muito pouca., por isso ultimamente têm-se vendido menos.

Em fevereiro de 1995, Arlindo vendeu a Editora Luzeiro para os irmãos Nicoló, que já são proprietários de uma distribuidora de livros e uma editora pornográfica em São Paulo. Entrevistei um dos irmãos, Gregório Nicoló, que se mostrou otimista com relação à Luzeiro, esperando uma recuperação da Editora.

Gregório Nicoló tem interesse somente comercial na Editora, uma vez que além de não ter ligação afetiva com a Luzeiro, também não conhece a literatura de cordel. O novo proprietário faz críticas à maneira que ele considera pouco comercial de Arlindo levar o negócio e está propondo mudanças. Exemplificarei os novos rumos da Luzeiro com estes fragmentos da entrevista de Gregório Nicoló:

Então dá pra trabalhar no alternativo e em distribuição nacional, isso a nível Brasil. Coisa que seu Arlindo, ele vinha selecionando mais, ele vinha levando isso daqui, ele levava mais na palavra. Então ele tinha um distribuidor exclusivo em Aracaju, então o distribuidor era aquele fulano, não importa se ele vendesse mil peças ou cinqüenta mil peças em um ano, aquele era o distribuidor exclusivo do cordel da Luzeiro. Então esse quadro vai ser mudado. Vai ser mudado porque a minha intenção é aquilo que eu te falei, não é uma questão de dizer eu gosto, mas é uma questão comercial, e o comercial eu quero atingir onde eu puder. (...) Hoje um camarada se ele chegar pra mim e falar pra mim ‘eu quero distribuição exclusiva pra Bahia, você me dá?’, ‘te dou. Só que você vai ter que me comprar tantas edições, você vai ter que consumir tantos mil exemplar’, caso contrário não me interessa.(...) Porque veja bem, o que ele fazia, de um lado é bonito, mas comercialmente eu acho que não tem retorno. É minha maneira de pensar, tá? Então, nesse tipo de comércio eu não vou entrar não. Inclusive, a Luzeiro não tem concorrente nesse ramo.

Num público de , veja bem, nós somos cento e cinqüenta milhões de habitantes, um por cento daria um milhão e meio. Com certeza nós atingimos mais de um por cento de pessoas que gostam da literatura. Você há de convir comigo que vender, hoje, se tivesse uma boa distribuição, pra eu não vender nada teria que vender no mínimo uns quinze milhões de exemplares.

Eu tenho uma editora e uma distribuidora então eu me servia do produto da Luzeiro, eu comprava esses produtos e revendia na distribuidora. Então aí é que veio o interesse de comprar a Luzeiro, que a gente conhece o potencial de venda. Agora você vem me dizer o gosto que eu tenho pela literatura, não é aquele que deveria ser por eu estar comandando a Luzeiro, meu interesse nela seria mais comercial. Agora, uma vez que eu estou aqui dentro, eu, na medida do possível, eu estou procurando conhecer mais a fundo, tá? Agora o meu interesse, o meu gosto, eu acho cordel uma leitura gostosa, mas não sou nenhum fanático. (...) Eu estou mais comercialmente dentro da firma.

- CONCEITO DE AUTORIA -

Arlindo Pinto de Souza nunca foi ao Nordeste. No entanto ele e a Luzeiro são bastante "nordestinizados". Arlindo tem até folhetos de sua autoria, que são vendidos pela Luzeiro. Isto é, de tanto conviver com os poemas, poetas, enfim, com o universo da literatura de cordel, ele passou a escrever poesia em uma forma muito específica de uma determinada região, que não é a sua de origem.

Um poeta teve, até 1995 um papel bastante especial na Editora Luzeiro, foi Manoel D’Almeida Filho. Almeida era tido como o "rei da literatura de cordel", pelos seus colegas poetas. Recebera o título do também poeta Rodolfo Coelho Cavalcanti, que por sua vez o havia recebido de Jorge Amado, escritor considerado autoridade intelectual entre os cordelistas. Almeida funcionou como um interlocutor entre os poetas nordestinos e a Editora, além de ser revisor e classificador de obras na Luzeiro. Almeida faleceu em 1995. Arlindo o tratava por compadre, uma vez que realmente dera um filho seu para o poeta batizar. Almeida era considerado por Arlindo o maior poeta popular do Brasil.

Deste modo, o aval para a compra e publicação de uma obra pela Luzeiro era dado por Almeida. Assim me relatou sua filha, Telma D’Almeida Gomes:

Muitos, muitos poetas mantinham contato com ele pedindo que intercedesse na venda dos seus originais frente à Luzeiro, como também a Luzeiro fazia isso também: recebia originais de poetas e não fazia negócio nenhum antes que passasse por ele; enviava pra cá, pra que ele visse se realmente aquele livro seria vendável, vamos dizer, se estava dentro das características do que satisfazia a literatura de cordel, né? E papai revisava tudo... Quando ele dizia que era assim uma coisa que não tinha jeito mesmo, de jeito nenhum, então o negócio ficava ali.

Já o poeta João Firmino Cabral, que conviveu com Almeida por mais de quarenta anos como discípulo e amigo, explica esta influência na Editora:

A maioria quando mandava pra Luzeiro, o Arlindo mandava pra Manoel D’Almeida Filho. Só era aceito na Luzeiro depois de aceito por Manoel D’Almeida

Mas qual era realmente o trabalho de Almeida na Editora? Revisor? João Firmino Cabral conta alguns episódios, inclusive em relação às obras de "autoria" de Arlindo:

Os trabalhos que eram vendidos à Luzeiro por outros poetas, antes de serem publicados, passavam pela mão do Manoel D’Almeida Filho, e ele muitas vezes chegou até a rasgar o original e fazer outra história no lugar do poeta, o que eu nunca combinei. Nós sempre... A única divergência que havia entre nós dois era essa; porque eu pedia a ele que ele apenas retificasse alguma coisa, mas não rasgasse o original do poeta, deixasse alguma coisa do poeta. Mas ele muitas vezes rasgou. Entretanto que o Minelvino Francisco, de Itabuna, grande poeta também, morreu com a espinha, ainda hoje tem a espinha na garganta dos trabalhos dele que foram pra Luzeiro, que dele só foi o nome. Só o nome, Minelvino, mas o trabalho era de Manoel D’Almeida. A Luzeiro... O Arlindo Pinto publicou três trabalhos com o nome Arlindo Pinto de Souza, sendo de Manoel D’Almeida Filho...

E Telma D’Almeida Gomes completa:

Telma D’Almeida Gomes: Mas quando tinha alguma condição de melhorar aquilo então ele mesmo melhorava, revisava tudo, ele... consertava estrofes, muitas vezes ele refazia o livro todo. Agora: continuava com o nome do autor, né? Ele fez várias vezes. Inclusive nós temos aqui até originais feitos por ele com nome de outros autores. Inclusive até do próprio seu Arlindo, mesmo. Seu Arlindo tem livros publicados que foram totalmente refeitos por ele, por meu pai.

Ana Raquel: E devido a isso... quais que eram as reações, assim? Os poetas aceitavam bem ou tinha algum que vinha brigar?

T.D.G: Não, não. Até gostavam, né? Porque ele ajeitava os trabalhos deles. Ninguém achava ruim, não. Até gostavam... (risos).

Arlindo em sua entrevista colocou o trabalho de Manoel D’Almeida Filho como reelaboração:

Ana Raquel: Por exemplo, esse livrinho aqui do senhor... (mostra o Grande debate de Camões com um Sábio )

A.P.S.: Ah, ele reelaborou.

A.R.: O que é que ele fez? Como é que ele reelabora?

A.P.S.: Eu escrevi do meu jeito. Tem aqui as estrofes, etc. E o Manoel D’Almeida, ele adapta pros termos. Pros termos mais comuns entre os leitores, pessoal do Nordeste.

A.R.: O senhor escreve em verso.

A.P.S.: Escrevo em verso. E dentro da métrica também. E depois ele reelabora, melhora, ele melhora bastante o livro, e além disso usa aqueles termos característicos, mais próprios, do leitor do cordel, sabe?

Almeida via seu trabalho como um grande serviço à literatura de cordel, para melhorar a linguagem, a qualidade das obras, o cuidado com as edições para que não se dissesse que o povo não sabe escrever ou que a literatura popular não tem valor. João Firmino Cabral assim explicou o pensamento de Almeida:

J.F.C.: O que ele queria fazer era apenas melhorar a literatura de cordel, botar numa linguagem melhor, botar num meio que o matuto lesse e entendesse, mas também um intelectual lesse e não achasse aquela baralhada como... alguns poetas do nosso passado fizeram. E só eram poetas que sabiam rimar, mas não tinham o cuidado...

Notemos que Almeida se colocou como intermediário. Primeiro entre a Luzeiro e os poetas, também entre Arlindo e a literatura de cordel e entre a cultura erudita e a popular. Essa "liberdade de ação" de Almeida só era possível pela Luzeiro comprar a propriedade das obras. Desde que a editora compra a propriedade sobre uma obra pode-se fazer qualquer modificação. Esse é o sistema editorial nordestino, que a Luzeiro manteve. No entanto, Arlindo tenta diferenciar seu trabalho do que acontecia no Nordeste, mostrando mais respeito pelos originais dos autores, como podemos ver nesta passagem:

A.P.S.: O livro passa a ser nosso. No nosso contrato consta que se ele for utilizado pra televisão, pra cinema, etc, com o nosso consentimento, o que se obtiver de direitos, eles são divididos, entre o autor e nós. Já aconteceu, a Abril nos procurou, publicou umas coletâneas, e realmente eu ia receber. Mas não ficava com a minha parte, mandava tudo pro autor. E ela deixou de publicar agora. Então veja bem, o direito de propriedade passa a ser nosso, com contrato, registrado em cartório, etc. E só o nome não. O nome do autor continua sempre, é dele.

A.R.: Sabe porquê? Isso acontece, acontecia, no Nordeste pelo menos. De às vezes o editor tirar o nome do autor e colocar o nome dele.

A.P.S.: Ah, sim, sim. Principalmente um, desculpe eu vou omitir o nome de um editor que fez muito isso com os livros do Leandro Gomes de Barros, ele eliminava os acrósticos, mudava o acróstico. Tanto é que nós recompusemos alguns aqui.

É interessante observarmos o esforço que Arlindo Pinto de Souza faz para me mostrar o quanto a Editora Luzeiro respeitas as obras originais. Minha hipótese é a de que eu estava sendo vista nas visitas à Editora como uma representante da "Universidade", dos meios eruditos. Também a questão pode passar por uma vaidade pessoal de Arlindo, ao não admitir dúvidas sobre a autoria do folheto que leva seu nome.

Notemos um mesmo fato, a publicação do livro A moça que se casou catorze vezes e continua donzela, que saiu em 1994 tendo como autor Apolônio Alves dos Santos. Primeiro Arlindo fala de como o folheto foi publicado e depois João Firmino Cabral:

Ana Raquel: E como é que... esse poeta aqui ele mandou pelo correio, como é que foi?

Arlindo Pinto de Souza: Ele mandou. Eu gostei do título, que era um pouquinho outro. O título era A moça que se casou treze vezes mas eu não achei que ficou bom o finalzinho dele, jamais um marido, pra fazer a composição. E então eu gostei, o Manoel D’Almeida concordou e reelaborou o trabalho, ficou bom, nós publicamos.

A.R.: E o Manoel D’Almeida, ele conhecia já esse poeta?

A.P.S.: Sim, ele conhecia. E ligado ao meu interesse ele concordou em reelaborar. Nós descobrimos que ele teve a inspiração pra esse livro num livro do Manoel D’Almeida, viu? Numa estrofe do livro do Manoel D’Almeida ele teve inspiração pra fazer este livro. Manoel D’Almeida percebeu, mas deixou passar, comentou comigo, deixou passar. E publicamos o livro.

João Firmino Cabral: Ele mexeu em todos.

Ana Raquel: ...esse, né? Que saiu no ano passado...

J.F.C.: Esse ele não mexeu, fez.

A.R.: Ele fez esse?

J.F.C.: Esse ele não mexeu, fez. O do autor eram oito páginas, não tinha nada...

A.R.: Vixe! Esse A moça que se casou catorze vezes?

J.F.C.: Olha, isso aqui, ó: Espedito Silva. Aqui não tem um verso de Espedito. O Manoel D’Almeida...

A.R.: Mas esse poeta aqui, por exemplo, esse Apolônio, esse Espedito... Eles existem?

J.F.C.: Apolônio tem só um trabalho na Luzeiro, é o João Canguçu. Foi Manoel D’Almeida que fez todinho, não tem um verso de Apolônio. E por isso Apolônio também tem um espinho na garganta com ele.

A.R.: Ai, ai, ai. Mas aí ele refazia e publicava, nem dava pro poeta ver como é que tinha ficado?

J.F.C: Não.

A.R.: Porque comprou, comprou, né?

J.F.C.: É, porque depois do livro comprado, todo direito é da Editora.

Tendo esse papel tão importante na Editora, Almeida se sentiu traído com a venda da Luzeiro. João Firmino e Telma D’Almeida relacionam a venda da Editora como causa da doença e morte do poeta. João Firmino conta como Almeida recebeu a notícia:

João Firmino Cabral: Eu estava na banca do compadre quando recebemos a repentina notícia pela...por uma carta que veio por intermédio de Arlindo dizendo: ‘Compadre Almeida, vendi a Luzeiro.’ E uma carta tão fria como uma pedra de gelo pra um homem que tinha tanto... tanta amizade, tanto contato. Inclusive tudo o que a luzeiro fazia mandava pra Almeida retificar. Não era feito nenhum trabalho na Luzeiro sem a presença de Manoel D’Almeida Filho. E... ele... quando ele... Eu vi ele botar a mão aqui; ele disse: ‘Compadre, estou passando mal.’ Aí, baixou assim a cabeça e nós ficamos conversando... Eu distraí um pouco ele, nós saímos, fomos lá pra o bar, tomamos um cafezinho, eu tomei um copo de leite com açúcar, e a partir desse dia... Isso era o que ele comentava: ‘Mas que covardia meu compadre fez comigo: vendeu a Luzeiro repentinamente; não me preveniu; eu com oitenta anos... Ele devia me prevenir primeiro: ‘Compadre, eu estou em negócio com a Luzeiro, vim combinar com o senhor porque o senhor...’ Mas mandar uma notícia repentina dessas!’ E, pra acabar de coroar a história, o dono da Luzeiro, o atual, manda-lhe uma carta dizendo que não ia mais continuar publicando nada dali porque não havia condições.

E Telma D’Almeida Gomes assim conta:

Ana Raquel: E como é que foi a notícia da venda da Luzeiro?

Telma D’Almeida Gomes: Ah, a notícia da venda da Luzeiro eu acredito que contribuiu muito para o fim da vida de meu pai, sabe? Foi assim uma coisa... terrível. Inclusive depois eu vou lhe mostrar... umas estrofes que ele fez já a respeito da venda da Luzeiro já, já no final, né? Porque foi uma coisa assim de impacto pra ele. Quando seu Arlindo mandou dizer a respeito da venda da Luzeiro, posteriormente nós ficamos sabendo que o negócio já havia sido feito. Seu Arlindo não... Não é o caso de não ter consultado; porque o negócio era dele, ele não iria consultar se deveria fazer. Mas, digamos assim, ele não preparou. E meu pai tinha a Luzeiro, tinha a poesia, tinha a literatura de cordel como a vida dele, entendeu? (...) Então eles tratavam de tudo nos mínimos detalhes. Agora, só a venda da Luzeiro é que seu Arlindo fez assim, eu não sei, a gente não pode nem julgar, talvez até ele não tenha tido, não sei, coragem, talvez ele tenha achado que magoava mais se fosse falar.

Almeida sentia-se como dono da Luzeiro. Toda obra que produzisse era publicada pela Editora e tudo o que fosse publicado tinha a mão dele. Com a venda, os irmãos Nicoló entraram trazendo um viés mais puramente comercial, tirando as relações de compadrio, acabando com os privilégios. Podemos ter uma idéia do impacto e do sentido de traição que isso teve para Almeida, expressos, por exemplo, nestes versos de 19/03/95, mostrados a mim por Telma D’Almeida Gomes:

Trovas Sentimentais

(Manoel D’Almeida Filho)

Com a venda da Luzeiro

Minha boca amarga a fel...

Para mim, no mundo inteiro,

É a morte do cordel...

Vendida a mamãe Luzeiro,

Minha garantia cai...

Sem o seu dono primeiro,

Perdi mamãe e papai.

Com a Luzeiro vendida,

Meu coração disse a mim:

- Cuidado na sua vida!

O cordel chegou ao fim...!

- CONSIDERAÇÕES FINAIS -

A importância da Editora Luzeiro no estudo das leituras populares brasileiras é realmente grande. Afinal, além do espaço primordial que ela representa para a literatura de cordel e seu público leitor, não podemos esquecer das outras publicações da Editora, totalmente voltadas para o público popular. A Luzeiro é mais um exemplo inegável de que a difusão de obras escritas no Brasil abarca um mais diversificado leque da população do que normalmente se crê e propaga.

É também interessante ver como algumas características do universo oral nordestino estão presentes na Editora Luzeiro, podendo ser comprovadas na própria "nordestinização" de Arlindo, um paulistano que nunca foi ao Nordeste, na relação entre ele e os autores, considerados "compadres de fogueira". Também na negociação dos folhetos a Editora fez acordos curiosos. Aconteceu de Arlindo comprar um folheto por intermédio de um amigo do poeta-autor, que veio a São Paulo somente com a autorização verbal do poeta. E o negócio foi feito! Dos textos recolhidos do acervo de Manoel D’Almeida Filho, há várias cartas em verso para Arlindo e para a Editora Luzeiro. As funcionárias da editora são tratadas por Comadre Branca e Comadre Lourdes e também respondem para Manoel em versos. O interessante é que os assuntos tratados em versos são de ordem prática, com envio de remessas de livros, atrasos e pagamentos.

Estes versos que exemplificam esta curiosa relação, me foram mostrados por Telma D'Almeida Gomes:

Telma D’Almeida Gomes: Ele tinha lá duas comadres, era a Lourdes e...

Ana Raquel: Que trabalhavam lá?

T.D.G.: É. Esqueci o nome. Tem muitas coisas. Inclusive quando elas demoravam a mandar...

A.R.: 'Por onde é que anda Camões/ Juvenal e outros mais/ Vicente, rei dos ladrões/ Que nunca mais me vieram/ Trazer suas lições'

T.D.G.: É, isso eram os livros porque quando ele fazia o pedido, que demorava, aí ele mandava perguntar.

A.R.:: Aí ela respondeu: 'Compadre, não sei dar explicações/ Só o seu Arlindo como conterrâneo de Camões/ Pode dizer onde anda/ Vicente, rei dos ladrões'. Ela também escrevia rimado

O revendedor Artur Pereira de Sales assim se refere à Luzeiro e ao seu relacionamento lá:

Artur Pereira Sales: É, quando falta eu trago de lá. Ontem eu trouxe, olha aí. Tem mais aí, viu. Quando falta eu já sei de cor. A Luzeiro eu estou por dentro de tudo. De tudo mesmo. E a turma lá é boa. Eu digo: Lourdes, do livro tal bote mais. A Branca é gente boa. Eu até vou escrever, vou telefonar pra ela pra dizer, que com o Gregório o primeiro pedido que eu faço é esse. Recebi já. Eu vou telefonar pra ela mais à noite, de tarde, perguntando como é que eu boto dinheiro. Porque Arlindo eu botava dinheiro na Caixa Econômica

Esta estrutura "nordestina" da Editora Luzeiro está sendo questionada pelos irmãos Nicoló, que, segundo depoimento de Gregório, têm uma relação somente comercial com a literatura de cordel. O novo dono da Luzeiro afirmou em entrevista que não pretende permanecer com as relações pouco profissionais da Editora, como por exemplo a exclusividade de revendas em determinada cidade. Pretende distribuir as publicações da Luzeiro pela Distribuidora Abril e também ampliar a linha editorial, incluindo a literatura esotérica.

Antes de realizar a pesquisa de campo no Nordeste eu tinha contato somente com o viés paulistano da Editora. Depois da viagem pude unir e confrontar, em minha pesquisa, os dois princípios fundamentais da Editora Luzeiro, o material nordestino e a editoração paulistana. Sabendo que esta união não é simples soma de fatores, com papéis claramente definidos, e sim complexa e única experiência na história da editoração brasileira.